Vinícius Lisboa – Repórter da Agência Brasil
Para ajudar os pais com a mensalidade da faculdade de Farmácia, Renata trabalhou no serviço de call center de uma transportadora. Com 21 anos, ela vivia o início do período em que se assumiria como Renata Florence, aceitando uma identidade feminina que agora percebia ser a sua. Momentos de depressão foram frequentes durante a vida acadêmica: quaisquer roupas femininas que comprasse eram jogadas no lixo pela mãe, e os professores desencorajavam-na a se aceitar como transexual, por causa do mercado de trabalho.
Com o término do curso, o que parecia ser o começo de uma vida profissional que lhe daria independência e segurança teve outro rumo. Para conseguir emprego, Renata tinha que fingir ser homem, e, mesmo assim, foi ficando cada vez mais difícil conforme sua identidade se externava com a terapia hormonal. “Estou há mais de um ano desempregada. Já prestei oito processos seletivos, tanto com meu nome social quanto com o de registro. Hoje, faço programa”, diz ela, que tem 27 anos. Com base no trabalho de campo e na experiência de 105 entidades que atuam em prol dos direitos da população trans, a Associação Nacional de Transexuais e Transgêneros estima que essa é a situação de 90% das mulheres transexuais do país.
“Nunca imaginava estar na rua. Mas a vida é assim. Do ano passado para cá, passei por muita coisa que eu não imaginava que passaria”, conta a farmacêutica, que foi expulsa de casa pela família e hoje divide apartamento com um amigo.
Transempregos
Criado por Daniela Andrade, Márcia Rocha e Paulo Bevilacqua, o site Transempregos permite o anúncio de vagas para pessoas trans e tenta enfrentar essa realidade. Artista plástico, Paulo conta que a iniciativa partiu de experiências pessoais e de conhecidos: “Percebi que minhas amigas e amigos não conseguiam emprego de jeito nenhum. Também notei isso na pele quando vi que, depois de começar minha transição, ficou muito mais difícil passar para uma segunda etapa de seleção ao revelar que ainda tinha documentos femininos”, lembra ele.
No momento, a página está paralisada para manutenção, mas Paulo conta que a procura só aumenta. “A demanda cresce enlouquecidamente. Mesmo avisando que o site está fora do ar, por enquanto, existem pessoas enviando e-mails, mandando mensagem para a página no Facebook, contactando a gente via mensagem privada”, diz ele, que, apesar de receber anúncios de profissionais de todos níveis qualificação, percebe o impacto da transfobia na qualificação. “A pessoa é desencorajada a estudar por causa de insultos, piadas e até mesmo agressões físicas. Se sente deslocada num ambiente que não é acolhedor a minorias e não pode se assumir de forma segura.”
Constrangimentos
Com 15 anos de carreira na área de softwares, Daniela Andrade, de 35 anos, conheceu bem as dificuldades de conseguir trabalho e se sentir confortável no emprego. “Trabalhei em várias empresas em que não me davam nem oi nem tchau. Na hora de almoçar, não me chamavam”, conta. Na faculdade, não era diferente. “Em uma sala de 45 pessoas, tinham três mulheres. Foi muito difícil. O pessoal era bastante preconceituoso. Nos quatro anos, só falava com uma pessoa, que era um homem gay e também sofria discriminação.”
Antes mesmo de enfrentar o preconceito no cotidiano de uma empresa, a analista programadora conta que os homens e mulheres transexuais têm que superar constrangimentos e a desinformação durante os processos seletivos. “[Isso] já começa na recepção. Se você não trocou os documentos, têm que explicar sua intimidade para uma pessoa que nunca viu na vida e que muitas vezes não sabe sobre o assunto”, conta. “Na maioria das vezes, você não vai falar, na entrevista, sobre suas competências. Você acaba falando da sua vida particular. Quando alguém fala que é transsexual, a primeira coisa que a pessoa pergunta é se você é operada. Você percebe que, de repente, a entrevista de emprego gira em torno de a pessoa querer saber sobre a sua genital. Já até perguntaram para mim: ‘Fica igual à vagina de uma mulher de verdade?'”.
Popular nas redes sociais, Daniela tem dividido recentemente com os seguidores a euforia de ter mudado de emprego para a ThoughtWorks, uma empresa de tecnologia que considera respeitosa com a diversidade. “É legal você estar em um ambiente em que há uma diversidade de pessoas, um ambiente com mulheres, pessoas negras. Há uma pluralidade de ideias”.
Segurança
Para Laysa Machado, de 44 anos, a solução foi o funcionalismo público. Hoje diretora de uma escola estadual do Paraná, ela foi demitida de uma instituição de ensino religiosa quando iniciou seu processo de transição e chegou a ser obrigada a mentir que era hermafrodita para não perder outro emprego. “Quando eu fui demitida de dois empregos, me vi sem trabalho e sem dinheiro. Eu peguei o dinheiro da poupança que eu tinha e comprei um cortador de grama e fui fazer jardinagem para não passar fome.”
Ao conseguir passar para um emprego estatutário, ela experimentou a segurança de poder trabalhar sendo ela mesma, e o resultado foi a vitória em duas eleições para a direção da Escola Estadual Chico Mendes, na região metropolitana de Curitiba. “Em 2008, nossa chapa foi tão subestimada que não achavam que a gente tinha chance alguma, mas conseguimos ganhar. Dos 1,2 mil alunos, tivemos 1,1 mil votos.”
Acolhida por boa parte dos alunos e professores da escola, Laysa se sente uma exceção na população trans. “Sou uma exceção. Estou à frente de uma instituição que é excludente. Enquanto aluna, fui excluída. Se fosse pela escola, eu teria desistido de estudar no prezinho.”
Laysa mora com o namorado, o microempresário e também transexual David Zimmermann, de 24 anos. Vítima de transfobia no trabalho inclusive por parte de homossexuais, David investiu em um negócio próprio. “As pessoas trans já têm uma força tão grande, que elas têm capacidade de liderança, mesmo que pra elas não pareça. Elas têm a força de ter sua opinião diante do mundo. A gente passa por tanta coisa que, com certeza, tem a firmeza de administrar”, destaca ele.
Aproveitando a própria experiência, o empresário passou a fabricar produtos voltados para homens trans, como próteses penianas e coletes para ocultar seios. No futuro, os planos são contratar e atuar em outros ramos. “Trabalho só com isso e tenho uma boa renda, mas penso em ter outros negócios futuramente. Penso em abrir um empreendimento turístico com pessoas trans trabalhando comigo. Sei como é difícil conseguir emprego no mercado de trabalho.”
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Foto: “Se fosse pela escola, eu teria desistido de estudar no prezinho”, diz Laysa Machado, que namora o trans David Zimmermann –