Ana de Hollanda: “Ela pagou o pato”

João Paulo

A queda da ministra Ana de Hollanda, anunciada esta semana, e sua substituição por Marta Suplicy receberam uma análise quase unânime que levava em conta duas dimensões: em primeiro lugar, o enfraquecimento continuado da ministra, que começou praticamente com sua posse; em seguida, a escolha de uma aliada necessária na conjuntura eleitoral de São Paulo. Assim, Ana caía por seus defeitos gerenciais e por sua pouca significação política. O estopim que permitiu que o rastilho fosse aceso na falta de mérito da cantora e explodisse no colo da campanha eleitoral foi uma carta endereçada à ministra do Planejamento, Miriam Belchior, “vazada” pela imprensa, na qual Ana de Hollanda faz um diagnóstico do sucateamento dos prédios e outros recursos da pasta, inclusive o salário dos servidores.

Essa é uma análise pretensamente objetiva, que reúne elementos administrativos, políticos, técnicos e eleitorais. Parece ter consistência, já que, separadamente, cada ponto do argumento parece se sustentar. No entanto, por trás da demissão da ministra há muito mais. Como nos grande espetáculos, os bastidores são habitados por muito mais gente que no proscênio. A montagem da demissão da ministra tem muitos coadjuvantes e antagonistas. Muita coisa vai continuar nebulosa, muita informação ficará reservada, muitos atores vão preferir se fechar. No entanto, pelo menos no primeiro momento, a impressão que fica é que todos saem perdendo, inclusive os adversários de Ana de Hollanda.

Quando a ministra assumiu a pasta da Cultura o cenário era muito diferente do que sempre se viu no setor. Antecessor de Ana, Gilberto Gil (e depois Juca Ferreira) elevou a importância política do ministério, interna e externamente. Além de se tornar um setor estratégico, com grande expressão política, o Ministério da Cultura encerrou o governo Lula com orçamento significativamente maior e capacidade de ideação e implementação de políticas públicas até então inexistentes. A gestão de Gil e Juca consolidou um modelo, enfrentou interesses, descentralizou ações e investimentos, avançou no campo da economia da cultura, criou instrumentos populares de organização e formação de profissionais.

No entanto, como é comum na história brasileira, mesmo os mais preparados homens que exercem cargos públicos têm a triste condição psicológica de se acharem imprescindíveis. A equipe que fez um trabalho de reestruturação e empoderamento da cultura se achava eterna e assim agiu em lobby poderoso para se manter no poder. No entanto, mesmo um grupo de valor reconhecido tem seus adversários e, com tintas nitidamente paulistanas, surgiu um movimento de oposição que, mais que nomes, parecia apresentar nova proposta política. Nessa situação, a presidente, que nunca foi de aceitar pressões, optou por uma saída bonapartista e escolheu Ana de Hollanda.

A vida da ministra não foi fácil. De uma hora para outra passou a sofrer oposição de dois flancos, o da política anterior e o dos patrocinadores de uma candidatura paulista ao MinC, que tinha nome, sobrenome e ideologia. O candidato era Danilo Santos de Miranda, identificado com a política cultural exercida no sistema Sesc de São Paulo, que se assenta em recursos de empresas e incentivo à arte de qualidade, canônica ou experimental, com fortes vínculos com o sistema econômico. Em outras palavras, Ana foi bombardeada por todos os lados. Mas não era tudo ainda.

Os primeiros momentos da gestão da ministra estabeleceram uma guerra ideológica clara, que, com o tempo, foi deixando em segundo plano a disputa meramente de nomes ou estados (mesmo que eles possam ser vistos por trás das ideias que passam a digladiar). O que se instaurou no cenário político da Cultura foi uma divisão entre dois modelos. O primeiro era representado pelos defensores de políticas mais participativas e populares, com descentralização de ações e investimento, que foram traduzidas, por exemplo, em normas de caráter socializante do Plano Nacional de Cultura e na implantação dos Pontos de Cultura, que fogem do modelo do mero espetáculo da indústria cultural. Outro aspecto sensível se relacionava à questão dos direitos autorais, com a defesa de um modelo mais voltado para os usuários.

O outro grupo era formado por defensores de linhas mais convencionais de planejamento e execução de ações culturais, além da defesa quase intransigente da legislação que regulamenta a propriedade autoral. O fato de a ministra ser irmã do cantor Chico Buarque a colocou quase automaticamente nesse grupo. Para complicar a situação da gestora, em um de seus primeiro atos ela ordenou a retirada da licença Creative Commons do site do ministério, o que foi tomado, simbolicamente, como uma prova de força e de demarcação de território.

Desgastes
A etapa seguinte, com a retomada dos debates em torno da questão dos direitos autorais, abriu de vez a disputa, que foi tomando outros campos. Ana de Hollanda enfrentou greve na Funarte (exatamente no setor que dirigiu entre 2003 e 2007), sofreu com o contingenciamento de recursos do ministério e, em sua própria equipe, passou a ser testada, como ocorreu com o cientista político Emir Sader, indicado para a Presidência da Fundação Casa de Ruy Barbosa, que chamou a ministra de “meio autista” e se dispôs a mudar a condução do órgão sem qualquer debate interno na pasta. Foi demitido antes de assumir, mas deixou a marca de fraqueza pairando sobre a cabeça da ministra.

Outros desgastes se seguiram, inclusive o questionamento da aprovação de projeto da cantora Maria Bethânia pela lei federal de incentivo, como se coubesse à ministra definir os aprovados e não garantir a isenção e autonomia da comissão responsável pela escolha dos projetos. Ana de Hollanda voltou a ser pressionada e mais uma vez os nomes de sempre passaram a ser cogitados para sua substituição. O processo de fritura durou todo o tempo da gestão da ministra, sem que os processos de discussão convocados pelo MinC se tornassem a arena mais adequada para a disputa de projetos políticos de grande significação, seja no campo dos direitos autorais, seja da reforma da lei de incentivo, entre outros.

O ato final da queda causou um mal triplamente qualificado para o setor. Em primeiro lugar, no momento em que a discussão precisava ser técnica, foi subordinada a interesses politiqueiros, fora da alçada da pasta; em seguida, se a questão era garantir eficácia, o nome não deveria vir do jogo de interesses que mira outra esfera de poder, mas da própria discussão acumulada em tantos meses de crise: Marta Suplicy não é do ramo, não acompanha a pasta e não se identifica com qualquer das posições que vêm se fortalecendo no debate; por fim, além de errar na técnica e na política, a atitude desprestigia o setor, que há pouco levantou a cabeça, e que se torna agora mera moeda de troca num processo de sucessão municipal.

A cultura brasileira, que sempre mostrou potencial estético, em momentos marcantes da República foi capaz de dar exemplo de significação política e apego à liberdade acima de todos os valores. Em Belo Horizonte, recentemente, veio do setor cultural a mais bem articulada ação de recuperação da participação política da juventude, num movimento que foi capaz de reverter ações autoritárias da prefeitura, garantir a realização de festivais (como o FIT e o FAN) e politizar o debate sucessório na capital. Por tudo isso, é triste não a demissão da ministra, mas a forma como foi feita, desonrando o patrimônio de debates que vinha acompanhando o setor.

Marta Suplicy não era nome defendido por ninguém. Entra com garantia de condições para administrar a área, inclusive com recursos para fazer frente ao sucateamento denunciado por sua antecessora. O que podemos desejar é que sua vida não seja fácil. Usar a Cultura é uma forma de enfraquecer a inteligência; facilitar sua gestão com ações verticais é um golpe de morte.

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http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/09/15/interna_pensar,50542/ela-pagou-o-pato.shtml

Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.

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