Sem-terra, mas com dignidade

Fernando Antônio de Lima *

“Temos esse direito; mas é um direito que não temos o direito de exercer” – Shakespeare

A interpretação jurídica deve ser totalizante. As partes e o todo interagem dialeticamente1. O juiz brasileiro deve enxergar o litígio que se lhe é apresentado, como algo inserto num País cheio de contradições sociais: visualizar a parte (o caso concreto), sem se esquecer do todo (as iníquas relações de distribuição de poder), e ver o todo, sem abandonar a parte.

Esse modo marxista de analisar os conflitos jurídicos adapta-se a uma visão pós-moderna, por intermédio da qual pensar o direito significa pensar a crise de eficácia do Direito, principalmente no tocante à não concretização dos direitos fundamentais da maior parte da população brasileira2.

Como, porém, adaptar-se esse modelo teórico à prática, no seio dos conflitos agrários que chegam ao colo dos juízes?3

O integrante do Judiciário brasileiro deve ter em mente que, neste País, prevalece o agronegócio – um modelo baseado numa modernização conservadora, em que se ajuntam o grande capital e o latifúndio, sem a superação da herança agrária estruturada no século XIX. É a modernização técnica, sem reformas, sob o patrocínio fiscal e patrimonial do Estado – o que gera maior concentração de riqueza fundiária, destruição do meio ambiente, expulsão dos trabalhadores no campo e intensificação do desemprego. Em 2003, as grandes propriedades, que representavam 1,6% dos imóveis (69.123), ocupavam 43,7% (183.463.319 ha), ao passo que as pequenas propriedades, que representavam 85,2% dos imóveis (3.611.429), ocupavam apenas 20,1% da área4.

Essa a visão totalizante que o juiz deve carregar, quando do julgamento do litígio agrário. E, aliado a esse conhecimento teórico, não se dispensa um pouco de sangue na veia, e sensibilidade no coração, para captar o grito áspero de dor daqueles que padecem das doenças que o latifúndio moderno e capitalista espalha, tal qual praga, que em vez de atassalhar, alimenta as plantas transgênicas fabricadas para sustentar o monopólio dos defensivos agrícolas.

É preciso, pois, abandonar o processo, gélido e pérfido, e enxergar, com olhos de ver, e de sentir, as estruturas ósseas, gentis e perfulgentes, com sangue de pouca tinta, que não vivem, apenas aguentam, que não moram, apenas se encobrem, nas lonas, nas taperas e nas casinhas de pau-a-pique. No gabinete refrigerado, o juiz não sente as dores alheias, já que “na abastança, é impossível compreender as lutas da miséria”, diria o velho Machado de Assis.

Recém-ingresso na Magistratura, minha primeira aventura foi em Rosana-SP, no Pontal do Paranapanema. O Instituto de Terras do Estado de São Paulo ingressou com uma ação de reintegração de posse, para que os invasores abandonassem uma pequeníssima porção que pertencia ao Estado mais rico da Federação. Antes de decidir, fui, num domingo, visitar os invasores. Eram, em sua maioria crianças, idosos e mulheres; algumas grávidas. Numa das casinhas de pau-a-pique, estavam alojados vários infantes, um dos quais, não me esqueço, deficiente mental.

Aqueles olhinhos grandes, afundados no rosto esquelético, lembravam a pequena Helena, que em “Humilhados e Ofendidos”, de Dostoievski, mendigava na rua, de uma Rússia aristocrática e burguesa; lembravam a pequena Cosette, que em “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, escravizou-se na taverna dos Ternádiers, numa França também aristocrática e recém-apresentada aos novos ares perfumados e verdejantes de uma Revolução que estava no porvir.

É óbvio que a liminar, pedida pelo Instituto de Terras, foi negada. Foi negada, porque o Instituto era o Executivo Estadual em atuação. Era um dos poderes, limitado pelos limiares de uma Constituição, em que a dignidade humana é o valor-mor, dignidade, essa, para cuja concretização se reclama a busca por uma sociedade livre, justa e solidária. Isso não é poesia constitucional, é norma, ou mesmo princípio, de obrigatória observância. Não é programa de ação, é obrigação constitucional.

Estado que queira expulsar esses invasores, deve organizar-lhes moradia. Estado que queira promover a reforma agrária, deve combater a grilagem e o latifúndio. Estado que queira ser justo, deve criminalizar não os que reivindicam a justiça, mas aqueles que atravancam o desenvolvimento humano brasileiro.

Não temamos os pobres, os sem-terra. Temamos o que existe dentro de nós, poetizava Victor Hugo, em “Os Miseráveis”. Juízes, temos que nos desfazer dos preconceitos, dos supostos perigos externos, que uma mídia corrupta, defensora da miséria, do latifúndio, do agronegócio e da morte, insiste em despejar nas nossas consciências.

O Estado -no que se inclui, obviamente, o Judiciário- deve deixar de ser o Javert – aquele policial, do romance de Victor Hugo, que corporifica a lei que petrifica o coração e a alma, que persegue, a todo o tempo, aquele que furtou um pão para alimentar a miserável família.

Se os juízes continuarmos a rasgar a Constituição, se os juízes continuarmos a interpretar as questões agrárias como a luta entre invasor-moço-mau X latifundiário-moço-bom, se os juízes continuarmos a fazer ouvidos moucos à empresa capitalista rural monopolizada pela cana-de-açúcar, destruidora do meio ambiente, e corporificada no agronegócio, se os juízes continuarmos a criminalizar os movimentos sociais, seremos apenas um simulacro de juízes, em que nossas penas escreverão sentenças tecnicamente limpas, mas imersas numa imundície moral, num pântano de injustiça, num calabouço de indignidades.

Com isso, poderemos ser acusados, perante o povo deste Brasil, povo sofrido e em cujo caminho apontam os horizontes da ignorância e do sofrimento, de juízes que juram aplicar a Constituição, mas que contribuem por perpetuar a miséria, a fome e a morte no campo. Concordaremos, então, com Ovídio, para quem “o Tribunal está fechado para o povo”. E, o pior, seremos comparados àqueles pastores impostores, descritos por Shakespeare, em “Hamlet”, “que ensinam o áspero e espinhoso caminho do céu, enquanto, fazendo pouco caso dos próprios juramentos, libertinos jactanciosos e indiferentes, pisam a senda florida dos prazeres, distantes da própria doutrina que proferiram”.

NOTAS:

1. CELSO NAOTO KASHIURA JÚNIOR. Crítica da igualdade jurídica – contribuição ao pensamento jurídico marxista, p.43. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
2. EDUARDO C. B. BITTAR. O direito na pós-modernidade, p. 8. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
3. Marx propõe a unidade entre teoria e prática: a teoria não é mera especulação abstrata, visa à transformação social (Celso Naoto Kashiura Júnior, ob. cit., p. 45).
4. Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA, p. 22 e 23, volume 34, nº 2, JUL/DEZ – 2007.

* Juiz de direito em Ilha Solteira-SP. Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD)

http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=48792

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