A saúde não é prioridade no modelo agroindustrial

Unisinos – Uma Comissão formada pelo governo da Província de Chaco, na Argentina, analisou estatísticas em zonas com uso intensivo de agrotóxicos. Em uma década triplicaram os casos de câncer em crianças e quadruplicaram os nascimentos com malformações.

A reportagem é de Darío Aranda e está publicada no jornal argentino Página/12, 14-06-2010. A tradução é do Cepat.

É a primeira vez que uma Província reúne estatísticas sanitárias vinculadas a zonas com uso intensivo de agrotóxicos. Os dados são contundentes e confirmam as denúncias que há anos a população vem fazendo: os casos de câncer em crianças triplicaram e as malformações em recém-nascidos aumentaram 400%. Isso aconteceu em apenas uma década e os números correspondem a um estudo oficial da Comissão de Pesquisa de Poluentes da Água de Chaco, criada pelo governador em dezembro passado.

“Primeiro Relatório” é o simples título do documento que foi entregue à Casa de Governo provincial e ao Ministério da Saúde local. Os casos de câncer estão focalizados na localidade de La Leonesa, próximo a Resistencia e epicentro das denúncias pelo uso de herbicidas e inseticidas. As malformações correspondem a dados de toda a Província, onde – sempre segundo dados oficiais – se dão 17 casos por mês. A Justiça ordenou frear as fumigações e exigiu urgentes estudos de impacto ambiental.

Iván gostava de ver as avionetas que sobrevoavam sua casa. Tinha seis meses, ouvia os motores e pedia ‘upa’ para sair ao pátio e saudar a passagem do aeroplano. Laura, a mãe, o pegava e levava ao jardim para satisfazer o desejo do bebê. Com a passagem das avionetas, Iván aprendeu a saudar com a mão, ria e festejava o voo rasante. Aos 12 anos, foi detectado que estava com leucemia. Foi levado com urgência ao Hospital Garrahan, sofreu oito meses de quimioterapia e dois anos de tratamento intensivo.

“Os médicos me perguntaram se morávamos perto de plantações com agrotóxicos. Apenas então me dei conta de que a avioneta que saudávamos, eu e o bebê, jogava veneno no campo em frente à minha casa. O mundo veio abaixo”, explica Laura Mazitelli, do bairro La Ralera de La Leonesa. Isso foi lá em 2002, Iván se recuperou, e Laura se transformou em uma ativa denunciadora dos agrotóxicos. Trataram-na de louca e contrária ao desenvolvimento, mas os casos de câncer se multiplicaram e os moradores começaram a se organizar.

La Leonesa tem 10 mil habitantes e está a 60 quilômetros de Resistencia. Há aproximadamente uma década que denunciam o efeito sanitário dos agrotóxicos utilizados em plantações de arroz. Apontam o glifosato, endosulfan, metamidofos, picloran e clopirifos, entre outros químicos usados também nas lavouras de soja.

Pela mobilização constante e a reivindicação de estudos, o governo de Chaco criou, por decreto de 9 de dezembro de 2009, a Comissão Provincial de Pesquisa de Poluentes da Água. Incluiu a participação do Ministério da Saúde Pública, a Administração Provincial da Água (APA), o Ministério Federal da Saúde, a Universidade Nacional do Nordeste (UNNE) e o Ministério da Produção. “Terá como missão recolher, estudar, coordenar e conduzir as ações para garantir e otimizar a poluição de arsênico, agrotóxicos e outros”, assinala o breve decreto, de apenas duas páginas.

Cinco meses após sua criação, a Comissão Pesquisadora finalizou seu primeiro relatório, que foi publicado pelo jornalista Brian Pellegrini, do sítio de notícias Chaco Día por Día.

“A respeito de patologias oncológicas infantis, leucemias, tumores cerebrais e linfomas, se observa um maior número de casos anuais a partir de 2002. Em La Leonesa, no período 2000-2009 se comprova um aumenta notável, que triplica a ocorrência de câncer em crianças”, afirma o trabalho da Comissão oficial, focalizado em La Leonesa.

Na década de 1990-1999 se registrou em média 0,2 caso por ano (1 caso a cada 60 meses). Entretanto, no período 2000-2009 foi contabilizado 0,6 caso por ano (1 caso a cada 20 meses). “Os valores se encontram acima do esperado, aumentando-se consideravelmente nos últimos 10 anos, período em que os casos registrados triplicaram a ocorrência de câncer em crianças menores de dez anos”.

A média mundial de câncer em menores de 15 anos é de 12-14 casos para cada 100.000 crianças. Os dados oficiais de Chaco mostram que em La Leonesa o registro subiu para 20,2 casos. O relatório assinala a multicausalidade do câncer, mas chama a atenção: “Este aumento da casuística coincide com a expansão da fronteira agrícola (…) vulnerabilizando a saúde da população, devido ao fato de que as práticas e técnicas de cultivo incluem pulverizações aéreas com herbicidas cujo princípio ativo é o glifosato e outros agrotóxicos”. Todos os dados são do Serviço de Estatísticas do Hospital Pediátrico local e destaca que outros 25% dos casos são atendidos diretamente no Hospital Garrahan de Buenos Aires, razão pela qual os dados totais de casos são maiores.

Beatriz Nicolini é pediatra, trabalha há 25 anos com pacientes oncológicos, integra a Comissão oficial e confessa que, “apesar da magnitude dos dados”, eles não a assombraram. “Há tempo que vemos como os casos de crianças com câncer se multiplicam. Parece não parar. E mesmo que não haja uma única causa para esse aumento, os casos aumentaram simultaneamente ao aumento do uso de agrotóxicos, quer seja no arroz, quer seja na soja”, explica, e detalha que sobressaem os casos de leucemia, seguidos por tumores cerebrais e linfomas.

“Tatiana, 5 anos. Milagros, 8. María, 7. Francisco, 12. Victoria, 6 anos. São todos moradores com câncer. E o pior é que a lista continua. Todas as famílias simples estão passando o mesmo que nós”, lamenta Laura Mazitelli, a mãe de Iván, a que chamaram de “louca” e agora retruca: “Foram necessários tantos casos para reconhecer que estão nos envenenando?”.

As malformações aumentaram ainda mais. Quadruplicaram em uma década em toda a Província de Chaco os casos em recém-nascidos. No lapso de um ano, entre 1997-1998, houve no Chaco 24.030 nascimentos, 46 dos quais apresentaram malformações. Uma década depois, em doze meses entre 2008 e 2009, foram registrados menos nascimentos: 21.808, mas as malformações se multiplicaram: 186 casos. O relatório oficial destaca que se passou de um índice de 19,1 por cada 10.000 nascidos para 85,3. Os dados correspondem à Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de Neonatologia do Hospital Perrando, de Resistencia. De 1997 a 1998, houve uma média de 4,9 casos por mês. De 2001 a 2002, aumentou para 7,5 casos. E entre 2008 e 2009, subiu para 16,8 casos mensais.

O Ministério da Saúde federal informou que não se conta com estatísticas nacionais sobre o tema. Uma integrante da Comissão pesquisadora – que pediu para não ser identificada devido às “enormes pressões” que estão recebendo – considerou que “todos os que assinam o relatório têm muita experiência e antecedentes no que estudam, mas as empresas de arroz, de soja estão pressionando muito o Governo. Não sabemos como terminará, há muitos interesses em jogo”.

Dois integrantes da Comissão confirmaram que estão elaborando um segundo relatório que traz estatísticas oficiais sobre o aumento geométrico, em zonas com uso de agrotóxicos, de casos em que a gravidez é interrompida por abortos espontâneos, ocorre o aumento de problemas reprodutivos em adultos e um crescimento exponencial do câncer de mama. Não têm data definida para ser entregue às autoridades, mas alertaram para a possibilidade de “intromissões no trabalho da Comissão”.

O primeiro relatório foi entregue ao governador de Chaco, Jorge Capitanich, e ao Ministério da Saúde provincial no dia 08 de abril. A pesquisa oficial ressalta que foram incluídos apenas dados do serviço de saúde pública. “Tanto em dados estatísticos de doenças oncológicas infantis como em malformações em recém-nascidos não estão incluídos os registros de instituições privadas de saúde, nos quais as estatísticas são similares, aspecto que as aumentaria consideravelmente”.

O relatório da Comissão investigadora solicita que se tomem “medidas de precaução” em La Leonesa até que se realize um estudo de impacto ambiental e pedem que se estendam as análises para outras seis localidades que estariam nas mesmas condições: Gancedo, Napenay, Santa Sylvina, Tres Isletas, Avia Terai e Colonia Elisa.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=33450

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