Mas não tenho cacife nem faz parte de minha missão me referir ao grande mestre em sua qualidade de literato, filósofo e artista. Quero que esta nota (que deve ser breve, pela urgência de torná-la pública) se refira a seu aspecto mais importante: os direitos humanos.
Digo isto, porque, junto ou acima de sua lendária celebridade como escritor no mundo todo, nada foi mais importante que sua defesa da condição humana. Saramago não foi apenas um literato que expressou, através de sua arte, uma visão humanista e progressista do mundo. Foi um homem comprometido, um observador e um ator consciente e corajoso, um batalhador que assumiu riscos radicais, desde que emergeu, em sua juventude, de uma região do mundo dominada pelo fascismo e o obscurantismo, até anos recentes.
Diferente das outras duas figuras históricas com as quais possui grande afinidade, Sartre e Bertrand Russell (1872-1970), Saramago nasceu numa família que não provinha da burguesia intelectual francesa, nem, menos ainda, da nobreza britânica, mas de uma família de trabalhadores pobres que lutava contra a devastadora miséria das vielas da Freguesia de Azinhaga, e que se deslocou a Lisboa logo que fora possível.
Se Portugal foi um estado fascista até o começo da década de 70, podemos imaginar como se vivia naquele sofrido extremo da Europa quando Saramago se aproximava dos 15 anos, com a sangrenta imagem do falangismo espanhol batendo nas fronteiras de Portugal, e as atrocidades do Salazarismo em sua própria terra.
A vida de Saramago é pública e bem conhecida. Quero falar um pouco de minhas vivências sobre o grande escritor, a partir de minha condição de ativista dos Direitos Humanos.
No ano 1989, quando um grupo de garotos e meninas inexperientes tentou evitar uma quarta tentativa de golpe militar na Argentina, num esforço generoso de defender a democracia, os ativistas foram alvo de uma tocaia tendida pelo exército, onde muitos deles foram metralhados, queimados com bombas de napalm, e alvejados por bazucas. Mais de 40 foram capturados e submetidos a bárbaras torturas. A democracia não estava grata a seus defensores. Pelo contrário, aqueles infames e covardes politiqueiros odiavam esses jovens ingênuos que tinham estorvado o objetivo das máfias políticas argentinas: reconciliar-se com os militares para continuar a repressão pela via “legal”.
Este caso, chamado La Tablada, pelo nome da cidade onde foi tendida a cilada, é muito longo e complexo. Suas sequelas duraram até o ano 2000. Onze anos após o massacre, as vítimas que foram capturadas vivas e torturadas, estavam cumprindo, com sentença sem julgamento, penas que iam de 20 anos a prisão perpétua. Os corruptos juízes tinham entregado os documentos ao procurador militar, para que ele decidisse, mantendo longe os advogados da defesa, e proibindo a possibilidade de recurso. Durante o governo mafioso e neofascista de Menem (1990-1999), Argentina desobedeceu as exigências da CIDH da OEA (chefiada na época pelo grande mestre dos DH na América do Sul, Hélio Bicudo) de submeter a julgamento àquelas vítimas.
Em 2000, quando assumiu De La Rua, um bacharel ardiloso, as vítimas pensaram que teriam uma esperança. O novo presidente não era um terrorista de estado, como Menem, nem estava implicado em crimes contra a Humanidade como aquele; era apenas um moderado colaborador da direita que podia ser pressionado. A única alternativa dos jovens era morrer dignamente, e começaram uma greve de fome que, em total, durou quase três meses.
Foi então que soube da generosidade de Saramago. Não foi o único prêmio Nobel. Também, Rigoberta Manchu, Pérez Esquivel e outros colaboraram conosco. No entanto, o mais comovente foi sua humildade e objetividade. Ele escreveu uma carta ao Presidente De La Rua, quem deve ter tomado conhecimento do escritor pela primeira vez na vida.
Não lembro literalmente de todo o conteúdo, e não quero distorcê-la, mas lembro seu espírito e as primeiras linhas.
Ele dizia que um prêmio Nobel não tem nada de especial, mas, às vezes a sociedade distingue algumas pessoas, e isso torna a voz delas pessoas mais escutada que a de outras. Não era só modéstia. Era o sentimento profundo do valor relativo das premiações, que tanto deslumbram os buscadores de prestígio e os temperamentos preconceituosos.
Saramago lutou por essa e por muitas outras causas até o final, e é muito difícil avaliar numa rápida olhada quando lhe devem as causas nobres, progressistas e humanitárias ao longo de uma vida, primeiro, assombrada pelo fascismo tradicional, depois, pelo fascismo de mercado, e atualmente, pelo vandálico neoliberalismo.
E foram essas forças trevosas as maiores inimigas do afável e simples Seu José.
Saramago foi tortuosamente acusado de antisemita, por ter expressado, com uma isenção e serenidade alheia a quase todo o resto da esquerda (que generaliza o terrorismo de estado israelense a toda a ideologia sionista), um fato singelo e objetivo: não pode usar-se o pretexto de ter sofrido, para provocar o sofrimento dos outros.
Mas esta posição de crítica objetiva ao terrorismo israelense, o diferenciando do sionismo em geral, também compartilhada por Noam Chomsky e dúzias de intelectuais judeus e não judeus, não é seu principal gesto em defesa dos valores humanos.
Saramago desafiou forças muito mais intensas, ancoradas na península Luso-Ibérica desde os tempos dos reis visigodos, como a superstição e o nacionalismo. Neste último sentido, o escritor se definiu em favor de uma federação Espanha-Portugal, ressaltando a importância da fraternidade das nações e desprezando a ideia fetichista de que a pátria pode ter sentido independente dos habitantes. Ele voltava assim, as fontes mais puras do comunismo clássico, antes do chamado “nacionalismo de esquerda”.
Como Giordano Bruno, Galileu, Miguel Servet, Goya, e outras celebridades capitais na história do pensamento e da ação, Saramago foi alvo do ódio da Igreja Católica. Ao longo da vida cultural de Ocidente, foram poucos os pensadores que ousaram dizer, singelamente, que não existia nenhuma prova da existência de Deus, e que as pessoas acreditavam por diversas razões (entre elas, o temor).
Com efeito, até as mentes consideradas lúcidas, esmolavam moderação da crueldade doentia do Santo Ofício. A colocação de uma filosofia realmente humanista (que teve alguns traços nos hedonistas e céticos gregos) só conseguiu consistência com os mecanicistas franceses, e especialmente com as correntes que surgem do marxismo e do anarquismo.
Saramago se insere nesse grupo de vozes esclarecidas, modestamente seguras, sem empáfia nem alarde. Teve a seu favor o fato de ter vivido numa época em que as fogueiras da Inquisição parecem apagadas… ou amortecidas. Sua defesa do humanismo, seu espírito de tolerância, e seu reconhecimento da beleza de alguns textos teológicos (a despeito de seu vácuo conceitual) são únicos em nossa época. Compartilha com Sartre, Russell e Camus a desmistificação da sacralidade. Mas, Sartre expressa suas ideias não com o senso comum, mas com uma filosofia de compreensão árdua; Russell, como quase todo cientista, não atingiu a popularidade que consegue um artista ou um literato; e Camus, apesar de seu agnosticismo e humanismo, defende uma solução egoísta e individual, porque o homem que ele liberta encarna a luta pessoal e não a solidariedade.
Creio que Saramago está ainda em vantagem com Noam Chomsky, pois sua humildade e objetividade o conduzem a uma visão equilibrada do universo. Ele disse que a Bíblia é um “manual de maus costumes, […] um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”, mas nada há nisto que não possa ser demonstrado. Não é o produto de nenhuma parcialidade, mas do amor e preocupação por uma humanidade sadicamente ferida pelas trevas espalhadas pelas teocracias.
José Saramago nunca diminuiu seus esforços pela Humanidade, e os manteve ativos em quanto sua saúde física permitiu. Ninguém pode contra uma doença terminal, porque justamente, essa fragilidade faz parte de nossa natureza biológica. No ano passado tentei me comunicar com ele, para adicionar seu nome à lista de Prêmios Nobel e outras celebridades que pediram a libertação de Cesare Battisti. Não tenho dúvida de que ele teria aderido com entusiasmo. Mas, sem que eu soubesse, ele estava sofrendo os estragos finais da leucemia e meu e-mail não chegou a destino.
Ao transformar-se de novo a brilhante mente e a fina sensibilidade de José Samarago, num conjunto de células sem vida, as perdemos de maneira definitiva. Sabemos que nem um átomo de seu eu sobreviverá em lugar algum. Mas fica sua obra e sua lembrança para iluminar a noite do mundo supersticioso, racista e sanguinário que ainda vivemos.
* Colaboração de Carlos Alberto Lungarzo, professor titular na Unicamp, atualmente aposentado, membro da Anistia Internacional, para o EcoDebate, 21/06/2010
http://www.ecodebate.com.br/2010/06/21/imaginacao-e-direitos-humanos-uma-breve-lembranca-de-jose-saramago-artigo-de-carlos-alberto-lungarzo/