O ideal da ‘suma qamaña’. Os indígenas na América Latina. Entrevista especial com Xavier Albó

A situação dos povos indígenas na América Latina, especialmente na Bolívia, é o tema da entrevista concedida por Xavier Albó, antropólogo espanhol radicado na Bolívia, padre jesuíta. A entrevista foi feita pela revista eletrônica  Promotio Justitiae, n.º 104, 2010, uma publicação do Secretariado Justiça e Ecologia da Companhia de Jesus, com sede em Roma. A tradução é de Benno Dischinger.

O espanhol Xavier Albó vive na Bolívia desde 1952 e se nacionalizou cidadão boliviano. É doutor em Lingüística e Antropologia pela Universidade de Cornell, de Nova Iorque; licenciado em Teologia pela Facultad Borja, de Barcelona e pela Loyola University, de Chicago. É também doutor em Filosofia pela Universidad Católica del Ecuador, de Quito.

Entre outras atividades, é membro do conselho acadêmico do mestrado em Antropologia da Universidad La Cordillera e do doutorado em Desarrollo del CIDES (Universidad Mayor de San Andrés). Foi coordenador latino-americano dos jesuítas em áreas indígenas e membro da Academia Boliviana de História Eclesiástica. Desde 1994, é membro do Comitê Diretivo do Programa de Investigação Estratégica na Bolívia (PIEB) e atualmente faz parte do corpo docente da Universidad-PIEB. Ele contribuiu na criação do Centro de Investigación y Promoción del Campesinado (CIPCA). Confira a entrevista.

Quais são os fatores que convertem hoje os povos indígenas entre os mais marginalizados e explorados do mundo?

Respondo a partir de minha localização e trabalho na Bolívia, que vive atualmente uma situação muito singular: 62% de sua população se auto-define como indígena e conseguiu obter, por primeira vez em sua história, um presidente indígena (aymara), eleito democraticamente em dezembro de 2005 por 54% dos votantes e que foi reeleito, em dezembro de 2009, por 64%. Em janeiro de 2009 se promulgou, além disso, sua nova Constituição Política.

Ante cada pergunta contestarei primeiro no contexto mais amplo da América Latina [AL] e depois responderei sobre o caso concreto da Bolívia [B] que, por um lado conheço melhor e, por outro, tem certas possibilidades de servir como alternativa. Conheci melhor, de primeira mão, o contexto latino-americano até 2005, ano em que deixei meu cargo de coordenador de pastoral e solidariedade com os povos indígenas, da Companhia de Jesus na América Latina.

Quanto à América Latina, é preciso matizar o pressuposto implícito nesta pergunta. É certo que costuma haver maior concentração indígena em áreas rurais com altos índices de pobreza. Mas, é preciso diferenciar situações por grupos de países, áreas dentro dos países, e os processos que neles se dão.

Nos últimos tempos, um dos principais fatores de exploração territorial e de outros abusos contra os povos indígenas tem sido o assentamento de multinacionais (e seus associados locais) em áreas antes periféricas nas quais eles vivem ou se refugiaram, porque é ali que se encontram os novos recursos estratégicos. Estas empresas os exploram com sua lógica capitalista de lucro rápido, que ademais implica pouca atenção à sustentabilidade e ao equilíbrio ecológico. Podem ser madeireiras, petroleiras, mineradoras, grandes projetos hidrelétricos, etc.

Sua relação com os povos indígenas vai desde a simples exploração e expulsão [1] até a negociação, vista como parte de sua inversão para evitar conflitos e melhorar sua imagem internacional. Em poucas décadas, milhões de hectares em territórios indígenas se transformaram em intermináveis fazendas de criação de gado ou em campos desmatados para a produção de soja, aumentando a desigualdade no acesso à terra e introduzindo problemáticas como a dos produtos transgênicos que multiplicam a produção, porém aumentam ao mesmo tempo a dependência internacional para cada nova semente. Fatores como estes provocaram o desaparecimento, a marginalização e diminuição da qualidade de vida ou a emigração de numerosos povos indígenas.

Em todos os países houve e segue havendo faz anos migrações indígenas a partir de seus territórios originários até as cidades, até áreas de colonização, a outros países limítrofes, aos Estados Unidos e – nas últimas décadas – também para a Europa. Em muitos casos essas migrações se devem acima de tudo a fatores econômicos e laborais vinculados com os temas acima mencionados e podem afetar tanto indígenas como não indígenas. Mas, também há população expulsa por conflitos armados e políticos, como, por exemplo no Peru (para a costa e para Lima), na Guatemala (para a capital e para o México), na Costa Atlântica da Nicarágua ou na dupla fronteira do Equador, tanto com a Colômbia como com o Peru.

Muitos já não retornam e se integram em seus novos países. Mas, também são muitos os que mantêm vínculos econômicos (remessas) e pessoais com seus lugares de origem, às vezes essenciais para a manutenção dos que ficaram. Nem sempre é fácil defender simultaneamente os direitos das populações deslocadas e os das populações que os recebem.

Na Bolívia o modelo neoliberal, com a generosa abertura do Estado ao capital internacional para a exploração de nossos abundantes recursos naturais, se impôs com vigor, desde 1985, depois de sete anos de crise política e econômica. O Banco Mundial inclusive o apresentou ante outros países como exemplo modelar de transição pacífica e exitosa. Mas, desde 2001 este modelo quase foi derrubado, sobretudo pelo descontentamento no manejo dos recursos naturais por parte das novas multinacionais que ingressaram no país. Esta crise e os subseqüentes protestos populares em cadeia contribuíram para a emergência indígena liderada por Evo Morales e seu partido MAS (Movimento Ao Socialismo).

Estes últimos surgiram, por sua vez, em reação a outra ingerência internacional: a dos Estados Unidos e de sua ambígua guerra contra as drogas, pela qual as talvez 50.000 famílias produtoras de folhas de coca, muitas delas indígenas, apareceram sem pretendê-lo como o “inimigo principal”, seguramente por ser o mais débil, embora seja o menos culpado. A coca é um ingrediente básico para a cocaína, mas também para múltiplos usos locais não ligados ao narcotráfico. A grande maioria das famílias emigrou de lá somente para sobreviver, e a inserção de um setor minoritário na transformação da coca em “pasta básica” tem sido antes o resultado dessa “guerra” que pretendeu desalentá-los baixando o preço da folha. O resultado não pretendido dessa política tem sido mobilizá-las mais e dar-lhes um crescente protagonismo também em outros setores do país. O próprio Evo, lá imigrado desde o distante altiplano aymara, emergiu como líder nessa defesa dos cultivos de coca. O problema do narcotráfico e, dentro dele, o do desvio da coca a tal uso não está resolvido. Porém seria errôneo caracterizar o regime atual como um instrumento do narcotráfico. Este nem é seu sustento nem um de seus objetivos, embora tampouco tenha sabido desenvolver instrumentos mais eficazes para combatê-lo ou frear sua expansão. Esta é, sem dúvida, um programa pendente. Precisemos, contudo, que a Bolívia segue sendo o terceiro país produtor de cocaína depois da Colômbia e do Peru, países por certo plenamente alinhados com os Estados Unidos.

Quanto à crise econômica e financeira, na Bolívia ela foi menos notada do que em outras partes, parcialmente talvez por ser uma economia pequena, na qual boa parte da população, sobretudo em áreas rurais incluídos os territórios indígenas, depende menos dessas flutuações internacionais. Não tenho dados recentes sobre o efeito desta crise entre os povos indígenas dos demais países da América Latina.

O que está sucedendo com suas culturas?

Quanto à América Latina é difícil encontrar situações indígenas “puras” e “isoladas” neste mundo cada vez mais globalizado e intercomunicado. Todos os povos estão abertos a outros e adotam elementos sincréticos. É preciso, então, distinguir entre a incorporação de: a) elementos culturais práticos e funcionais de qualquer outra origem (por exemplo, na indumentária, moradia, fontes de energia, transportes, meios de comunicação incluindo o telefone móvel, TV, Internet, acesso a uma língua mais geral, etc.); e b) elementos que reforcem, ou antes diluam a própria identidade. Estes últimos quase sempre incluem um forte componente simbólico e expressivo. Pode ser a própria língua, a cosmovisão, incluída sua dimensão religiosa e artística, os valores…; ou, com relação à sua própria sobrevivência e desenvolvimento como povo, suas organizações, suas formas internas de governo e a definição de seu território. Mas, nem sempre é fácil discernir entre estes dois grupos de elementos. Em todo o tema de seu desenvolvimento, por exemplo, entram numa dialética permanente os seus direitos e sua cosmovisão com a incorporação de elementos externos práticos, por exemplo, no manejo de seus recursos por si mesmos ou em associação com outros.

As formas culturais próprias se mantêm melhor nos territórios rurais tradicionais de cada povo e, nelas, adquirir elementos práticos como os mencionados na secção (a) pode ser uma vantagem mais do que uma ameaça. No entanto, por outra parte, nem sempre logram consolidar ao mesmo tempo os seus elementos mais identitários, sobretudo no que tange ao seu autogoverno, dentro do conjunto local e nacional.

No entanto, no grupo de indígenas que já vivem em cidades e em outro país se experimentam muito mais mudanças. Ali tenham quiçá maiores oportunidades do tipo (a), mesmo quando estejam em bairros marginais, mas é muito mais difícil manter suficientes elementos do grupo (b). Muitos deles sofrem maior discriminação quando são identificados como indígenas e, por conseguinte, começam fazendo-se “invisíveis” como tais, e com o tempo se diluem plenamente como membros anônimos dessa sociedade urbana, a menos que sejam capazes de manter seus vínculos internos mediante determinadas organizações e práticas. A língua própria de origem também se usa menos e, sobretudo, já não se transmite às novas gerações. Os elementos culturais associados se perdem e outros geram uma ampla gama de sincretismos; por exemplo, em suas relações sociais e econômicas, na maneira interna de resolver conflitos, em suas celebrações e crenças.

No âmbito identitário e simbólico da cultura religiosa persiste o tradicional sincretismo entre ritos e crenças indígenas e cristãs, com variantes significativas de um lugar ou de um povo a outro (por exemplo, em regiões mais centrais ou em grupos silvícolas de contato recente) e, por suposto, entre o que ocorre na área rural e na urbana. Embora predominem as tradições católicas, cada vez é menor o “monopólio” católico em ambas as áreas e maior a gama de diferenciação de outras determinações cristãs, incluindo grupos pentecostais carismáticos (por exemplo, na Guatemala). Alguns povos minoritários adotaram massiva, porém sincreticamente a religião de seus missionários (por exemplo, novas Tribos). São muito poucos até agora os que se chamam indígenas e, ao mesmo tempo, ateus, embora tenham mudado sua fé por certos benefícios materiais e pode ser que depois se tornem incrédulos ao desaparecerem tais benefícios.

Na Bolívia, processos como os anteriores tiveram e ainda tem muita força. Depois da Revolução de 1952 era, por exemplo, muito mal visto, inclusive no campo, que alguém se identificasse ou fosse identificado como “indígena”. O único correto era então transformar-se em campesinos, inclusive mais do que no México. Era também comum que muitos que emigraram à cidade e inclusive a zonas de colonização se fizessem invisíveis. Porém, meio século depois, a forte emergência das organizações indígenas-camponesas modificou um tanto essa atitude, pelo menos quanto à sua auto-identificação. Segundo o censo de 2001 (cinco anos antes do atual governo), em todas as cidades da área andina mais de 50% de sua população manifestou tal pertença (quéchua ou aymara), incluídos muitos que já haviam perdido a língua; e, com as mudanças políticas ocorridas desde 2006, não seria raro que as percentagens de auto-identificação sejam ainda maiores num próximo censo (embora talvez os de língua não).

A nova Constituição (art. 4) enfatiza mais a separação entre a Igreja e um Estado laico (porém não laicista) e a liberdade religiosa, com uma menção específica das espiritualidades e cosmovisões dos povos andinos.

Quais são os novos processos sociais e econômicos que estão fortalecendo [ou não] estes povos? Que opinião merecem?

A Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) (1989) e a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas (2007) são instrumentos úteis para promover melhores relações. Porém estas continuam sendo parte de um esforço ainda muito desigual entre os débeis indígenas e as poderosas multinacionais, com freqüência apoiadas pelos estados que esperam extrair disso vultosos recursos.

No que se refere à América Latina, fixar-me-ei principalmente na emergência política desses povos, que tem como contraponto dialético a exploração e discriminação social e política de que tem sido objeto, distinguindo alguns países.

As principais concentrações indígenas estão na Bolívia, no Equador, Peru, na Guatemala e em alguns estados do sudeste do México. Porém, também neles se chega a resultados distintos por suas histórias recentes. Começarei pelos casos mais inovadores.

Na Bolívia (62% indígenas: 31% quéchua, 25% aymara, 6% outros, e 29 grupos menores):

Durante cinco séculos os povos indígenas foram, efetivamente, os mais marginalizados e explorados, devido acima de tudo ao sistema colonial espanhol que reforçava sua exploração econômica em minas e fazendas. A independência de 1825, liderada pelos crioulos descendentes de espanhóis, manteve um esquema neocolonial. O Estado Boliviano se construiu prescindindo também dos indígenas (então 90% da população), salvo como tributários e mão de obra barata. A República duplicou a expansão da fazenda espoliando-a de comunidades e territórios indígenas, em função de uma concepção presumivelmente mais “científica” de racismo, a partir do “darwinismo social”.

A partir de 1952, uma Revolução Nacional começou a incorporá-los, porém de maneira subordinada que implicava sua assimilação cultural, social e política à minoria dominante, com perda gradual de suas identidades, sob a ficção de uma uniformização de todos dentro de um “Estado mestiço”. No entanto, esta revolução facilitou o surgimento de uma organização “campesina” de alcance nacional e sua participação política, subordinada primeiramente ao partido MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário) e depois a um “pacto militar camponês”.

Nos anos 70-80 este modelo entrou em crise, primeiro nos Andes e, a partir dali, nos povos minoritários de terras baixas. Suas organizações se tornaram independentes do “pacto militar” e começaram a reclamar um “Estado unitário, porém pluri-nacional” (chamando-se a si mesmas “nações”). Passo a passo se chegou assim e por via eleitoral ao atual governo presidido pelo aymara Evo Morales, que tem dado uma nova imagem da Bolívia, tanto interna como internacional, como caso pioneiro na região. Mudaram os grupos hegemônicos, tanto no Executivo como no Parlamento, embora no primeiro, fora do presidente indígena, somente uma quarta parte de seus ministros tem tal origem, por não ser fácil encontrar gente suficientemente preparada.

Entre 2006 e 2008 se elaborou uma nova Constituição, hoje a mais inclusiva da América Latina, elaborada durante 16 meses por uma assembléia bastante representativa do país, porém com somente uma minoria de juristas especialistas na temática. Passou por dois forcejos e polarizações internas com a oposição, sobretudo nas terras baixas do oriente, onde vive 1/3 da população nacional com maioria e hegemonia não indígena e com a maior riqueza e recursos. Em 2008 esta oposição fez o possível para derrubar o regime. Mas, com apoio continental e internacional, se conjurou o intento e se facilitou mais bem uma concentração do texto constitucional que seria apresentado ao referendum, o qual finalmente o aprovou com 61% de apoio em janeiro de 2009. Nela se reconhece o caráter plurinacional e intercultural do Estado e de suas instituições (incorpora, por exemplo, autonomias indígenas com seu próprio governo e esquema judicial). Propõe como ideal o suma qamaña, isto é, conviver todos bem (e não uns melhor que outros) tanto entre si, como com a natureza. Agora lentamente se procura pô-la em marcha com a nova Assembleia Legislativa eleita em fins de 2009, com 2/3 de maioria oficial (indígena + não indígena). É um processo democrático com luzes e sombras, mas que já gerou um claro giro de atores e enfoques, favorável à inclusão indígena. Mas, é demasiado cedo para julgar os seus resultados.

Equador (35% indígenas, majoritariamente quíchuas e outros 13 grupos menores):

O Equador é o único país com resultados comparáveis aos da Bolívia, porém em tom menor. A Coordenadoria de Nacionalidades Indígenas do Equador (CNOAIE), formada em 1986, criou ademais o partido Pachakutik em 1995, numa aliança com outros grupos de esquerda. Embora fosse minoritário, o mesmo conseguiu importantes mudanças constitucionais em 1998 (na época a mais favorável do continente) e em 2003 chegou a formar parte do governo, porém com um aliado militar que, com seu estilo populista, debilitou muito a organização e o partido dos indígenas e logo se inclinou às propostas neoliberais. Mas foi derrotado e em 2007 se estabeleceu um novo governo, presidido por Correa, mais aberto que os anteriores aos “pobres”, entre os quais obviamente estão os indígenas. Convocou também uma nova Constituição, aprovada em 2008, que, além do obtido na anterior também adota elementos como o “estado plurinacional”, o sumak kawsay (= viver bem) e é a primeira a falar de “os direitos da Mãe Terra”, tema posteriormente retomado também por Evo na Bolívia. Mas, não toma tão em conta as especificidades dos “indígenas”.

México:

Em cifras absolutas, o México tem a maior população indígena do continente: 13 milhões, em 62 grupos, embora representem apenas 13% do total. Suas maiores percentagens (25% ou mais) estão em Chiapas e outros estados do sudeste. Em termos biológicos seriam muito mais, porém desde a Revolução de 1917 se fomentou sua assimilação a um novo país e estado “mestiço”, como o que anos depois também propôs o MNR na Bolívia. Este processo obteve bastante êxito, de modo que na atualidade apenas uns 13% se consideram indígenas e os demais já estão caracterizados e somente se consideram “campesinos” ou mexicanos urbanos. Em seu caminho o México se tem ido acercando cada vez mais aos Estados Unidos, com os quais subscreveu um Tratado de Livre Comércio (TLC) que abria muito mais o país aos interesses econômicos de seu vizinho.

Como contraponto, no mesmo dia em que entrava em vigor esse TLC 91-1-1994), se iniciou em Chiapas a rebelião indígena zapatista, que conseguiu sacudir a consciência nacional e internacional, implantando inclusive certas autonomias indígenas locais, tendo também contribuído para uma organização maior dos povos indígenas em outros estados do país. Em 2001, depois de uma longa macha pelo país e uma multitudinária concentração na capital, tentou em vão que o Parlamento transformasse favoravelmente a Constituição Federal do país. A forte presença estatal e de interesses empresariais, junto com as fortes emigrações laborais às cidades e aos Estados Unidos bloqueiam essas reivindicações.

Guatemala (50% indígenas de 24 grupos em sua maioria da família maya):

Talvez seja o país mais polarizado política e etnicamente da América Latina. Trinta e seis anos de luta armada provocaram 150.000 mortos (incluídos 422 massacres) e 50.000 desaparecidos; dos casos documentados, 75% eram indígenas (Informe Nunca más). Houve sólidas organizações indígena-camponesas (como o CUC, da Prêmio Nobel Rigoberta Menchú) e as comunidades em resistência na selva. Com os acordos de paz, apoiados pelas Nações Unidas, entre 1994 e 1996 se fizeram inovadoras propostas para uma reforma constitucional; porém em 1999 elas foram rechaçadas por um referendum no qual participaram somente 18%, o que refletia a desconfiança e o temor ainda forte da população; um ano antes, o bispo que coordenou o detalhado informe Nunca más havia sido assassinado dois dias após tê-lo entregue. Pese a esse revés, as organizações persistem em seus esforços, embora sem resultados mais tangíveis.

Peru (37% indígenas; 30% quéchuas, 4% aymaras, 3% de outros 68 grupos):

O Peru é o país andino que mais se manteve à margem, após a guerra interna entre Sendero Luminoso (um grupo maoísta com pouca sensibilidade indígena) e o exército nos anos 80, que provocou uma guerra interna que deixou 70.000 mortos, em sua maioria não beligerantes. 75% eram indígenas, segundo a Comissão da Verdade. Embora os lugares mais organizados tenham sobrevivido melhor, todo o tecido social ficou muito desfiado e, desde então, prevaleceram governos de direita. As eleições de 2006 já mostraram o desejo de mudança, sobretudo na Serra Andina e na Amazônia, onde há maior concentração indígena. As principais organizações e mobilizações dos últimos anos atuam em reação aos efeitos negativos das multinacionais, das minas na Serra e petroleiras na selva.

Em outros 14 países os indígenas são minorias demográficas mais marginais (0,4 a 15%), porém em muitos deles há sólidas organizações que, com certos apoios internacionais (IBIS, OXFAM, etc.) obtiveram bons resultados.

No Caribe insular e continental e no Brasil há, ademais, importantes setores afro-descendentes. Sua história e problemática é distinta, porém próxima à dos indígenas. Sem embargo, até agora a Companhia não lhe deu uma atenção específica, salvo no Haiti e na Jamaica, onde abrangem toda a sua população.

Até fins de 2009 tem havido uma forte aliança continental entre Bolívia, Cuba, Equador e Nicarágua, e mais outros aliados modernos como Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile [2]. Embora seu denominador comum seja ganhar maior autonomia regional frente aos Estados Unidos, a temática dos direitos indígenas também está presente, em diverso grau, em sua agenda, sob certa liderança boliviana. Em troca, no outro setor latino-americano, liderado por México, Colômbia (e desde 2010 provavelmente também Chile) prevalece a presença e dependência dos Estados Unidos e de seu modelo de globalização neoliberal.

Está a Companhia  de Jesus fazendo “crescer seu compromisso com eles”? Qual é  sua opinião sobre os “grupos de trabalho” que deveriam formar-se nas Conferências?

No que se refere à América Latina, na maioria das províncias há este compromisso com indígenas, embora com a redução de pessoal não possa ser muito amplo e nem sempre é visto como prioritário, sobretudo em províncias mais hipotecadas, por ter que atender grandes instituições.

Alguns compromissos atuais vêm desde os tempos em que as províncias consideravam importante ter sua própria “missão indígena” interna (Mato Grosso no Brasil, Tarahumara e Chiapas no México, Marañón no Peru) e tiveram a agilidade de atualizar-se em enfoques e metodologia, embora dispondo de muito menos pessoal. Os novos compromissos têm surgido ou de decisões e planificações a nível de província (por exemplo, América Central, Chile), ou por iniciativas e vocações pessoais (por exemplo, Equador, Venezuela) ou ainda, por uma combinação de ambas.

Como ponto de partida é preciso ressaltar as múltiplas dimensões do compromisso com os povos indígenas: a social e política, a pastoral, teológica com forte componente de diálogo inter-religioso, e inclusive seu potencial inspirador para novas utopias nesse mundo tão desgastado. Chamarei a atenção sobre algumas tensões dialéticas.

Entre as instituições e a inserção. Com a nova missiologia, foi fechada a maioria dos antigos internatos que cheiravam demasiado a “civilizadores” e se enfatiza mais a convivência, sem, no entanto, descartar a institucionalização da igreja local inculturada, nem outras instâncias civis. Variantes da mesma tensão poderão ser: Converter, instalar a Igreja ou acompanhar? Como combinar o acompanhamento, a pastoral e o fortalecimento político? O recém falecido Ronco Robles (MEX) se inseriu durante muitos anos numa pequena comunidade Tarahumara. Porém, com surpresa, foi chamado pelos indígenas zapatistas de Chiapas no outro extremo do país – havendo jesuítas mais próximos – para que os assessorasse em seus acordos com o governo. Argumentaram: “Tu, sim, podes compreender-nos, depois de tantos anos convivendo numa comunidade, e não tens ambições ocultas”.

Compromisso duradouro com um povo e disponibilidade. A partir da perspectiva de governo esta tensão se expressa também entre saber interpretar, acompanhar e orientar os carismas de cada um e poder contar com eles para cobrir agulheiros em lugares indispensáveis. Marcos Recolons, hoje na Cúria Romana depois de muitos anos entre indígenas da Bolívia, comentava que o compromisso (institucional e/ou pessoal) com um povo indígena podia demandar 60 anos, porque implica inversões temporãs e longas (por exemplo, para aprender a língua e, a partir daí, entra na cultura) e depois ritmos distintos para obter e consolidar resultados. Da mesma forma, alguns, vendo outros maiores que tiveram êxito nesse tipo de compromisso, às vezes comentam que são “admiráveis, porém não imitáveis”.

Vocações indígenas à Companhia. Nós o propusemos com freqüência e temos já vários casos, sobretudo (porém não só) na Bolívia. No entanto, por nossas origens sociais e culturais e nosso próprio modo de ser, não é fácil flexibilizar nossos estilos internos para que eles se sintam “em casa”. Por outra parte, dadas as privações e a discriminação nos lugares de onde provêm, alguns desses indígenas-SJ tendem, depois, a realizar-se melhor em outros ambientes sociais e culturais, mais do que em seu próprio meio.

“Grupo de trabalho” em cada Conferência. Pode ser útil a experiência da atual Coordenadoria de Solidariedade e Pastoral Indígena na América Latina. A mesma não nasceu de cima para baixo, senão a partir das bases, por sentir a necessidade de apoiar-nos, estando muitos de nós em lugares tão periféricos. Pouco a pouco a Internet também chega a vários desses lugares, facilitando os intercâmbios, porém sem chegar a substituir o ‘plus’, o mais que dão os encontros físicos. Estes se realizam cada dois anos preferencialmente em algum dos lugares de trabalho e com notável participação da população local. Dentro das inevitáveis restrições pressupostas, intenta-se que participem jesuítas (e/ou leigos das obras) e também indígenas, reservando alguém momento a mais para jesuítas. Combina-se o intercâmbio de experiências com determinados temas, como: espiritualidades indígenas, diálogo intercultural e inter-religioso, participação política, ecologia, postulados para a CG35… O Secretário para a Justiça Social em Roma, ou seu delegado, além de provinciais locais e gente da Conferência dos Provinciais da América Latina – CPAL tem participado regularmente.

A Coordenadora refletiu longamente com a CPAL sobre nosso vínculo estrutural e, no final, optou-se por ser um subsetor dentro do Setor Social na CPAL, com o que o nosso coordenador mantém um vínculo permanente com a estrutura de governo. Porém o social, sendo fundamental, não esgota as dimensões do trabalho como indígenas. Em alguns lugares se conseguiram boas relações com equipes de reflexão teológica e pastoral e com algumas (poucas) instâncias universitárias. Também se tem buscado vínculos com o Programa de migrantes e com Fé e Alegria, embora sem muito êxito.

Temos evitado reduzir-nos a um simples grupo de amigos ou “homólogos”, considerando a importância que teve e tem este apostolado como opção e fonte de inspiração para toda a Companhia, embora em termos demográficos nem os indígenas, nem os jesuítas a eles dedicados sejamos muitos.

Na Bolívia, nos anos 50 a então vice-província da Bolívia já havia tomado uma clara decisão pelos indígenas, facilitando a aprendizagem da língua quéchua aos estudantes e iniciando as primeiras obras rurais. Entraram também os primeiros quéchuas na Companhia. Na planificação dos anos 1977-82, esta continuava sendo um de seus eixos-chave, tanto a partir da perspectiva pastoral como social e inclusive lingüística. Vários jesuítas bolivianos têm acompanhado de perto as inovações e avanços que tem havido nas três frentes, incluído o tema político, até chegar à situação atual iniciada em 2006. Entre os jesuítas, há toda uma gama de opiniões e opções sobre esta situação. É impossível manter-nos à margem. Oxalá saibamos acompanhar criativamente esse desafio em direção a uma sociedade plural mais inclusiva, num clima de permanente discernimento.

Notas:
[1]  Em 2008, antes do conflito de Bagua, o presidente do Peru comparou os indígenas e suas organizações com “o cão do hortelão que não come e não deixa comer”.
[2] Desde 2010, o novo governo eleito no Chile é de signo contrário e o mesmo poderia se passar em algumas das eleições previstas proximamente em outros países, numa ou noutra direção, segundo o lugar.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=34303

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