Renda Básica de Cidadania e a Justiça distributiva. Entrevista especial com Leonel Cesarino Pessoa

Unisinos – “O desenvolvimento econômico dos últimos séculos seria mais que suficiente para que a pobreza do mundo estivesse, há muito tempo, erradicada”, constata Leonel Cesarino Pessoa.

Segundo ele, além da má distribuição de renda, a capacidade contributiva é outro fator que favorece o aumento da pobreza. Na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, o pesquisador diz que, no que se refere aos impostos diretos, a legislação institui um mínimo vital e o quantifica, mas o problema surge, justamente, com os impostos indiretos. “Nesse tipo de tributo, quem arca com o ônus fiscal é o contribuinte de direito, mas esse ônus é repassado para o contribuinte de fato, os consumidores finais. Esses podem ser muito pobres, cuja renda não ultrapasse a zona de mínimo vital. Nesse caso, eles deveriam pagar imposto? Para mim, é claro que não deveriam. Mas, no Brasil, eles pagam”. De acordo com Pessoa, “quem recebe até dois salários mínimos de renda familiar mensal gasta 53,9% do que ganha para pagar tributos”.

Na opinião do pesquisador, “iniciativas como a Renda Básica de cidadania surgem em razão de parte da população, no Brasil e em outros países, ganhar menos do que o essencial para viver”. Assim, menciona, programas de distribuição de renda sinalizam um avanço “no sentido de corrigir a injustiça do nosso sistema tributário e fazer justiça distributiva”.

Pessoa é graduado em Direito e Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, instituição na qual fez também o doutorado. Cursou pós-doutorado na New School for Social Research, Nova York e na Università Commerciale Luigi Bocconi, em Milão, na Itália. É professor do programa de mestrado e doutorado em Administração de Empresas na Universidade Nove de Julho, São Paulo. Confira a entrevista.

IHU On-Line – De onde surge a necessidade de o mundo globalizado pensar iniciativas como a Renda Básica de cidadania?

Leonel Cesarino Pessoa – Iniciativas como a Renda Básica da cidadania surgem em razão de parte da população, no Brasil e em muitos outros países, ganhar menos do que o essencial para viver. O desenvolvimento econômico dos últimos séculos seria mais que suficiente para que a pobreza do mundo estivesse, há muito tempo, erradicada. No entanto, os dados disponíveis são de conhecimento de todos. Ao lado da pobreza extrema, nós temos a péssima distribuição de renda. Isso acontece em vários países e, nesse quesito, o Brasil se destaca. De acordo com um livro recente, organizado pelo professor Ricardo Paes de Barros, de todos os países para os quais se tem dados disponíveis, 95% deles apresentam concentração de renda menor que a do Brasil. Por aqui, a renda apropriada pelo 1% mais rico da população é igual à renda apropriada pelos 50% mais pobres.

IHU On-Line – Em que sentido a Renda Básica de cidadania está relacionada com a capacidade contributiva?

Leonel Cesarino Pessoa – O princípio da capacidade contributiva aparece, hoje, nas Constituições de diversos países do mundo. No Brasil, ele apareceu, pela primeira vez, na Constituição de 1946 e, na Itália, na Constituição de 1948. Na Alemanha, apesar de não estar expresso na Constituição, o Tribunal Constitucional Federal entende que ele é expressão do princípio da justiça fiscal, que decorre da garantia de igualdade. Os direitos tributários sul-americanos sempre foram muito influenciados pelos direitos alemão e italiano. Na Itália, inicialmente, o princípio da capacidade contributiva foi interpretado como norma meramente programática. É como se ele não fosse propriamente uma lei que produzisse efeitos, mas uma norma que estabelecesse apenas intenções políticas. A partir dos anos 1960, no entanto, essa interpretação começou a mudar. O princípio da capacidade contributiva passou a ser interpretado como possuindo um conteúdo efetivo na proteção dos interesses, primeiro do contribuinte e depois do fisco. De acordo com essa nova interpretação, se a tributação deve ter por base a capacidade contributiva de cada um, onde não houver capacidade contributiva, não deveria haver tributação.

Em outras palavras, pessoas que não têm condições econômicas para pagar impostos não deveriam pagar imposto algum. A relação mais direta entre o princípio da capacidade contributiva e a Renda Básica vem daí. A aplicação do princípio da capacidade contributiva resultou no reconhecimento de uma zona de mínimo vital na qual não deveria existir tributação. Esse reconhecimento foi feito pela doutrina da Alemanha, da Itália e também do Brasil. O princípio da capacidade contributiva também foi interpretado como desempenhando um papel na proteção do interesse do fisco.

A garantia da Renda Básica também está associada à distribuição de renda, ou seja, ela surge em razão da péssima distribuição de renda. O princípio da capacidade contributiva poderia, pelo menos, em tese, cumprir uma função. Onde não houver capacidade contributiva, não deve haver tributação. Por outro lado, todas as situações que manifestam capacidade contributiva deveriam ser – todas elas – tributadas.

IHU On-Line – O que seria, em sua opinião, o mínimo vital para que o cidadão consiga viver com dignidade? Pensando na Renda Básica de cidadania, é possível quantificar isso em um valor determinado?

Leonel Cesarino Pessoa – Eu vou responder a partir da perspectiva da tributação. Em que medida essa teoria do mínimo vital é aplicada na prática, no Brasil? Esse é um tema complicado. Vamos por partes. Em princípio, no âmbito da doutrina do direito, o reconhecimento dessa zona de mínimo vital é pacífico. Todos concordam que deve haver uma zona de mínimo vital. Com relação à legislação, no entanto, nós temos duas situações distintas. No caso dos impostos diretos, a legislação institui um mínimo vital e o quantifica. Ele corresponde à zona de isenção. No caso do imposto sobre a renda, por exemplo, a renda mensal inferior a R$ 1499,15 (mil, quatrocentos e noventa e nove reais e quinze centavos) é isenta do imposto. No caso do IPTU, no município de São Paulo, por exemplo, todo imóvel cujo valor venal seja inferior a R$ 70.000,00 (setenta mil reais) é isento de IPTU. Todo o problema surge, no entanto, quando tomamos os impostos indiretos, o ICMS, por exemplo. Nesse tipo de tributo, quem arca com o ônus fiscal é o contribuinte de direito, mas esse ônus é repassado para o contribuinte de fato, os consumidores finais. Esses podem ser muito pobres, cuja renda não ultrapasse a zona de mínimo vital. Nesse caso, eles deveriam pagar imposto? Para mim, é claro que não deveriam. Mas, no Brasil, eles pagam. E muito. Estudo recente do IPEA aponta que, hoje, no Brasil, quem recebe até dois salários mínimos de renda familiar mensal, gasta 53,9% do que ganha para pagar tributos! Se a renda mensal dessa pessoa é, portanto, inferior a dois salários mínimos por mês, ela não estaria dentro de uma zona de mínimo vital, na qual tudo o que recebe é vital para sua sobrevivência? No Brasil, essa pessoa gasta mais de 50% do que recebe em tributos indiretos. Os impostos indiretos incidem inclusive sobre a cesta básica! Eu penso que isso precisa ser revisto com urgência. Esse estudo do IPEA também aponta que as pessoas que recebem mais que 30 salários mínimos gastam apenas 29% do que recebem com tributos. Isso mostra quanto o sistema tributário brasileiro é regressivo.

IHU On-Line – Como a inscrição do princípio da capacidade contributiva na Constituição contribuiu para equacionar o problema da justiça fiscal?

Leonel Cesarino Pessoa – O que eu costumo dizer é que, até hoje, esse princípio foi muito pouco aplicado na prática. Eu pesquisei todas as decisões do Supremo Tribunal Federal que aplicaram o princípio da capacidade contributiva e publiquei o resultado no último número da Revista Direito GV. Lá, mostro como, desde 1988 até o ano passado, esse princípio da capacidade contributiva apareceu em pouco mais de 70 acórdãos do Supremo. O primeiro resultado, portanto, indica que ele é muito pouco aplicado. Se examinarmos, então, as situações nas quais ele é aplicado, o resultado também não é muito diferente. Vou dar um exemplo do tipo de aplicação do princípio que é feito pelo Supremo: há duas empresas, uma grande e outra pequena, e ambas têm de pagar uma determinada taxa. O Supremo decidiu que, ainda que a Constituição disponha literalmente que o princípio da capacidade contributiva deva ser aplicado apenas a impostos, ele deve ser aplicado também às taxas. Do ponto de vista da justiça distributiva, esse tipo de problema é, a meu ver, muito pouco relevante. Diria que é quase irrelevante. Não tenho conhecimento de ninguém que tenha levado, até o Supremo, questões como, por exemplo, da incidência dos impostos indiretos sobre o consumo de pessoas que se encontrem na zona de mínimo vital. Essa, sim, poderia ser uma discussão que traria temas de justiça distributiva para o âmbito do tribunal. Você poderia dizer que seria mais adequado que esse tipo de discussão se desse no âmbito do Poder Legislativo. Pode ser, mas então que comece. Não vejo o Poder Legislativo, não vejo a opinião pública discutindo a justiça da carga tributária no Brasil.

IHU On-Line – Pessoas de baixa renda recebem auxílios do governo por meio de programas de distribuição de renda. Essa renda mínima tem algum impacto na vida das pessoas, considerando a carga tributária dos produtos?

Leonel Cesarino Pessoa – Sim, sem dúvida. Essa renda melhora a vida dessas pessoas e permite que elas possam consumir minimamente, não obstante os tributos indiretos.

IHU On-Line – Qual é o sentido de programas de distribuição de renda num país em que a carga tributária indireta é altíssima?

Leonel Cesarino Pessoa – Em primeiro lugar, não diria que a carga tributária indireta é altíssima, mas que ela é mal distribuída. Que ela é altíssima para as pessoas que ganham pouco. O ICMS incide sobre produtos nos quais não deveria incidir, já que são objeto do consumo das pessoas mais pobres. Como eu disse, no Brasil, há incidência de ICMS, inclusive sobre os itens da cesta básica. Tendo em vista essa situação, os programas de distribuição de renda minimizam o problema do consumo dessa parcela mais pobre da população. Mas isso não significa que a situação tributária não deva mudar.

IHU On-Line – Quais os aspectos positivos e negativos da instituição de renda mínima? Elas sinalizam um avanço ou retrocesso para a sociedade?

Leonel Cesarino Pessoa – Sinalizam um avanço. Sua instituição tira uma parcela importante da população, que vive com menos do que a renda mínima, da condição de pobreza extrema. É um avanço no sentido de corrigir a injustiça do nosso sistema tributário e fazer justiça distributiva. Penso que esses programas procuram contribuir para corrigir a grave situação de desigualdade que nós temos hoje, no Brasil. São programas que procuram enfrentar aquela que é uma das principais distorções da nossa sociedade: a péssima distribuição de renda associada ao fato de parte da população ainda viver em condições de pobreza extrema. Nesse sentido, não concordo absolutamente com esse uso pejorativo do termo assistencialista.

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