Por Cynara Menezes, Carta Capital
Nascido em João Pessoa (PB) em 1951, Alex Polari de Alverga tinha 20 anos de idade e era membro da organização clandestina VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), responsável pelo sequestro do embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben, quando caiu preso, no Rio. Barbaramente torturado, Alex testemunhou e escreveu da prisão uma carta à estilista Zuzu Angel onde narrava as atrocidades cometidas pelos militares contra seu filho, Stuart, militante do MR-8. Aos 26 anos, em 1971, Stuart foi arrastado por um jeep pelo pátio interno da base aérea do Galeão com a boca no cano de descarga do veículo. Seu corpo nunca foi encontrado. Supõe-se que tenha sido jogado em alto-mar ou enterrado como indigente.
Alex Polari passaria seus 20 anos inteiramente na cadeia: condenado a 80 anos de prisão, só foi libertado aos 29, em 1980, após a anistia. Dois anos antes, em 1978, publicou um livro, Inventário de Cicatrizes, com as poesias que escreveu no cárcere. São versos duros, tristes, revoltantes, sobre a tortura nos porões da ditadura militar –um dos poemas é dedicado a Stuart Angel. Hoje, aos 63 anos, Alex se dedica ao Santo Daime e é um dos líderes da Comunidade Céu do Mapiá, no Acre. “Vi companheiros desaparecer no cárcere… mas não queria estender muito nisso. Porque hoje é uma coisa que vejo mais como uma experiência, não acho que é mais o cerne da questão”, disse o “padrinho Alex” ao repórter Bruno Torturra em 2012. “Dificilmente nós vamos achar uma solução para a crise planetária fora de uma revolução espiritual. Todas as outras formas de ler o mundo faliram no último século” (leia mais aqui).
Conheci os poemas de Alex Polari sobre a tortura na adolescência. A leitura de “Os Primeiros Tempos da Tortura” foi provavelmente o primeiro contato que tive na vida com os horrores da ditadura militar. Jamais esqueci este poema. Aos 50 anos do golpe, ninguém lembrou de reeditar o livro de Alex, que pode dizer tanto aos jovens sobre o que foi aquela era de trevas. Mais do que qualquer recriação no cinema: está tudo ali, sangrado em forma de poesia.
Os Primeiros Tempos da Tortura
Não era mole aqueles dias
de percorrer de capuz
a distância da cela
à câmara de tortura
e nela ser capaz de dar urros
tão feios como nunca ouvi.
Havia dias que as piruetas no pau-de-arara
pareciam ridículas e humilhantes
e nus, ainda éramos capazes de corar
ante as piadas sádicas dos carrascos.
Havia dias em que todas as perspectivas
eram prá lá de negras
e todas as expectativas
se resumiam à esperança algo cética
de não tomar porradas nem choques elétricos.
Havia outros momentos
em que as horas se consumiam
à espera do ferrolho da porta que conduzia
às mãos dos especialistas
em nossa agonia.
Houve ainda períodos
em que a única preocupação possível
era ter papel higiênico
comer alguma coisa com algum talher
saber o nome do carcereiro de dia
ficar na expectativa da primeira visita
o que valia como um aval da vida
um carimbo de sobrevivente
e um status de prisioneiro político.
Depois a situação foi melhorando
e foi possível até sofrer
ter angústia, ler
amar, ter ciúmes
e todas essas outras bobagens amenas
que aí fora reputamos
como experiências cruciais.
***
Moral e Cívica II
Eu me lembro
usava calças curtas e ia ver as paradas
radiante de alegria.
Depois o tempo passou
eu caí em maio
mas em setembro tava pelaí
por esses quartéis
onde sempre havia solenidades cívicas
e o cara que me tinha torturado
horas antes,
o cara que me tinha dependurado
no pau-de-arara
injetado éter no meu saco
me enchido de porrada
e rodado prazeirosamente
a manivela do choque
tava lá – o filho da puta
segurando uma bandeira
e um monte de crianças,
emocionado feito o diabo
com o hino nacional.
***
Trilogia Macabra: III – A Parafernália da Tortura
Nos instrumentos da tortura ainda subsistem, é verdade,
alguns resquícios medievais
como cavaletes, palmatórias, chicotes
que o moderno design
não conseguiu ainda amenizar
assim como a prepotência, chacotas
cacoetes e sorrisos
que também não mudaram muito.
Mas o restante é funcional
polido metálico
quase austero
algo moderno
com linhas arrojadas
digno de figurar
em um museu do futuro.
Portanto,
para o pesar dos velhos carrascos nostálgicos,
não é necessário mais rodas, trações,
fogo lento, azeite fervendo
e outras coisas
mais nojentas e chocantes.
Hoje faz-se sofrer a velha dor de sempre
hoje faz-se morrer a velha morte de sempre
com muito maior urbanidade,
sem precisar corar as pessoas bem educadas,
sem proporcionar crises histéricas
nas damas da alta sociedade
sem arrefecer os instintos
desta baixa saciedade.
***
Canção para ‘Paulo’ (A Stuart Angel)
Eles costuraram tua boca
com o silêncio
e trespassaram teu corpo
com uma corrente.
Eles te arrastaram em um carro
e te encheram de gases,
eles cobriram teus gritos
com chacotas.
Um vento gelado soprava lá fora
e os gemidos tinham a cadência
dos passos dos sentinelas no pátio.
Nele, os sentimentos não tinham eco
nele, as baionetas eram de aço
nele, os sentimentos e as baionetas
se calaram.
Um sentido totalmente diferente de existir
se descobre ali,
naquela sala.
Um sentido totalmente diferente de morrer
se morre ali,
naquela vala.
Eles queimaram nossa carne com os fios
e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.
Igualmente vimos nossos rostos invertidos
e eu testemunhei quando levaram teu corpo
envolto em um tapete.
Então houve o percurso sem volta
houve a chuva que não molhou
a noite que não era escura
o tempo que não era tempo
o amor que não era mais amor
a coisa que não era mais coisa nenhuma.
Entregue a perplexidades como estas,
meus cabelos foram se embranquecendo
e os dias foram se passando.
—
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.