‘Estamos a anos-luz da erradicação do trabalho escravo’, afirma procuradora

“Temos que ter humildade para admitir que estamos a anos-luz da erradicação do trabalho escravo”. A declaração de Ruth Vilela (foto), titular da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e personalidade central na repressão ao crime, simboliza, ao mesmo tempo, algum pessimismo e muita noção da realidade.

Em sua participação no I Encontro Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, realizado semana passada na capital federal, Ruth defendeu uma “guinada” dos esforços de combate à escravidão contemporânea para “um novo patamar”. Os instrumentos deste enfrentamento em outro nível, propõe a secretária de inspeção, deve se dar no nível da investigação e da inteligência (especialmente relacionadas aos aspectos econômicos e comerciais vinculados ao crime), por meio da intensificação da troca e do cruzamento de dados apurados por parte de parceiros engajados, bem como do estabelecimento de redes de comunicação mais inteligentes relacionadas à temática.

A reportagem é de Maurício Hashizume e publicado pelo sítio Repórter Brasil, 01-06-2010.

Este novo pacto de “reflexão e compromisso” precisa ser concluído “imediatamente, antes das eleições deste ano”, recomenda Ruth, que é auditora fiscal do trabalho de carreira. Os grupos móveis de fiscalização desde 1995 – e mais notadamente a partir de 2003 – têm cumprido o seu papel e garantido visibilidade ao MTE, que acaba de lançar duas novas publicações para difundir informações sobre o trabalho escravo. Para ela, porém, é preciso partir o quanto antes para uma próxima etapa “bem mais sofisticada no trato da prática [de escravidão] que queremos erradicar”.

A despeito do empenho, do conhecimento acumulado e dos investimentos dedicados ao combate à exploração de mão de obra escrava até o momento, a secretária avalia ser necessário qualificar melhor as teias complexas e muitas vezes subterrâneas por trás do crime. A perspectiva de extinção do trabalho escravo por meio do diálogo e da negociação decorrentes de ações repressivas está envolta em certa ingenuidade, classifica Ruth. Apenas quando o combate ao problema estiver em outro patamar mais elevado, antecipa a servidora pública, haverá um “melhor equilíbrio das forças”.

As libertações, observou a secretária aos participantes do evento, não param apenas na divulgação dos casos na mídia. Com frequência, ela – que está na função desde 2003, mas também já ocupou o mesmo cargo (1994-1999) durante o governo de Fernando Henrique Cardoso – confirma participação em audiências no MTE com representantes de empresas e setores econômicos que, basicamente, alegam que o trabalho escravo é uma invenção das operações fiscais e reclamam dos pretensos “exageros”. Segundo Ruth, mesmo detalhados e circunstanciados, os relatórios de fiscalização não vem sendo suficientes para convencer a concentrada classe dos proprietários rurais de maior porte.  “Não é fácil mudar uma herança atávica de séculos”, pontua. “Não saberia dizer quanto é cinismo e quanto é desconhecimento”.

A integração dos bancos de dados, especialmente dos órgãos públicos, também foi defendida por Delano Cerqueira Bunn, chefe da Divisão de Direitos Humanos da Polícia Federal (PF). Uma das demandas colocadas à PF no combate ao trabalho escravo está na atuação do órgão como Polícia Judiciária – coletando provas do crime (por meio de perícias, por exemplo) para processos penais e ações civis públicas. De acordo com ele, o baixo número de efetivo em face das exigências complica esse tipo de intervenção.

Aos participantes do I Encontro Nacional, o integrante da PF sinalizou com a possibilidade de utilizar as mesmas ferramentas do combate ao crime organizado nos casos de escravidão. Por meio de trabalho prévio de inteligência (interceptações de comunicação, análises das cadeias econômicas etc.), seria possível, na visão dele, investigar diversos crimes de forma transversal, inclusive analisando a possível leniência ou cooperação de autoridades, com “materialidade do conjunto probatório”.

De 1999 a 2009, mais de 1 mil inquéritos relacionados ao crime foram instaurados no âmbito da PF. Delano manifestou planos de enviar cada vez mais delegados para as missões do grupo móvel. Citou também a intenção de viabilizar uma operação piloto em Marabá (PA) para atacar a via financeira dos responsáveis pela escravidão e desbaratar esquemas de “gatos” (aliciadores de trabalhadores rurais à procura de empreitadas, muitas vezes migrantes). Com esse tipo de preparação, projeta, as fiscalizações in loco ficariam apenas para confirmar o flagrante na conclusão do processo.

Outras indicações no sentido do combate ao trabalho escravo em patamares “superiores” foram dadas pelo juiz Marcus Barberino, do Tribunal Regional do Trabalho da 15a Região (TRT-15). Durante o evento, ele evidenciou as peculiaridades da sociedade contemporânea e as complexas formas de organização das redes que podem se entralaçar à prática da escravidão. “O sistema de Justiça está a dever”, assume. Segundo o juiz, existe “técnica civilizatória”, com quadros e conhecimentos, para erradicar o crime, mas ainda prevalece a distância entre as exigências do mundo real e os moldes ainda utilizados para as decisões do Poder Judiciário.

Marcus sugeriu uma maior cooperação técnico-jurídica entre a Justiça do Trabalho e a Justiça Federal e realçou medidas como as condenações por danos morais coletivos, o arrendamento judicial (intervenção do domínio econômico) e a ressocialização de egressos da escravidão em atividades associadas ao reflorestamento de áreas desmatadas. “Entre a civilização e a barbárie”, acrescentou, “não basta colocar mais policiais”. E advertiu: “Não é só Estado que resolve. O envolvimento da sociedade é fundamental”.

Respostas concretas

A postura adotada por outro juiz, Carlos Henrique Borlido Haddad, da Vara Federal de Marabá (PA), se destaca no contexto do combate ao trabalho escravo no país e mereceu espaço no I Encontro Nacional.

Diante dos escassos casos de condenação pelo crime – que pavimentam a impunidade -, ele decidiu instituir o que chama de “Projeto Guardião”. Alguns servidores foram selecionados para “cuidar” de 10 a 15 processos prioritários e impedir que fiquem parados nas prateleiras.

“Comecei a viajar para o interior para realizar audiências. Convoquei auditores fiscais para prestar depoimento. Ou seja, estabeleci uma logística possível que foge do padrão”, conta Carlos. Até agora, o magistrado já emitiu 45 sentenças referentes a processos de trabalho escravo, com mais de 30 condenações de escravagistas, ainda que em primeira instância.

O juiz federal acredita que determinados processos – trabalho escravo, conflitos agrários, improbidade administrativa, crimes ambientais etc. – merceem ser priorizados em função do interesse público. Atualmente, tramitam na Vara de Marabá (PA) 96 processos de escravidão, dentro da totalidade de 12 mil. Em junho, Carlos prevê a expedição de pelo menos 10 novas decisões. Ele declara que gostaria que os casos diminuíssem, mas os flagrantes continuam comuns – especialmente no “roço de juquira” (preparação de pasto para pecuária extensiva), diante do ambiente de desaquecimento da demanda por carvão vegetal das siderúrgicas do Pólo Carajás.

Apesar da recomendação por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para o julgamento preferencial de casos de conflitos fundiários, incluindo trabalho escravo, as iniciativas nesse sentido ainda são raras. “Isso é terrível. São iniciativas individuais tentanto fazer a diferença, mudar alguma coisa. Mas, embora sejam elogiáveis, elas nunca são ideais. Apenas o trabalho coletivo vai produzir resultados mais abrangentes”, coloca Carlos. A experiência em Marabá, complementa, poderia ser reproduzida em qualquer outra Vara com concentração de processos similares. “Basta ter vontade”.

As ações inovadoras contra o trabalho em condições análogas à escravidão no meio urbano foram abordadas no mesmo encontro pelo auditor Renato Bignami, da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP). Articulador do Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes – Setor de Confecções, ele tratou das motivações econômicas – por meio da comparação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), do Produto Interno Bruto (PIB) e da renda per capita – para a migração de bolivianos, paraguaios, peruanos e trabalhadoires de outros países vizinhos à pujante Região Metropolitana de São Paulo.

Esses imigrantes explorados nas chamadas “facções de costura” carregam um forte traço indígena (Guarani, Quechua, Aymara) e estão inseridos no contexto produtivo do conceito “fast fashion” que domina o setor. A condição ideal para a manutenção do fluxo de tráfico internacional de pessoas e de surgimento das chamadas sweat shops (oficinas em condições precárias) é resultado, segundo Renato, da combinação de três fatores principais: flexibilidade de mão de obra; demanda aquecida e voracidade do mercado no país de chegada; e baixa capacidade de absorver trabalhadores no país de origem.

Para desmontar esse quadro (servidão por dívida, ameaças à integridade física, retenção de documentos, jornada exaustiva e condição degradante), o coordenador da Fiscalização do Trabalho da SRTE/SP sublinhou medidas que já vem sendo tomadas nos casos de libertações no meio rural: resgate, registro em carteira, pagamento de verbas rescisórias e Seguro Desemprego do Trabalhador Resgatado, e inclusão na “lista suja” do trabalho escravo – cadastro de empregadores flagrados mantido pelo governo federal.

A chaga das terceirizações e subcontratações que encobre essa situação deve ser combatida, na opinião de Renato, com a responsabilização-chave da cadeia de valores. Normatizar um programa público de intermediação de mão de obra entre países da América do Sul, qualificar estrangeiros para a consolidação como pequenos empresários e punir as máfias responsáveis pelo tráfico de pessoas são ações indispensáveis, adiciona o auditor fiscal, especialmente após o processo de anistia de imigrantes ilegais e o Acordo de Livre Residência do Mercosul (estendido a Chile e Bolívia) do ano passado.

O programa de reinserção de egressos do trabalho escravo em curso no Mato Grosso foi objeto da explanação do suprintendente Valdiney Arruda, da SRTE/MT. Desde 2008, a Comissão Estadual pela Erradicação do Trabalho Escravo do Mato Grosso (Coetrae/MT), formada por membros do poder público e representantes da sociedade civil, tem se dedicado a tornar concreta a experiência de reinserção social e profissional. A iniciativa é chamada de Ação Integrada e capacita trabalhadores para que eles possam superar a condição de vulnerabilidade das potenciais vítimas da escravidão.

Sindicato e empresariado

Representante dos sindicatos dos trabalhadores no I Encontro Nacional, Artur Henrique da Silva Santos, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), reafirmou a relevância da responsabilização das cadeias produtivas no combate à escravidão. A erradicação tanto do trabalho escravo quanto do trabalho infantil deveria ser uma preocupação de todos, complementou.

Apesar da aparente concordância de que é fundamental acabar com o crime, algumas pessoas, empresários e proprietários rurais, advertiu Artur, ainda vêm a público contestar o “conceito” de trabalho escravo. “Como se os fatos não fossem mais do que concretos. É um absurdo que ainda haja resistência contra a aprovação da PEC 438/2001 [que determina o confisco de terras onde houver escravidão e detina as áreas para o programa de reforma agrária]”.

O presidente da CUT salientou ainda que os agentes econômicos que recebem financiamento público devem oferecer contrapartidas sociais como a adoção de padrões de trabalho decente – mais do que o mero trabalho formal. Como sugestão de mecanismos, Artur eleje esses tipos de medidas mais “positivas” (concessão de crédito mediante condições exemplares de trabalho e benefícios socioambientais) com sanções mais “negativas” (veto de negócios com empregadores da “lista suja” – fundamento do acordo empresarial do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo).

Do ponto de vista do curto prazo, comentou Paulo Mindlin, diretor de sustentabilidade do Walmart Brasil e do Instituto Walmart, o engajamento no combate ao trabalho escravo no Brasil não traz tantas vantagens. Mas desde que a empresa decidiu adotar uma política mais efetiva de sustentabilidade em nível mundial, há cerca de cinco anos, a representação brasileira da companhia norte-americana passou a abraçar causas sociais como o conbate ao trabalho escravo.

A empresa faz parte do Pacto Nacional desde 2005 e vem utilizando o seu peso comercial para isolar empresas incluídas na “lista suja”, como no caso da gigante sucroalcooleira Cosan. “Apoiamos e usamos a ´lista suja´”, confirmou. O Walmart recolheu ajudou ainda a recolher cerca de 150 mil das 280 mil assinaturas entregues na Câmara dos Deputados pela aprovação da PEC do Trabalho Escravo.

Assim como o diretor da rede varejista, Simone Valladares, que é da Siderúrgica Viena e ocupa a presidência do Instituto Carvão Cidadão (ICC), também fez parte da mesa sobre “Trabalho Escravo e Responsabilidade Empresarial”. De 2004 a 2009, o ICC promoveu 2,8 mil auditorias e descredenciou 326 fornecedores de carvão vegetal para o parque siderúrgico instalado na região de mais de 2 mil km2 que se estende por quatro estados (Maranhão, Pará, Tocantins e Piauí) e circunda a mina de ferro de Carajás.

Desde 2005, o ICC mantém ainda um programa de inserção social de egressos do trabalho escravo. A segunda etapa, que conta com o apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do governo da Alemanha, teve início em fevereiro de 2007. Ao todo, 166 trabalhadores saíram do ciclo perverso do trabalho escravo e foram contratados como parte da iniciativa. A entidade também acaba de anunciar um acordo com um grande comprador internacional (a Nucor) para que as compras de ferro-gusa se restrinjam apenas às 11 siderúrgicas que fazem parte do instituto. “O trabalho escravo não é uma questão cultural. Podemos romper”, disse Simone.Superintendente jurídico do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Hugo Ferreira esteve no evento para reafirmar as bases da política adotada pelo banco de incentivo a práticas trabalhistas decentes.

Ele assegura que agentes econômicos que fazem parte da “lista suja” não têm acesso a empréstimos e que a instituição faz outras checagens (que envolvem inclusive a análise dos dirigentes da empresa e de possíveis passivos administrativos e sentenças judiciais) relacionadas ao cumprimento de cláusulas sociais.

O gerente de Cidadania Empresarial do Banco do Brasil (BB), Francisco Herculano da Cunha, repetiu que a análise de risco passou a incorporar definitivamente a verificação de itens socioambientais. Segundo o dirigente, o banco – com ativos da ordem de R$ 709,5 milhões, 52,7 milhões de clientes, R$ 300,8 bilhões de carteira de crédito, R$ 337,6 bilhões em depósitos e 104 mil funcionários – passou também a incentivar o crédito ligado a iniciativas de cunho sustentável. O BB também é signatário do Pacto Nacional e faz consultas recorrentes à “lista suja”. “Seria bom se outros órgãos também tivessem um cadastro semelhante”, declarou Francisco. Juntamente com o Serasa, o banco desenvolve um amplo sistema de varredura de registros sobre potencias clientes.

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