PM de Minas Gerais aterroriza comunidade quilombola e aprisiona liderança tradicional na comunidade de Lapinha

Durante o período da escravidão legalizada, no Brasil, foi instituída a figura do Capitão-do-mato, um agente do Estado, a serviço dos senhores de engenho, que tinha como função capturar e punir os escravos que se rebelavam e lutavam pela liberdade. Para realizar seu trabalho, que era considerado de relevância social, recebia armas, dinheiro, homens e outros recursos. Como uma espécie de parceria público-privada, os senhores de engenho financiavam essa estrutura.

Na tarde de 23 de julho de 2010, após mais de cento e vinte anos da abolição da escravatura e três dias depois de o Presidente Lula sancionar o Estatuto da Igualdade Racial, a comunidade de Matias Cardoso assistiu, atônita, ao ressurgimento da função de “Capitão-do-mato”, dessa vez exercida pela Polícia Militar do Estado de Minas Gerais. Por volta das17h, as famílias do acampamento Rio São Francisco do Quilombo da Lapinha, no Município de Matias Cardoso, Norte de Minas, foram surpreendidas com a invasão de duas viaturas com seis policiais, comandados pelo 2º Tenente Carlos Roberto Venuto Júnior. Os policiais fortemente armados, sem mandado judicial, cercaram o acampamento, mantendo as armas apontadas para homens e mulheres, crianças e idosos, revistando quem chegava, como forma de intimidar os quilombolas que ali se encontravam.

Neste acampamento cerca de cinqüenta famílias ocupam uma pequena área de 22 hectares, de propriedade da União, situada no seu território tradicional, por força de um acordo judicial, celebrado em audiência da Vara Agrária de Minas Gerais. O comandante da operação justificava a ação arbitrária e ilegal dizendo que estava ali para resguardar as terras do Estado, pois havia um boato de que a comunidade iria invadir as terras pertencentes ao Parque Estadual Lagoa do Cajueiro e que estava cumprindo ordem do “Promotor de Justiça de Manga”. Depois de aterrorizar, ameaçar e humilhar as famílias, identificaram uma das lideranças do acampamento, Sr. Manoel da Conceição Neto e, em seguida, dirigiram-se à casa do Sr. Jesuíto José Gonçalves, presidente da Associação do Quilombo da Lapinha.

Após as 18h, os policiais chegaram à casa do Sr. Jesuíto, pararam as viaturas na porteira de entrada e adentraram o quintal. O Sr. Jesuíto, que retornava da horta trazendo verduras para preparar o jantar, dirigiu-se aos policiais e lhes perguntou o motivo da visita. O Tenente Carlos Roberto lhe disse que estava ali para impedir a invasão do Parque Lagoa do Cajueiro por parte dos quilombolas da Lapinha. No quintal da sua casa, sem mandado judicial, o policial começou a pressioná-lo e interrogá-lo, querendo saber quem estava organizando a invasão do Parque e quando aconteceria a suposta invasão. O Sr. Jesuíto disse que não sabia de nenhuma invasão e que as famílias que se encontram no acampamento ocupam aquela área, por força de um acordo judicial. O Tenente continuou pressionando o Sr. Jesuíto, dizendo que como presidente da Associação, ele estaria organizando a invasão e que se continuasse a dificultar o trabalho da polícia, poderia ser preso. O Sr. Jesuíto respondeu que não era ladrão, assassino ou estuprador e, portanto, os policiais não poderiam prendê-lo.

Numa clara violação à Constituição Brasileira que protege a inviolabilidade do domicílio e veda a prisão arbitrária (artigo 5º, XI e LXI, CF), os policiais o algemaram e o fizeram entrar na viatura. Essa ação truculenta, certamente, teve como objetivo servir de exemplo às famílias do Quilombo da Lapinha, que lutam pela efetivação do seu direito constitucional ao território, como na época da escravidão, quando os negros fugitivos eram capturados pelo Capitão-do-mato e amarrados em troncos, na praça pública.

Por ser idoso, contando já com 63 anos de idade e portador de obesidade mórbida, durante o trajeto para a cidade da Jaíba, imprensado na viatura, o Sr. Jesuito sofreu uma crise de hipertensão. Por isso, antes de conduzi-lo à Delegacia, os policiais tiveram de passar no Hospital para que fosse medicado e durante o período em que esteve sob cuidados médicos, os policiais montaram guarda na enfermaria, como se o presidente da Associação Quilombola fosse um temido bandido. Somente depois de duas horas, foi conduzido á Delegacia de Polícia para prestar declarações, tendo sido liberado logo em seguida.

O Quilombo da Lapinha, situado no município de Matias Cardoso, norte de Minas Gerais, é constituído por cerca de cento e sessenta famílias e é composto pelas comunidades Vargem da Manga, Lapinha, Saco e Ilha da Ressaca. Esta comunidade remanescente de quilombo ocupa o seu território, desde o século XVII, quando seus ancestrais se rebelaram e fugiram, principalmente das fazendas da Bahia, e adentraram a chamada Mata da Jaíba, nos vales do Rio São Francisco, Verde Grande e Gorutuba. Nesse território, desenvolveram uma organização social baseada na solidariedade, conjugando a agricultura, pesca e pecuária em terras comuns.

Entretanto, a partir dos anos de 1950, começaram a ser expropriados do seu território, passando a viver encurraladas em pequenas áreas nas ilhas ou em terras firmes às margens do rio São Francisco. Em função dos grandes impactos ambientais do Projeto Jaiba, o governo do Estado foi pressionado a promover a compensação pelos danos provocados pelo Projeto. Assim, no final dos anos 1990, milhares de hectares de áreas que ainda estavam relativamente preservadas e que eram utilizadas de forma extensiva pelas comunidades tradicionais, que aí viviam, foram transformados em unidade de conservação de proteção integral: parques e reservas biológicas, ameaçando de expulsar as famílias que encontraram nas ilhas e margens do rio São Francisco o último refúgio que lhes sobraram.

Atingidas pela segunda vez, agora como vítimas dos impactos do Projeto Jaíba, estas famílias passaram a conviver com limites ainda mais significativos, comprometendo as suas condições de sobrevivência e de reprodução social.

Em 2005, os quilombolas da Lapinha iniciaram um processo de organização para efetivar o direito constitucional à propriedade definitiva e à titulação do seu território. Como estratégia para pressionar o Estado a realizar os procedimentos em vista desta titulação, em data de 30 de setembro de 2006, ocuparam a Fazenda Casa Grande que, além de estar inserida em seu território, tem uma grande extensão margeada pelo rio São Francisco, portanto, de propriedade da União. Em Aaudiência de Justificação, presidida pelo Juiz da Vara Agrária, foi celebrado um acordo prevendo a permanência das famílias em uma área de 22 hectares até o final do litígio. Embora vivendo nessa área exígua, as famílias construíram diversos barracos de adobe, cisternas para armazenamento de água, com a implantação de hortas e lavouras diversificadas, melhorando de forma significativa sua alimentação. Outras iniciativas encontram-se em andamento como práticas de manejo agroecológico de vazantes e uma unidade comunitária de artesanato. Além disso, em parceria com a Prefeitura Municipal de Matias Cardoso, houve uma melhora significativa no atendimento escolar, inclusive com a contratação de professores da própria comunidade.

Em janeiro deste ano, o IEF fez um acordo com a empresa Fazendas Reunidas Vale do São Francisco LTDA – FAREVASF, suposta proprietária da Fazenda Casa Grande, ajuizando pedido de Homologação de Desapropriação por Utilidade Pública e Interesse Social, para incorporar o imóvel ao Parque Estadual Lagoa do Cajueiro.

Nesse acordo, tanto a FAREVASF como o IEF omitiram, deliberadamente, a existência do litígio envolvendo a comunidade quilombola, cujo processo ainda se encontra em tramitação. Esse fato aumentou ainda mais o clima de insegurança da comunidade.

Desesperados com a iminente desocupação da área de onde estão tirando o sustento das suas famílias, os quilombolas buscaram apoio aos órgãos públicos e entidades de apoio. Assim, em recente data de 07 e 08 de julho, o Quilombo da Lapinha recebeu a visita de Representantes do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e Comissão Especial de Direito Humano à Alimentação Adequada da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que constataram in loco os conflitos socioambientais e a violação de direitos fundamentais vividos pela comunidade.

A visita de autoridades de diversos órgãos do Estado ao Quilombo da Lapinha, reacendeu nas famílias a esperança de que seu clamor por efetivação do direito constitucional ao território finalmente seria ouvido. Entretanto, a recente ação da Polícia Militar, equiparada às práticas do Capitão-do-mato, cuja função julgávamos ter sido extinta com a abolição da escravatura, trouxe revolta e descrédito no papel do Estado em promover a dignidade da pessoa humana. Por isso, as comunidades do Quilombo da lapinha vivem, hoje, uma grande tensão. A Polícia continua circulando as imediações do acampamento, intimidando as pessoas que encontram pelas estradas, além de manter viaturas no entorno do Parque Lagoa do cajueiro e na Sede da Fazenda Casa Grande.

http://www.cedefes.org.br/?p=afro_detalhe&id_afro=2803

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