Eles têm dúvidas se, após obra da usina, conseguirão atravessar rio Xingu. Projeto da empreendedora prevê içar embarcações com um cabo de aço.
Mariana Oliveira, do G1, em Altamira
A índia Josilda Mendes Arara tem 21 anos e quatro filhos, todos menores de 5 anos. Ela tem uma rotina comum a muitas donas de casa da cidade. Cuida das crianças, cozinha e gosta de reunir as amigas para bater papo de tarde. Mas o tema das conversas é geralmente um só: como preservar a cultura da tribo e garantir a saúde das crianças da comunidade, que fica às margens do Rio Xingu, no Pará, depois da instalação na região da usina de Belo Monte, planejada para ser a segunda maior hidrelétrica do país.
Já foram iniciadas as obras de infraestrutura para construção da hidrelétrica . Mesmo com os questionamentos dos impactos sociambientais na região, o governo diz que Belo Monte é essencial para suprir a demanda energética do país em razão do crescimento econômico.
Para a índia Josilda, da tribo Arara da Volta Grande, a maior preocupação é com a manutenção da principal atividade da tribo, a pesca, e a saúde dos filhos. Isso porque, apesar de a comunidade contar com uma enfermaria, é preciso levar as crianças ao médico em Altamira, cidade mais próxima. O temor é que, com a construção da barragem, os índios tenham dificuldade em atravessar o rio.
“Isso tudo me preocupa. Se secar o rio, vamos ficar sem peixes. E vamos comer o quê? Tenho medo de a gente não conseguir passar pela barragem. Daí, como é que faz? A gente não sabe. Não vai poder levar as crianças no médico?”, diz Josilda.
De acordo com a Norte Energia, empresa com quase 50% de participação governamental, não haverá dificuldade para a população indígena.
O projeto prevê que as embarcações sejam içadas por um cabo de aço, mas a empresa ainda ouve as propostas dos índios e dos ribeirinhos para a transposição dos barcos.
A tribo Arara da Volta Grande fica a cerca de 100 km de Altamira – 3 horas e meia de voadeira (barco com motor), meio de transporte mais utilizado para ir à cidade vender peixes e comprar mantimentos. O tempo pode variar dependendo do nível de água no rio em razão da cheia ou da seca.
Quando o G1 esteve no local, a vazão do rio estava baixa, mas a navegabilidade não estava prejudicada. Mesmo assim, em vários momentos do trajeto a velocidade foi reduzida para desviar de pedras que em tempo de cheia ficam sob a água.
Trata-se de uma comunidade bastante miscigenada. Os índios falam português e usam roupas comuns. Uma televisão com antena mais potente permite que todos acompanhem notícias e novelas.
No entanto algumas tradições são mantidas. As casas são de palha, a maioria não tem fogão ou geladeira, eles dormem em redes e as crianças são criadas em meio à natureza. Os homens caçam e protegem a tribo. As mulheres cozinham, cuidam dos filhos e aconselham seus maridos.
Na tribo, há uma escola e uma enfermaria, tudo mantido com ajuda da Fundação Nacional do Índio (Funai). Nos casos mais graves de saúde ou para realização de exames, porém, eles precisam obrigatoriamente ir à cidade.
Josélia Mendes Arara tem 28 anos e oito filhos com idades entre 2 meses e 8 anos. Na gravidez do caçula, disse a índia, não fez pré-natal e não foi ao médico nenhuma vez. No entanto, levar os filhos à cidade também é uma preocupação.
“Por causa do barramento, não poderemos ir para nenhum lugar. A gente fica triste porque não tem resposta de como sair daqui para ir à cidade. O pesadelo está na nossa frente. Querem destruir nossa riqueza. Querem acabar com a vida das crianças. Espero em Deus que essa barragem não saia”, diz Josélia.
O ancião da tribo, Leôncio Arara, tem 73 anos. Segundo ele, a Norte Energia tem ajudado a comunidade. Nem assim, diz ele, a comunidade está a favor da obra.
“No começo, todo mundo era contra. Hoje alguns ficaram a favor. Aqui, a gente nunca se entregou. Eles dão açúcar, motor de barco. Nós recebemos e ficamos gratos. Mas não nos venderemos. Nossa opinião é a mesma. Como vamos sobreviver sem pegar nossos peixes?”, diz seu Leôncio. A ajuda às tribos da Volta Grande foi uma das medidas de redução de impacto socioambiental exigidas pelo Ibama ao conceder a licença para a obra.
Para o ancião, o barramento vai isolar a comunidade. “Eles querem nos isolar. Vamos ficar separados de tudo. (…) E tem ainda a humilhação que vamos sentir. Hoje somos livres. Com esse barramento, vamos ter que esperar alguém puxar o barco. Como se a gente fosse preso. A gente perde a nossa liberdade”, afirma Leôncio Arara.
Liderança da tribo Arara, Josinei, de 24 anos, diz que a comunidade “não está brigando à toa”. “A gente só quer ser respeitado. Falaram que a gente não seria impactado, mas é claro que vai. Essa luta é para sempre e está travada. Ninguém pode desistir.”
Seca na Volta Grande
Outra preocupação da comunidade é a seca. A tribo fica na Volta Grande do Rio Xingu, um trecho de 100 km que já tem naturalmente a vazão reduzida em tempo de seca, mas que pode ficar ainda mais baixo em razão de um desvio no curso do rio para a criação de um dos reservatórios da hidrelétrica. Os índios temem que a Volta Grande seque e que a temperatura da água aumente por conta do menor volume de água e, com isso, os peixes morram.
A Norte Energia garante que os índios não serão prejudicados e que a vazão do rio será monitorada.
Propostas
Na semana em que o G1 visitou Altamira, engenheiros da Norte Energia estiveram na cidade em encontro com lideranças indígenas para discutir propostas para a transposição das embarcações. A pedido de uma funcionária da Funai, a reportagem não pôde acompanhar a reunião porque, segundo ela, o encontro era somente para a comunidade indígena e ribeirinha.
Posteriormente, a Norte Energia, por meio de sua assessoria de imprensa, enviou um documento que mostra a proposta de içamento das embarcações por meio de um cabo de aço.
O cacique caiapó Ireô Kayapó esteve na reunião, embora a tribo dele não será atingida. “Viemos ouvir a palavra do empreendedor, para garantir que a comunidade indígena terá seus direitos respeitados.”
Adjé, liderança da aldeia Koatinemo, da etnia Assurini, também participou do encontro e disse que ainda persiste a dúvida sobre a transposição da barragem. A tribo dele não será atingida, mas ele afirmou que há preocupação em relação aos “parentes”. “Ele estão fazendo estradas, as máquinas estão chegando. Eles nos ajudam, mas não é só o dinheiro. E a natureza? O dinheiro ajuda, mas não compensa.”
A tribo Arara da Volta Grande, uma das mais impactadas com a usina, não enviou representantes à reunião.
Em nota sobre os impactos de Belo Monte para a comunidade indígena no site da empresa, a Norte Energia diz que tomará todas as medidas para propiciar “a manutenção das condições de vida das etnias que habitam a região do entorno da usina, notadamente a Volta Grande do Xingu”.
“Os povos indígenas da região do empreendimento tiveram livre e amplo acesso ao projeto e aos seus impactos, por meio de mais de 30 reuniões, documentadas em áudio e vídeo. (…) Isto garantiu o livre arbítrio desses povos indígenas, quanto à decisão de apoiar a implantação da UHE Belo Monte, preservando seus direitos fundamentais, a sua qualidade de vida e a busca de proteção para os referidos povos”, diz a Norte Energia.
Em entrevista ao G1 em junho, o diretor de construção Luiz Fernando Rufato afirmou que a vazão não será reduzida por causa da obra e que o empreendimento não prejudica as tribos.
“O empreendimento não reloca indígena, não atinge nem um milímetro de terra indígena a inundação. Não vai piorar a navegabilidade em relação aos problemas que já existem hoje. Qual é a preocupação da Funai? Com o desenvolvimento da região, a pressão sobre as terras indígenas podem afetar [as comunidades]. Então, há vários programas para preservar e manter as unidades de terra indígena.”
Obra
A hidrelétrica ocupará parte da área de cinco municípios: Altamira, Anapu, Brasil Novo, Senador José Porfírio e Vitória do Xingu. Altamira é a mais desenvolvida dessas cidades e tem a maior população, quase 100 mil habitantes, segundo o IBGE. Os demais municípios têm entre 10 mil e 20 mil habitantes.
Belo Monte custará pelo menos R$ 25 bilhões, segundo a Norte Energia. Há estimativas de que o custo chegue a R$ 30 bilhões. Trata-se de uma das maiores obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), uma das principais bandeiras do governo federal.
Apesar de ter capacidade para gerar 11,2 mil MW de energia, Belo Monte não deve operar com essa potência. Segundo o governo, a potência máxima só pode ser obtida em tempo de cheia. Na seca, a geração pode ficar abaixo de mil MW. A energia média assegurada é de 4,5 mil MW. Para críticos da obra, o custo-benefício não compensa. O governo contesta e afirma que a energia a ser gerada é fundamental para o país.
“O nosso país é um país que está crescendo. (…) E necessita aproximadamente de 7 mil MW por ano nos próximos dez anos para permitir esse crescimento econômico e o desenvolvimento do nosso país”, disse Altino Ventura, diretor de Planejamento Energético do Ministério do Meio Ambiente.
http://g1.globo.com/natureza/noticia/2011/08/indios-temem-ser-isolados-pela-barragem-de-belo-monte.html