Em momentos de dificuldade dos governos Lula e Dilma, muitos dos movimentos sociais brasileiros de base popular saíram às ruas para apoia-los. Por um lado, acreditam que o partido, fundado com a ajuda deles, ainda é capaz de encaminhar as mudanças que o Brasil precisa. Por outro, temem que a criminalização que sofreram durante os anos de governo Fernando Henrique volte dependendo do grupo que assuma o poder. E, é claro, há os que se tornaram parte da máquina administrativa e, ao protegerem o governo, protegem a si mesmos.
Apesar das consistentes conquistas sociais obtidas nos últimos anos, o governo não atendeu à pauta histórica proposta por esses movimentos – o que, do meu ponto de vista, não seria nenhuma “revolução”, mas melhoraria a vida de milhões de brasileiros que se mantém excluídos. Pelo contrário, em nome da “governabilidade” fez alianças estranhas, apoiando forças econômicas e políticas que eram contrárias a esses interesses populares, ignorando o suporte oferecido por esses mesmos movimentos para um mandato que significasse uma mudança de paradigma.
Logo após esses momentos de dificuldade, os movimentos foram praticamente deixados de lado. Prova disso é que Dilma demorou anos para receber representantes indígenas, enquanto ruralistas tinham as portas abertas a ela. O Palácio do Planalto sempre manteve ministros que se relacionavam muito bem com os movimentos para lhes pedir calma e, talvez aproveitando-se da matriz católica presente na Teologia da Libertação que está na raiz de muitos desses movimentos, pedir fé.
Esperam Godot. Mas Godot nunca vem.
O governo vive novamente um período de dificuldade, emparedado entre erros de gestão que ele próprio cometeu, denúncias de corrupção que envolvem ele e sua base e uma oposição que não se importa com a democracia e que não mede esforços para rasgar a Constituição e transforma-la em embrulho de peixe se necessário for a fim de apeá-lo do poder. E novamente os movimentos foram até Dilma. Não de forma acrítica, é claro. O discurso de parte deles, como o de Guilherme Boulos, do MTST, acentuou a cobrança: afirmou que não estava lá para defender o governo, mas sim ser contra o golpismo e pressionar por mudanças à esquerda na condução do país.
Mas apesar de alguns grupos dentro do PT e de poucos partidos da base aliada, o governo não é de esquerda – coisa que venho falando aqui há muitos anos. Pelo menos, não a esquerda popular que os movimentos imaginavam que seria. Remoção forçada de comunidades tradicionais em nome de uma ideia deturpada de desenvolvimento, reforma agrária e urbana praticamente inexistentes, direitos trabalhistas sendo “flexibilizados”, falta de políticas para enfrentar as mudanças climáticas, combate à concentração de riquezas – a lista é longa e qualquer pessoa que não se informe apenas pelo WhatsApp sabe disso.
A forma como o governo federal tem abraçado a Agenda Brasil proposta por Renan Calheiros, seu novo fiador, é compreensível. Afinal, é mais uma boia de salvamento – para o governo, não para a população mais pobre, que vai sofrer com boa parte das medidas lá listadas, ruins para o trabalhador, populações tradicionais e o meio ambiente. Isso, aliado à forma com a qual certas pautas nocivas à garantia dos direitos humanos têm passado no Congresso Nacional sem a resistência de outrora, novamente em nome da governabilidade, mostra que o legado da Constituição de 1988, que nunca foi implantado integralmente, segue se deteriorando a olhos vistos. Bem como algumas das conquistas sociais obtidas após a odiosa ditadura cívico-militar.
O fato é que, não só no Brasil como em muitos outros lugares, governos autointitulados progressistas têm sido fundamentais para garantir reformas conservadoras no Estado quando essas significam a retirada de direitos sociais e trabalhistas. Porque quando esses grupos estão na oposição, atuam fortemente para garantir que essas mudanças não passem nos parlamentos, atendendo à pauta da base popular que os elegeu. Mas, uma vez no poder, em nome da “governabilidade” e da “responsabilidade”, abraçam essas mudanças “necessárias”.
O que governantes esquecem é que, para um governo, o auto-reconhecimento não basta para formação de sua identidade política. Não importa que ele se afirme progressista ou conservador e assim ser. Se não demonstrar isso com a efetivação de ações, será palavra vazia. O discurso que um governo emite para designar a si mesmo serve mais para que a sociedade entenda a estratégia que ele utiliza para manter sua base de apoio e sua legitimação frente à sociedade.
Enquanto isso, os resquícios de divisões de posicionamento político vão desaparecendo. Governo, oposição, tem diferença? Ou é tudo uma grande massa amorfa tentando se manter ou conquistar o poder?
E como disse José Sarney, líder do grupo que é aliado deste e de todos as administrações desde Martim Afonso de Souza: “Governo é como violino: você toma com a esquerda e toca com a direita”.
O mais triste é que, se esse governo sobreviver à convulsão que vive hoje, algo me diz que irá esquecer novamente da pauta tradicional dos movimentos sociais, como fez durante a campanha eleitoral, como vem fazendo há muito tempo.
A eles restará o frio do barraco de lona na beira da rodovia, o convívio com ratos em prédios ocupados em grandes cidades, o medo de ser despejado de sua terra tradicional, as condições de trabalho precarizadas em nome do progresso…