Desde os anos 70, um conflito judicial se desenrola em torno das terras próximas à Barragem do Rio dos Macacos – entre Salvador e Simões Filho. De um lado, a comunidade quilombola e do outro a Marinha do Brasil
Tatiana Mendonça, A TARDE
A estrada de terra vira lamaçal toda vez que chove. Nesses dias, é preciso torcer para não cair. Se for noite, atravessa-se o caminho no escuro, já que não há luz elétrica. Concorrendo com todas essas atenções ainda há o temor das cobras, que abundam na região. De repente, parece que estamos em um sertão fundo qualquer, mas a impressão fica para trás quando se fecha o portão. Ruas asfaltadas, lâmpadas acesas, prédios, posto médico, clube com piscina. De um lado, o Quilombo Rio dos Macacos, do outro, a Vila Naval da Marinha.
A casa de Olinda Oliveira, 56, fica em frente aos apartamentos dos militares. Na entrada, há uma caixa de correio com o adesivo “Somos Quilombo Rio dos Macacos”, que faz as vezes de protesto perene. Ali nunca chegou nenhuma carta. “Queria o prazer de ter um endereço e dar”. Suas correspondências vão parar na casa do irmão, que mora fora da comunidade. Entre os papéis não estão contas de água ou energia, serviços de que legalmente não dispõe. Mas pior que isso é não poder entrar e sair a hora que quiser, sem dar satisfações a estranhos, estar livre para receber visitas. O acesso à área é controlado pela Marinha. “Toda vez que eu passo, perguntam para onde eu vou. Para a sua casa que não é, eu respondo. Quando vem um parente, tem que ficar lá esperando, quarando no sol quente”.
Olinda nasceu naquelas terras, assim como sua mãe, Maria Oliveira, 87, uma das moradoras mais antigas do lugar. Trabalhava na roça da extinta Fazenda Macacos, localizada na divisa entre Salvador e Simões Filho, pertinho de onde hoje a presidente Dilma Rousseff passa férias. Na década de 1970, elas assistiram à construção da Vila Naval, ao mesmo tempo em que descobriram, meio incrédulas, que aquela área tinha outro dono. “Passavam aqui dizendo: ‘Dona Maria, já morreu? Vá simbora que essa área é da Marinha’. E eu falava: daqui só saio para o cemitério”.
Segurança Máxima
Maria lembra de ter feito o parto do primeiro menino que nasceu na Vila e de trabalhar lavando roupas para os militares, “por uma bobagem de dinheiro”. Durante décadas, estiveram assim convivendo, até receberem, em 2011, uma ordem judicial para desocuparem a área.
A Marinha pediu à Justiça a reintegração de posse da terra, argumentando que o lugar havia sido invadido. Para as 67 famílias que vivem ali, os invasores são outros. “Queria que eles explicassem: como é que uma comunidade vai invadir uma área de segurança máxima?”, Olinda provoca.
Desde a tal ordem de despejo, o conflito não saiu mais das páginas dos jornais. Os moradores fecharam pistas, angariaram apoio de movimentos sociais e resistiram a cinco tentativas seguidas de reintegração. Por causa dos protestos, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável por identificar e delimitar territórios de comunidades quilombolas, foi ao local e reconheceu, em 2012, que aquelas pessoas vivem ali há pelo menos cinco gerações e que 301 hectares da terra eram de uso dos moradores tradicionais.
O curioso é que o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do Incra só foi publicado dois anos depois de pronto, em agosto do ano passado, em cumprimento a uma ação judicial encampada pela Defensoria Pública da União na Bahia e pelo Ministério Público Federal. Da área reconhecida, apenas 104 hectares, cerca de 1/3 da original, foram destinados à regularização fundiária das famílias.
É de se imaginar que após a publicação do RTID no Diário Oficial, algo que soa tão pomposo e definitivo, alguma coisa haveria de mudar, mas, na prática, tudo segue igual. Como a ação judicial que determinou o despejo ainda não foi revertida, a Marinha mantém o entendimento de que os moradores que estão ali não podem reformar suas casas ou construir novas – eles são barrados na portaria ao passar com telhas ou tijolos e já houve casos de casas derrubadas pelos militares.
Um desses episódios aconteceu em janeiro passado, quando os fuzileiros navais destelharam a morada de Luís Gonzaga Oliveira, 54, um dos filhos de dona Maria, no mesmo dia em que a comunidade recebia a visita de um representante do Ministério da Defesa. Ele estava no local com uma bandeirinha branca estudando a possibilidade de construir uma estrada para que os quilombolas não tivessem mais que acessar a comunidade pela Vila.
Promessas
Há um mês, uma viga de madeira da casa do agricultor Edcarlos Santos, 38, caiu enquanto a filha de 2 anos assistia a um desenho na televisão. Ela saiu correndo, gritando por ajuda. Edcarlos estava na roça, chegou com o coração para fora achando que sua menina tinha morrido. Ele chora relembrando o episódio. O susto passou, as rachaduras persistem. “Pode desabar a qualquer momento. Nossa realidade aqui é essa”.
Para testemunhar que a situação irá mudar, e em breve, a secretária nacional de diálogo social da Secretaria Geral da Presidência, Érika Borges, reuniu-se com os quilombolas no último dia 7. O título comprido do seu cargo contrastava com a precariedade das instalações que abrigavam o encontro: uma casa de taipa com chão de terra, criada para ser a escola ou o centro cultural da comunidade.
Érika começou a conversa garantindo que todos soubessem em que pé o processo estava. A associação de moradores do quilombo, por meio da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), contestou o RTID, argumentando que o Incra não teria cumprido sua “regular publicação”, ou seja, delimitado a área de 301 hectares, e não os 104. O pedido não foi atendido pelo órgão, Érika explicava, sob um protesto e outro. Crianças brincavam por ali, alheias a maiores dramas.
Os moradores dizem que já chegaram a viver numa área de 900 hectares. No começo das negociações, em 2012, o governo ofereceu 7,5, num lugar fora dali.
A área atual, de 104 hectares, corresponde ao local onde eles já vivem, com exceção de duas casas que ficaram de fora do perímetro e serão realocadas. Ainda assim, os quilombolas reclamaram que ficarão sem fontes de água e sem local adequado para manter suas plantações.
Já houve um tempo em que ali se plantava de tudo, além de se criar porco e galinha. “A gente só precisava sair para comprar sal”, lembra Rosemeire Silva, 37, principal liderança da comunidade.
Com o fim da fase de contestação do RTID, promessas antigas foram se transformando em prazos. A portaria de delimitação deve ser publicada em outubro, e em dezembro deve sair a titulação coletiva. Só a partir daí, disse Érika, as políticas públicas poderiam ser implementadas, garantindo os direitos básicos que já deveriam ter.
Norte e sul
A reunião se estendeu por toda a tarde chuvosa e esquentou quando o assunto foi a construção da estrada que liberará o acesso dos moradores à comunidade. Depois da construção da Vila, o quilombo foi dividido em duas áreas e, portanto, será preciso construir duas vias, uma no lado norte e outra no lado sul.
Érika garantiu que já há orçamento e projeto para a construção do acesso norte, e as obras devem começar após a liberação da licença ambiental. Quanto ao lado sul, onde vivem 27 famílias, nada está definido. “Vocês falam em estrada como se fosse a Transamazônica!”, um homem a interpelou. “É uma rua de 800 metros, que já foi prometida há muito tempo e nunca foi feita”.
A secretária respondeu com um desabafo pessoal. “Sei que vocês já ouviram um monte e nada aconteceu. Quero dizer que a gente tem lado. O nosso lado é o lado de vocês”. Representantes de outros órgãos federais e estaduais acompanhavam o encontro, mas não havia ninguém da Marinha. Como é de se imaginar, a relação entre eles não é nada amistosa.
Em entrevista ao jornal A TARDE em abril do ano passado, o vice-almirante Luiz Henrique Caroli afirmou que os quilombolas não são seus “inimigos” ou “adversários”, já que cabe aos militares “defender os brasileiros”. Para esta reportagem, Caroli preferiu que o assessor de comunicação do 2º Distrito Naval, Flávio Almeida, falasse. “É difícil estabelecer um diálogo com a liderança da comunidade, porque ela começa a nos agredir verbalmente, a xingar… Lança acusações infundadas, inverídicas, porque isso atrai atenção”, disse, justificando a ausência na reunião.
Em janeiro do ano passado, Rosimeire, cujo pai trabalhou na construção da Vila, e seu irmão, Edinei, foram agredidos quando passavam pela portaria. Um vídeo mostra a ação truculenta dos militares. As duas filhas de Rosimeire, de 17 e 6 anos, estavam no carro e viram a cena. O caso está sendo investigado pelo Ministério Público Federal e os militares envolvidos seguem trabalhando.
No dia em que a reunião acontecia no quilombo, Rosimeire também estava fora. Viajava para um país da América do Sul que ninguém ali sabia precisar, para tentar encontrar o papa Francisco e dar visibilidade internacional à causa do Quilombo Rio dos Macacos.
Base Naval de Aratu
O conflito que acontece aqui na Bahia é similar a dois outros no Brasil: o da Ilha da Marambaia, no Rio de Janeiro, e o de Alcântara, no Maranhão. As disputas evidenciam interesses distintos numa mesma esfera, a da União. Flávio explica que a área de 104 hectares destinada para a comunidade satisfaz os interesses da Marinha, cuja maior preocupação é resguardar a barragem localizada ao lado da Vila. “A barragem é essencial para alimentar a Base Naval de Aratu, que é a segunda maior base naval brasileira. Ela permite o funcionamento das instalações industriais e dos navios da Marinha que utilizam a base como apoio”.
Apesar de o relatório do Incra atestar que os quilombolas não contribuem para a “depredação ambiental da região” e mantêm “o local em perfeito estado de conservação”, a Marinha descarta o uso compartilhado da barragem, argumentando que ela tem uma finalidade específica que deve ser preservada.
O cineasta Josias Pires estava no carro, com o rádio ligado, quando ouviu falar da comunidade pela primeira vez, em 2011. Ficou tão transtornado que resolveu ir atrás de saber que “maluquice” era aquela. No fim daquele mesmo ano, fez um curta que viralizou nas redes sociais e já tem mais de 50 mil visualizações.
A essa altura, estava tão envolvido com os moradores que resolveu fazer um documentário sobre eles. Inscreveu o projeto em um edital do Fundo de Cultura e captou R$ 100 mil para as filmagens. As 150 horas de imagens estão sendo editadas por Cristina Amaral. Seu desejo é finalizar o longa ainda este ano. Para isso, busca apoio em uma plataforma de financiamento coletivo. “O filme ajuda a pensar a natureza do impasse político que a gente vive, tendo em vista que é um conflito entre uma mentalidade aristocrática, elitista, racista, contra uma mentalidade popular, negra, espoliada. É o Brasil oficial versus o Brasil real”.
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Imagem destacada: Os quilombolas tiram o sustento da terra e da pesca (Fernando Vivas | Ag. A TARDE)