Quem no Brasil não foi apresentad@ a Gramsci através de Carlos Nelson Coutinho? Com certeza muito poucas pessoas. Quer através de textos seus, sobre ele ou nele baseados, quer através da tradução dos textos do militante intelectual marxista italiano morto graças a Mussolini. Entre vários outros livros traduzidos por ele, guardo com o maior cuidado e carinho a primeira edição de Concepção Dialética da História, lançada no início da ditadura, em 1966. Herdei-o virgem, anos mais tarde, mas, mesmo amarelecido, ele continua inteiro, embora repleto de anotações, setas e remissivas às quais nunca deixo de voltar, de quando em vez.
Com certeza, a Concepção e Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, este já numa terceira edição, estão no centro de quem sou, englobando não só o ser político mas a pessoa da Tania em si, com todas as suas paixões. Muito mais que Os intelectuais e a organização da cultura, Literatura e Vida Nacional, Cartas do Cárcere etc. Ou, mesmo, boa parte de O Capital, embora com certeza sem ele o pensamento do próprio Gramsci seria bastante diferente, uma vez que teria sido privado de sua principal fonte de inspiração e diálogo.
Não importa aqui se, na sua tradução, ele respeitou a fórmula elaborada pelo Partido Comunista Italiano para minimizar a importância revolucionária de Gramsci, buscando transformá-lo num “mero” filósofo. Inclusive porque duvido pudesse ser diferente, na ocasião. Esse era o Antônio Gransmi editado e passível de ser traduzido. E foi o acesso ao pensamento de Gramsci em português, em pleno início de ditadura, carinhosamente traduzido e publicado pela Civilização Brasileira de Ênio Silveira, um dos maiores presentes que Carlos Nelson nos deixou, com todo o respeito pela sua obra, começando pelo seu A Democracia como valor universal.
Nestes tempos em que até mesmo as teses de doutorado estão repletas de “apuds”, “conforme” e “de acordo com”, talvez seja difícil para muitas pessoas entender o alcance do legado de Carlos Nelson, quer em relação a Marx e Gramsci, quer em relação a outros autores marxianos. Mas quem tiver uma concepção de mundo socialista e entender a necessidade de aprofundar o conhecimento, para com ele poder dialogar e construir suas próprias sínteses, em lugar de se reduzir a mero repetidor de citações capazes de garantir um canudo e superficiais aplausos futuros, com certeza compreenderá seu valor, mais dia menos dia.
Esta pequena homenagem a Carlos Nelson sai com 24 h0ras de atraso, por um motivo revelador: apesar de conectada à internet boa parte do tempo (embora bem menos que o normal), somente esta manhã tomei conhecimento desta notícia. E através de um e-mail de um amigo, que me foi enviado às 23:41h de ontem! Isso me assusta, pois essa era uma notícia para ter sido divulgada e comentada entre nós boa parte do dia de ontem, na minha opinião. Enfim…
Encerro com uma citação de Gramsci, que é talvez a minha favorita. Foi assim que Carlos Nelson Coutinho a traduziu na página 139 da Concepção:
“O elemento popular ‘sente’, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual ‘sabe’, mas nem sempre compreende e, muito menos, ‘sente’. (…) O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (não só pelo saber em si, mas também pelo objeto do saber), isto é, em acreditar que o intelectual possa ser um intelectual (e não um mero pedante) mesmo quando distinto e destacado do povo-nação, ou seja, sem sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e, assim, explicando-as e justificando-as em determinada situação histórica, bem como relacionando-as dialeticamente às leis da história, a uma concepção do mundo superior, científica e coerentemente elaborada, que é o ‘saber’. Não se faz política-história sem esta paixão, isto é, sem esta conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação”.