Carta Capital – “Gabriel, meu filho, bora lá ver onde o pai virou estrelinha”, diz Maria Lucinda Xavier na porta da venda modesta construída no cômodo da frente da casa da família, no Tomé, distrito de Limoeiro do Norte, a 205 quilômetros de Fortaleza. Branquinha, como é chamada pelos amigos, pega o menino no colo e leva o repórter a uma curva da estrada próxima que liga Limoeiro ao distrito. No dia 21 de abril deste ano, José Maria Filho, 44 anos e dois filhos com Branquinha (Gabriel, de 4 anos, e Márcia, de 19), voltava da Câmara Municipal quando foi executado. Em um trecho ermo da estrada, levou um tiro de espingarda calibre 12, seguido de 17 tiros de pistola calibre 40. Quatro meses depois, o inquérito – presidido por um delegado da capital destacado para o caso – não apontou nenhum suspeito. O mais provável, diz quem acompanha a apuração, é ficar por isso mesmo: mais um caso de pistolagem na região sem mandante identificado, uma triste rotina a que os moradores da região parecem habituados.
“O que revolta foi o jeito como mataram o Zé Maria, como se fosse bandido”, diz Branquinha, acrescentando que ele sempre foi “desenrolado”, maneira de dizer que não tinha medo de enfrentar os problemas. Líder comunitário aguerrido, que nos últimos tempos encontrou apoio do MST, da Igreja e de pesquisadores locais, Zé Maria voltara há dez anos para a Chapada do Apodi, onde fica Tomé e outros distritos menores.
Trata-se de uma região que, desde o tempo da Sudene de Celso Furtado, nos anos 60, foi objeto de projetos de desenvolvimento irrigado. “Antes disso, os grandes latifúndios viveram por décadas da carnaúba, então abundante na região, de onde era extraí-da a cera, mas também da produção de lenha para a indústria cerâmica e o cultivo do algodão”, diz a geógrafa Bernadete Coêlho Freitas, professora na universidade local. O plástico substituiu a carnaúba, levando os barões à crise e ao socorro do Estado. E o náilon derrubou o preço do algodão, contribuindo para desvalorizar as terras.
Nos últimos dez anos, contudo, a história mudou de rumo. Parte da região do Baixo Jaguaribe, a chapada virou objeto de desejo de empresas fruticultoras de médio e grande porte, algumas internacionais, como a costarriquenha Del Monte, cujas ações são negociadas na Bolsa de Nova York.
Depois de trabalhar por mais de duas décadas em São Paulo, a maior parte do tempo em uma empresa de isolamento térmico, foi nesse contexto que Zé Maria se viu metido oito anos atrás, quando voltou à região com o irmão Adauto, que mais de uma vez o alertaria dos riscos de ir à rádio local denunciar os efeitos do uso inadequado de agrotóxicos nos quase 3 mil hectares de plantação de banana que as “empresonas” levaram para lá. Foram atraídas por incentivos fiscais criados pelo governo estadual, durante o governo Tasso Jereissati (PSDB) e nos seguintes, cujo motivo era estimular as exportações.
Desde esse período, os incentivos para as empresas foram crescendo – incluindo a desoneração fiscal dos agrotóxicos –, enquanto os pequenos eram tragados por desvio de dinheiro na cooperativa local, ainda nos anos 90, além da falta de apoio técnico e financeiro, da especulação fundiária e das disputas por terras. Mas de todas as batalhas, enfrentar a contaminação da água provocada pela pulverização aérea dos bananais foi o que deu visibilidade a Zé Maria – e há quem acredite que tenha sido o estopim da emboscada, ainda que os problema-s fundiários sejam relevantes e aguardem uma solução definitiva da Justiça.
Como outros problemas da região, o descaso do poder público, no caso a prefeitura, é evidente, como relata a promotora do Meio Ambiente de Limoeiro, Bianca Leal: “É uma aberração usar o canal da irrigação para captar as águas que serão consumidas. Isso jamais deveria ocorrer”. Mas é rotina há anos nas comunidades locais.
A aberração é ainda maior porque o canal corre a céu aberto por 14 quilômetros, desde a sua origem no açude do Castanhão, outra obra iniciada no período Jereissati e construída para dar suporte ao agronegócio. “O problema é que os bananais ficam em alguns casos a poucos metros das casas, e o vento frequente na região trata de levar o veneno para o canal e de lá para as torneiras residenciais. Além disso, há a chamada deriva técnica, que, em média, significa a perda de 19% do veneno pulverizado pelos aviões”, afirma a médica Raquel Rigotto, professora da Universidade Federal do Ceará e coordenadora de uma pesquisa sobre a contaminação da água na Chapada do Apodi.
Entregue ao Ministério Público em uma cerimônia na quinta-feira 19, ocorrida na sed-e de uma faculdade local e diante de uma plateia de mais de 300 pessoas, uma parcela deles militante do MST, o evento serviu para lembrar os quatro meses do assassinato.
“Nas 13 amostras colhidas em diferentes pontos ao longo do canal foram identificados de três a 12 princípios ativos, alguns considerados tóxicos e outros altamente tóxicos, e sempre persistentes, ou seja, com efeito prejudicial à saúde por um tempo muito longo”, anota o relatório final, que conta com a colaboração de quase 30 pesquisadores de instituições como a Universidade Federal de Minas Gerais, que fez a análise das amostras, Universidade de Brasília e Fundação Oswaldo Cruz.
Também foi encontrada água contaminada em poços artesianos, no lençol freático e nas torneiras das casas. “No mundo todo, calcula-se em cerca de 7 milhões o número de intoxicações decorrentes do uso do agrotóxico e 70 mil mortes. A maioria dos casos se concentra nos países em desenvolvimento, para onde as empresas multinacionais estão migrando. Além disso, o uso na chapada está contaminando o Aquífero Jandaíra, um verdadeiro tesouro para o semiárido”, afirma a pesquisadora, que contou com o apoio do CNPq para levar adiante o trabalho. “Além da contaminação da água, verificamos que os agrotóxicos são vendidos sem os receituários e que não há um manejo adequado das embalagens, que precisam viajar mais de 100 quilômetros até chegar em Mossoró, onde fica o posto de coleta mais próximo.” A pesquisa relata ainda o caso de um funcionário de uma multinacional que morreu de uma doença no fígado após trabalhar por alguns anos no almoxarifado onde os defensivos eram armazenados. “Todos os indícios sugerem que a morte tem a ver com os agrotóxicos.”
Na dúvida, há um ano José Anchieta Xavier e sua família preferem beber água mineral em vez de consumir a água que chega do canal, ou das 12 caixas d’água que a prefeitura mandou instalar em 2009, diante da argumentação de que não teria os 7 milhões de reais para erguer uma adutora exclusiva para a água potável. “Essa água também vem da barragem, do mesmo lugar onde sai a água do canal”, diz Xavier, enquanto mostra as bananeiras de um dos sítios que possui, num total de 23 hectares de bananal.
Sem recursos para pagar a pulverização aérea, ele está ciente de que a ausência do “veneno” e de orientação técnica para corrigir o solo representa uma queda de 50% na sua produção. “Os frutos ficam menores, é verdade, e muitos clientes não gostam. Mas também é verdade que o sabor das minhas bananas é melhor e elas duram mais.”
Um produtor de médio porte e influente na região é João Teixeira Júnior, proprietário da Fruta Cor. Ele mora em Fortaleza, mas passa dois dias da semana em Limoeiro, onde cultiva banana. Teixeira mostra-se incomodado com a fama que a cidade amealha nos últimos tempos. “Acontece que aqui o desenvolvimento econômico está chegando, mas não o desenvolvimento social. O povo não tem educação, não tem saúde, e aí começam a criticar o agronegócio. Mas as grandes empresas andam dentro da lei, são os pequenos que criam os problemas e não sabem lidar com os agrotóxicos, muitas por falta de conhecimento.”
Alguns fatos recentes e de amplo conhecimento na cidade não confirmam a afirmação do empresário. No ano passado, depois de muitas reclamações, Zé Maria conseguiu que um vereador local apresentasse uma lei, inspirada em uma legislação aprovada poucos meses antes pelo Parlamento Europeu, proibindo a pulverização aérea dos bananais, diante da inquestionável contaminação. A promotora do Meio Ambiente, contudo, teve de entrar com uma ação pública diante da continuidade das pulverizações aéreas pelas médias e grandes empresas. A briga só não foi adiante porque a mesma Câmara decidiu revogar a lei seis meses após a sua aprovação, argumentando que não havia prova dos riscos à saúde, apesar dos laudos técnicos em contrário.
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