Radicalizar a Democracia

Manfredo Araújo de Oliveira *

Adital – O documento que a CNBB apresentou recentemente à sociedade brasileira sobre a Reforma do Estado tem como objetivo básico colocar em debate propostas de transformações que se fazem necessárias em virtude da abrangência e urgência que os problemas atuais requerem e que deveriam constituir objeto central de debate precisamente num período eleitoral. Neste contexto uma questão muito acentuada é que hoje novos sujeitos históricos levantam problemas a que o Estado e o processo democrático em suas configurações atuais não podem responder. Levando em consideração, como faz o documento, a construção histórica de nosso Estado, podemos compreender que o atual paradigma de Estado fez dele uma entidade para atender fundamentalmente os ricos, o andar de cima da sociedade. Com o surgimento de novos sujeitos históricos emergem perguntas que ultrapassam este padrão de Estado. Por esta razão, a questão não se refere ao Estado enquanto tal, mas diz respeito a este Estado que é estruturalmente incapaz de responder às grandes demandas da maioria da população. Numa palavra, os novos sujeitos exigem novas estruturas.

Um primeiro questionamento radical é sobre a forma atual de nossa vivência democrática, a Democracia Representativa, que se revela extremamente restritiva frente à grade reivindicação de participação na coisa pública. Ela “tem seu ponto alto no momento em que a pessoa, transformada em eleitor, aperta a tecla final “CONFIRMA”, na urna eletrônica” (P. 22). Isto significa uma delegação aos eleitos para agirem em seu nome. Os novos sujeitos com seus questionamentos trazem ao debate público o fato de que com toda a formalidade dos rituais da Democracia Representativa o que se consegue é apenas estabelecer a base, ou seja, “a possibilidade de se construir a verdadeira e total participação do povo enquanto ser e agente político a serviço do direito natural, do legítimo direito à vida, á liberdade e ao bem comum” (P. 22).

Por esta razão este tipo de democracia não pode esgotar todas as formas de vivência democrática e a questão de fundo aqui tem a ver com o reconhecimento institucional do verdadeiro soberano que é o povo e com a busca de mecanismos através de que ele possa realmente exercer plenamente sua soberania. O fato mais importante neste contexto de início de século é que a Democracia vem sendo cada vez mais exercida por grupos aos quais ela havia sido secularmente negada em nosso meio.

Aqui se faz referência a problemas extremamente delicados face aos preconceitos que marcam nossa tradição cultural profundamente impregnada por concepções que de fato negam a igualdade e a dignidade de todos os seres humanos. A tese fundamental é que para que um processo de autêntica democracia se efetive entre nós se faz necessário o reconhecimento do caráter pluricultural da nação e do direito à identidade cultural individual e coletiva; da igual dignidade das culturas o que exige a ruptura com a supremacia institucional da cultura ocidental; mais ainda implica o reconhecimento do caráter de sujeito político dos povos de comunidades indígenas, campesinas, ribeirinhas e quilombolas, o que por sua vez implica a superação do tratamento tutelar destes povos usados como objetos de políticas prescritas por terceiros e do reconhecimento das variadas formas de participação, consulta e representação direta de povos indígenas, camponeses e afrodescendentes.

O pano de fundo ético que sustenta estas ideias foi expresso com precisão por Pio XII: “A comunidade política tem na referência ao povo a sua autêntica dimensão: ela é, e deve ser, na realidade, a unidade orgânica e organizadora de um verdadeiro povo. O povo não é uma multidão amorfa, uma massa inerte a ser manipulada e instrumentalizada”. Se a democracia atual não trata o povo como sujeito político pleno, faz-se urgente a busca de superação de seus limites o que significa ampliar o conjunto dos sujeitos políticos com vez e voz no processo de construção da vida coletiva.

* Doutor em Filosofia e professor da UFC. Presidente da Adital

http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=48171.

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