Durante o período da escravidão legalizada, no Brasil, foi instituída a figura do Capitão-do-mato, um agente do Estado, a serviço dos senhores de engenho, que tinha como função capturar e punir os escravos que se rebelavam e lutavam pela liberdade. Para realizar seu trabalho, que era considerado de relevância social, recebia armas, dinheiro, homens e outros recursos. Como uma espécie de parceria público-privada, os senhores de engenho financiavam essa estrutura.
Neste acampamento cerca de cinqüenta famílias ocupam uma pequena área de 22 hectares, de propriedade da União, situada no seu território tradicional, por força de um acordo judicial, celebrado em audiência da Vara Agrária de Minas Gerais. O comandante da operação justificava a ação arbitrária e ilegal dizendo que estava ali para resguardar as terras do Estado, pois havia um boato de que a comunidade iria invadir as terras pertencentes ao Parque Estadual Lagoa do Cajueiro e que estava cumprindo ordem do “Promotor de Justiça de Manga”. Depois de aterrorizar, ameaçar e humilhar as famílias, identificaram uma das lideranças do acampamento, Sr. Manoel da Conceição Neto e, em seguida, dirigiram-se à casa do Sr. Jesuíto José Gonçalves, presidente da Associação do Quilombo da Lapinha.
Após as 18h, os policiais chegaram à casa do Sr. Jesuíto, pararam as viaturas na porteira de entrada e adentraram o quintal. O Sr. Jesuíto, que retornava da horta trazendo verduras para preparar o jantar, dirigiu-se aos policiais e lhes perguntou o motivo da visita. O Tenente Carlos Roberto lhe disse que estava ali para impedir a invasão do Parque Lagoa do Cajueiro por parte dos quilombolas da Lapinha. No quintal da sua casa, sem mandado judicial, o policial começou a pressioná-lo e interrogá-lo, querendo saber quem estava organizando a invasão do Parque e quando aconteceria a suposta invasão. O Sr. Jesuíto disse que não sabia de nenhuma invasão e que as famílias que se encontram no acampamento ocupam aquela área, por força de um acordo judicial. O Tenente continuou pressionando o Sr. Jesuíto, dizendo que como presidente da Associação, ele estaria organizando a invasão e que se continuasse a dificultar o trabalho da polícia, poderia ser preso. O Sr. Jesuíto respondeu que não era ladrão, assassino ou estuprador e, portanto, os policiais não poderiam prendê-lo.
Numa clara violação à Constituição Brasileira que protege a inviolabilidade do domicílio e veda a prisão arbitrária (artigo 5º, XI e LXI, CF), os policiais o algemaram e o fizeram entrar na viatura. Essa ação truculenta, certamente, teve como objetivo servir de exemplo às famílias do Quilombo da Lapinha, que lutam pela efetivação do seu direito constitucional ao território, como na época da escravidão, quando os negros fugitivos eram capturados pelo Capitão-do-mato e amarrados em troncos, na praça pública.
O Quilombo da Lapinha, situado no município de Matias Cardoso, norte de Minas Gerais, é constituído por cerca de cento e sessenta famílias e é composto pelas comunidades Vargem da Manga, Lapinha, Saco e Ilha da Ressaca. Esta comunidade remanescente de quilombo ocupa o seu território, desde o século XVII, quando seus ancestrais se rebelaram e fugiram, principalmente das fazendas da Bahia, e adentraram a chamada Mata da Jaíba, nos vales do Rio São Francisco, Verde Grande e Gorutuba. Nesse território, desenvolveram uma organização social baseada na solidariedade, conjugando a agricultura, pesca e pecuária em terras comuns.
Atingidas pela segunda vez, agora como vítimas dos impactos do Projeto Jaíba, estas famílias passaram a conviver com limites ainda mais significativos, comprometendo as suas condições de sobrevivência e de reprodução social.
Em janeiro deste ano, o IEF fez um acordo com a empresa Fazendas Reunidas Vale do São Francisco LTDA – FAREVASF, suposta proprietária da Fazenda Casa Grande, ajuizando pedido de Homologação de Desapropriação por Utilidade Pública e Interesse Social, para incorporar o imóvel ao Parque Estadual Lagoa do Cajueiro.
Nesse acordo, tanto a FAREVASF como o IEF omitiram, deliberadamente, a existência do litígio envolvendo a comunidade quilombola, cujo processo ainda se encontra em tramitação. Esse fato aumentou ainda mais o clima de insegurança da comunidade.
Desesperados com a iminente desocupação da área de onde estão tirando o sustento das suas famílias, os quilombolas buscaram apoio aos órgãos públicos e entidades de apoio. Assim, em recente data de 07 e 08 de julho, o Quilombo da Lapinha recebeu a visita de Representantes do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e Comissão Especial de Direito Humano à Alimentação Adequada da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que constataram in loco os conflitos socioambientais e a violação de direitos fundamentais vividos pela comunidade.