A recente divulgação da POF – Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009, do IBGE, fornece dados instigantes para uma reflexão mais profunda sobre a injustiça social com que convivemos. De cara vale a pena ressaltar que a POF confirma o que outras pesquisas vinham apontando e que merece ser festejado com rojões de festa de São João: uma pequena, mas significativa, redução na desigualdade. Comparando dados da POF de 2002-2003 com a atual, a distância média de despesas per capita entre os 40% com menores rendimentos e os 10% com maiores caiu de 10,1 para 9,6 vezes. Ou seja, bastou vontade política (melhora do salário mínimo, transferências de renda, mais emprego e mais escolaridade, entre outros) e em poucos anos sinais de mudança começam a aparecer.
Mas a desigualdade brasileira é múltipla e complexa, e uma análise mais atenta dos números nos recomenda um otimismo apenas moderado. Por exemplo, tomando os extremos, as despesas médias mensais por famílias, considerando aquelas até 2 salários mínimos de rendimento total (25,6% das famílias brasileiras) e as de mais de 25 salários (aproximadamente 3,8% das famílias), a diferença é de 18,9 vezes. No caso do rendimento total médio familiar, comparando as mesmas classes, a diferença está acima de 30 vezes!
Mais importante e preocupante é o indício do que se passou entre 2002-2003 e 2008-2009 em termos de gênero e cor. Piorou a distribuição de despesa total média mensal entre as famílias lideradas (pessoa de referência na linguagem da POF) por homens e aquelas lideradas por mulheres. A diferença encontrada na renda média foi de ordem de 20% na atual pesquisa, quando tinha sido de 15% na anterior. Já as famílias lideradas por pessoas brancas têm uma despesa total média mensal 28% superior à média nacional. Enquanto isto, as famílias lideradas por pessoas de cor preta tinham 32% a menos daquela média e os pardos 28% a menos.
Estas desigualdades sociais se articulam e, às vezes, se acentuam quando examinadas em combinação com outros critérios. As despesas médias mensais per capita das famílias entre os 40% com menores rendimentos e os 10% com maiores, que é 9,6 vezes no país, pode variar entre 4,8 vezes em Roraima e 15,7 vezes no Piauí. Enquanto ela é, em média, 6,9 vezes na Região Sul, ela chega a 11,4 vezes no Nordeste. A distância média diminui nas zonas urbanas (8,8 vezes) e é maior nas zonas rurais (10,3 vezes). Isto só completa o tabuleiro da desigualdade, mostrando que quanto mais pobre o conjunto, maior ainda é a desigualdade no seu interior, não importa o critério utilizado.
Enfim, pesquisas como a POF apontam o tamanho hercúleo da tarefa de mudança deste nosso desigual país. A transformação deste quadro só pode ocorrer para valer com mudança nas relações de desigualdade, em última análise nas relações desiguais de acesso a recursos e, sobretudo, de poder. Senão, resta a sensação de que melhoramos um pouco para pouco mudar no fundo.
* é diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)
Publicado em O GLobo. Enviado pelo autor.