Enquanto as cercas dividirem nosso chão
gerando a dor da injustiça e opressão
e olhar aflito sufocar o coração,
apresse o passo, pois é hora de lutar!
Raquel Dantas – comunicadora popular da ASA
A palavra território identifica e universaliza a necessidade da luta de muitos povos. No Ceará, a 17ª Romaria da Terra e 1º das Águas, na cidade de Viçosa, trouxe à tona o tema Territórios: povo irmão! Terra e água em nossas mãos, para denunciar o modelo de desenvolvimento apregoado por empresas e alavancado por governos que tem expulsado populações, destruído culturas, desestruturado os modos de vida de populações tradicionais e transformado direitos em mercadoria. Pela primeira vez realizada na Diocese de Tianguá, a Romaria teve também o intuito de fortalecer a denúncia das violações nesse lugar de lutas históricas de indígenas, quilombolas, camponeses pelo acesso à terra e à água – a Serra da Ibiapaba.
Historicamente organizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Romaria teve dessa vez a integração organizativa com a Comissão Pastoral dos Pescadores e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Segundo Tiago Valentim, da CPT, essa possibilidade foi construída coletivamente após discussões para uma maior articulação entre pastorais e movimentos eclesiais em tempos em que é cada vez mais urgente e necessário somar forças por direitos. O tema já vem de um acúmulo político da própria ação da CPT e dos demais movimentos envolvidos. Vem também da decisão de ampliar a pauta para além da reforma agrária, compreendendo a cultura e os modos de vida como elementos essenciais na composição dos territórios. Inserir a Romaria das Águas junto à Romaria da Terra faz parte dessa ideia. Geralmente feita pelas dioceses de forma isolada, viu-se que era central dar à discussão política sobre a crise hídrica um caráter regional através da Romaria.
As caravanas chegam de muitos lugares e milhares de pessoas vão se aglomerando no começo da manhã desse domingo (02/08) ao redor do Lagoa Pedro II. O clamor que vem da multidão que caminha nas ruas de Viçosa diz: “Salve a terra, salve a água, salve a vida. Os territórios vão viver em harmonia”. No alto dos trios elétricos uma voz que guia romeiras e romeiros conclama que estamos irmanados com todos os povos da América Latina em nossas lutas. O canto da oração Pai Nosso dos Mártires invade os corações militantes e ajoelha romeiros em piedade pelas injustiças vividas. Caminhamos pela reforma agrária, pela demarcação das terras indígenas, pela titulação dos quilombos, contra a expulsão dos povos pesqueiros, pela garantia da terra às camponesas e camponeses e pelo direito à água. Paróquias, comunidades eclesiais de base, pastorais sociais, juventudes do campo e da cidade, mulheres, indígenas, quilombolas, pescadores, lutadores e lutadoras de todas as partes do Ceará.
Todos esses gritos também identificam as lutas e as ações do Fórum Cearense pela Vida no Semiárido. Pensando nesse momento, foi realizada a 3ª Reunião Ampliada do FCVSA, em Viçosa, nos dois dias que antecederam a Romaria. Discutimos sobre os entraves políticos à reforma agrária e convidamos representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do Instituto de Desenvolvimento Agrário do Estado (Idace) para um debate sobre perspectivas, caminhos e avaliação do movimento com relação à atuação do poder público. Ricardo Cassundé, do Movimento dos Trabalhadores/as Rurais Sem Terra (MST), contribuiu analisando política e estatisticamente o problema do acesso à terra a partir da realidade de luta do movimento. Sintonizados com o tema da Romaria, ouvimos também Irmã Maria Luíza, da Pastoral Social da Diocese de Tianguá sobre a sua ação com comunidades tradicionais da Ibiapaba para o reconhecimento de suas terras, de indígenas e quilombolas.
A integração entre os diversos povos presentes na Romaria ganhou plano principal em mística de abertura na frente das escadarias da Igreja da Matriz. Uma roda de toré dos indígenas Tapuya Kariri integrou quilombolas, povos pesqueiros, homens, mulheres e jovens negros celebrando a vida de povos tradicionais e a comunhão das diferenças. Camila Batista, da Comissão Pastoral dos Pescadores do Ceará, ressalta, em tempos de arrefecimento das violações às comunidades pesqueiras, quilombolas e indígenas na expulsão de suas terras, e na intensificação da luta pela água, o quão oportuno é o espaço na Romaria aos povos tradicionais. “É o momento de exercer a profecia e denunciar junto à igreja os grandes projetos que tem destruído comunidades. Estamos mostrando aqui na Romaria o grito dos pescadores”. Uma das bandeiras mais recentes de luta dos povos pesqueiros é a revogação do decreto 8425 que redefine a pesca artesanal e descaracteriza a identidade das comunidades tradicionais, atingindo diretamente direitos conquistados ao longo da história.
Colocar a pauta dos territórios e convidar os povos tradicionais para dentro da organização da Romaria também tem peso importante para as comunidades indígenas da região. Para Neguinho Tapuya Kariri, da aldeia Gameleira situada em São Benedito – também localizada na Serra da Ibiapaba e pertencente à diocese de Tianguá, estar na Romaria contribui para mostrar à sociedade que eles existem. Neguinho não deixa de avaliar criticamente que a igreja muito contribuiu historicamente com violações aos indígenas. “A igreja deve muito a nossa raça. Porque se não fosse ela muitos povos não teriam esquecido suas crenças”, diz, acreditando que uma nova relação é possível.
A romaria também foi o momento de integrar juventude do campo e da cidade em uma luta comum: dizer não à redução da maioridade penal e ao extermínio de jovens. Pastorais sociais e movimentos de juventudes organizaram um ato dentro da programação da Romaria mostrando que a luta pelos territórios, pela água e pela terra não está desassociada das lutas das juventudes. Ítalo Morais, da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) de Fortaleza, que ajudou a articular o ato, diz que pensar na violação desses direitos é compreender que todas as violações têm relação. Quando nos deparamos com a intensa migração dos jovens do campo para a cidade e como essa juventude enfrenta nas áreas urbanas a falta de outros direitos básicos como saúde e educação, estamos falando de um mesmo contexto social de desigualdade. A ideia do ato unificado entre as juventudes da Igreja e de movimentos sociais surgiu do Intercâmbio Nacional de Juventudes da Cáritas que aconteceu no final de julho, na cidade de Crato. “Hoje, na Romaria, as pastorais de juventude do Ceará mostram a sua cara. As juventudes do campo e da cidade se unem, deixando diferenças de lado para dizer conjuntamente não à redução da maioridade penal e que somos contra toda e qualquer forma de violência contra a juventude”.
Os jovens partiram em caminhada da Praça da Igreja da Matriz até a Igreja do Céu. O cansaço da subida das escadarias não impediu em nenhum momento os cantos e as palavras de ordem. Lá em cima, no pátio da igreja, a concentração de romeiras e romeiros voltou toda as atenções para a juventude.
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Imagem: 17ª Romaria da Terra e 1º das Águas | Foto: Raquel Dantas / Arquivo Cáritas CE