“A única urgência na cabeça dos formuladores da proposta é captar urgentemente um pouco mais de royalties para o Estado e garantir que as empresas sigam tendo enormes lucros no setor”, adverte o pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase
IHU On-Line – A votação em regime de urgência do novo Código da Mineração demonstra a “a velha (ir-)razão patrimonialista e autoritária do Estado brasileiro”, declara Carlos Bittencourt à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. Se as propostas de alteração do Código da Mineração estão sendo debatidas “em sigilo” há quatro anos, “por que o poder Legislativo e a sociedade civil terão apenas 90 dias (45 dias em cada Casa Legislativa) para debater e chegar a conclusões?”, questiona. Para ele, o regime de urgência demonstra a postura do Estado brasileiro “contra o debate e a participação da cidadania”.
De acordo com Bittencourt, os movimentos sociais e representantes da sociedade civil não tiveram acesso à proposta do novo Código da Mineração. “O governo recebeu alguns movimentos já às vésperas da apresentação da proposta, mas não publicizou o texto e nem se comprometeu com as reivindicações que vinham da sociedade civil”, informa. Por outro lado, lamenta, “as empresas conseguiram negociar detalhes da proposta antes do seu envio ao Congresso, como, por exemplo, a questão da taxação especial e a alíquota dos royalties. Isso mostra que os interessados não foram tratados de forma equitativa, dando-se prioridade ao setor empresarial”.
Na avaliação do pesquisador, o novo Código da Mineração é “desumano”, pois não considera as condições de trabalho dos trabalhadores, nem a situação dos afetados pela mineração. “Mais uma vez fica claro que é a regulação de um negócio e não de uma atividade com todas as suas implicações”, assinala. E dispara: “O Código trata a mineração apenas como um negócio. Nem sequer considera que está regulando um bem comum natural, finito e não renovável. Nesse sentido, penso que o Código da Mineração pode ter uma dimensão mais perversa do que o Código Florestal, pois se trata de ações irreversíveis”.
Carlos Bittencourt é historiador e pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase. Confira a entrevista
IHU On-Line – Por quais razões o projeto de lei que propõe a substituição do Código da Mineração será votado em regime de urgência no Legislativo?
Carlos Bittencourt – Do ponto de vista da sociedade civil e da razão democrática, não há qualquer razão. A única (ir-)razão aparente para a apresentação da proposta em regime de urgência é a velha (ir-)razão patrimonialista e autoritária do estado brasileiro. O motivo, mais do que a razão, é o impedimento do debate público, do envolvimento da cidadania brasileira nesta decisão tão importante e que envolve a todos.
O Código atual é de 1967, o governo vem debatendo a nova proposta há quatro anos. Mas por que agora o poder Legislativo e a sociedade civil terão apenas 90 dias (45 dias em cada Casa Legislativa) para debater e chegar a conclusões? Durante os quatro anos de sua elaboração, a proposta foi mantida em sigilo. Olhando dessa perspectiva, só é possível ver o regime de urgência como um ato contra o debate e a participação da cidadania.
E a resposta à pergunta sobre a razão pela qual se quer evitar o debate me parece mais simples: para não se encarar o quanto a estratégia pública e privada da exploração mineral brasileira está baseada na dilapidação dos territórios, das reservas nacionais de minérios e na reprimarização da nossa economia. Se há urgência, ela é a urgência do mercado. A democracia exige ritmos de debates completamente distintos dos ritmos do mercado.
IHU On-Line – Qual a urgência em alterar o Código?
Carlos Bittencourt – Como disse, a alteração da lei precisa respeitar os tempos e os ritmos da democracia. Há muitas urgências envolvendo o debate da mineração no Brasil e para saná-las é necessário um amplo debate público envolvendo o conjunto da cidadania brasileira e, especialmente, aqueles e aquelas que são afetados cotidianamente pela mineração. É urgente encararmos de frente os problemas causados pela mineração.
Por exemplo, alguém sabe que a mineração consumiu em 2012, segundo dados incompletos da Agência Nacional de Águas, cerca de cinco quatrilhões de litros de água através de seus pedidos de outorgas? E que mais uma quantidade não mensurada foi consumida nos processos de drenagem das minas, que quanto mais se aprofundam mais atingem as águas subterrâneas e locais de armazenamento geo-hidrológico. E que, por fim, um sem número de rios, mananciais e águas subterrâneas foram contaminadas em níveis extraordinariamente superiores aos permitidos pela Organização Mundial de Saúde, com substâncias como o mercúrio, o cianureto e as drenagens ácidas?
O número de famílias que estão sendo direta e indiretamente afetadas pela mineração é a cada ano maior. São pessoas que têm de deixar os locais onde viviam há décadas, às vezes séculos; que sofrem com a logística da mineração; cidades que sofrem gigantescos fluxos migratórios para a instalação das minas que quando iniciam sua operação não empregam sequer a terça parte dessa mão de obra inicial, causando uma crise nos serviços públicos locais e instituindo o problema da prostituição, inclusive infantil.
Também é urgente sair desse modelo que, impulsionando irrefletidamente a extração mineral, torna nossa economia cada vez mais primária exportadora, dependente dos voláteis preços das commodities minerais, o que pode, de uma hora para a outra, fazer enormes danos econômicos às contas públicas, como agora está se verificando com o crescente déficit da balança comercial brasileira.
Nenhuma dessas preocupações foi levada a sério na proposta do novo Código da Mineração, o que me faz crer que a única urgência na cabeça dos formuladores da proposta é captar urgentemente um pouco mais de royalties para o estado e garantir que as empresas sigam tendo enormes lucros no setor. A urgência é a urgência do mercado.
IHU On-Line – Como estão ocorrendo as negociações para alterar o Código da Mineração e que setores da sociedade participam?
Carlos Bittencourt – Esse foi um processo superfechado. O professor da UFJF, Rodrigo dos Santos, analisou os dados que o governo divulgou sobre a participação no processo de elaboração da proposta. De acordo com ele, participaram das discussões 189 representantes diferentes, sendo, em sua grande maioria, representantes ministeriais: Ministério de Minas e Energia – MME, Ministério do Meio Ambiente – MMA, Ministério da Ciência e Tecnologia – MCT e Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – MDIC. Em menor número estiveram presentes representantes da Vale S.A. e do Ibram. Já os sindicatos, movimentos sociais e ONGs setiveram praticamente ausentes nessas discussões.
Apesar de os movimentos sociais lançarem a campanha “Queremos debater o novo Código da Mineração”, até a sua apresentação ao Congresso não se teve sequer acesso à proposta. O governo recebeu alguns movimentos já às vésperas da apresentação da proposta, mas não publicizou o texto e nem se comprometeu com as reivindicações que vinham da sociedade civil.
É sabido que as empresas tiveram acesso à proposta, conforme foi divulgado na imprensa e em seminários do setor empresarial. As empresas conseguiram negociar detalhes da proposta antes do seu envio ao Congresso, como, por exemplo, a questão da taxação especial e a alíquota dos roylaties. Isso mostra que os interessados não foram tratados de forma equitativa, dando-se prioridade ao setor empresarial.
IHU On-Line – É preciso alterar o Código da Mineração, considerando que foi elaborado há 40 anos?
Carlos Bittencourt – Sim, é preciso. O Código atual foi elaborado pela ditadura e traz consigo as marcas desse período autoritário, tanto do ponto de vista da sua forma política como na maneira de entender os territórios e territorialidades.
Por exemplo, na época da elaboração do Código atual, o Brasil não era signatário da Convenção 169 da OIT, que garante às comunidades indígenas e tradicionais o direito de serem consultados previamente de forma livre e informada sobre a instalação de grandes empreendimentos em seus territórios. Hoje o Brasil é signatário e deveria obrigatoriamente levar isso em conta.
Naquela época, todo o debate sobre direitos da natureza, mudanças climáticas, bens comuns, se encontrava muito incipiente. Hoje já se sabe dos impactos potenciais de seguir desenvolvendo esse modelo de extrair mais, produzir mais, consumir mais e jogar mais coisas no lixo. Está claro que vivemos em um mundo finito, onde não é possível seguir crescendo infinitamente.
Por fim, uma mudança fundamental e necessária em um período democrático é construção de vias de acesso para a cidadania influir no planejamento do setor. É óbvio que o debate sobre se o minério de ferro brasileiro vai acabar em 80 ou 600 anos é do interesse de todos. Sob o marco da nova Constituição Federal, chamada por muitos de Constituição Cidadã, devemos construir um código da mineração mais democrático do que o apresentado pelo marechal Humberto de Alencar Castello Branco.
IHU On-Line – Quais são as propostas do atual projeto de lei que propõe alterar o Código da Mineração?
Carlos Bittencourt – Há basicamente modificações significativas em três dimensões na proposta atual frente à antiga. Uma mudança processual, uma fiscal e uma organizativa.
A primeira diz respeito ao processo de concessão dos direitos minerários e significa uma melhora com relação ao Código atual. O mecanismo de prioridade, onde quem faz o requerimento minerário primeiro (mesmo pessoas físicas) fica com a licença para pesquisas e explorar os minérios, será substituído por um sistema de emissão de licenças similar ao modelo de concessões petrolíferas, onde o governo estabelece os blocos a concessionar e as empresas concorrem para conseguir a operação nessas áreas.
Outra mudança diz respeito à arrecadação da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais – CFEM, que poderá ter alíquota máxima de 4% e incidirá sobre a receita bruta das empresas. Atualmente a CFEM incide sobre a receita líquida. Infelizmente, aqui houve um recuo importante do governo frente às empresas, pois abaixou a alíquota máxima de 6% para 4% e retirou da proposta a taxação especial para minas de alta lucratividade.
O governo propõe a extinção do Departamento Nacional de Produção Mineral e a sua substituição por uma Agência Reguladora, que se responsabilizaria pela normatização e fiscalização do setor. Cria também o Conselho Nacional da Mineração, composto apenas por ministros indicados pelo presidente da República e dá mais poderes para o Serviço Geológico Nacional – CPRM na pesquisa e gestão das informações geológicas do Brasil.
Acredito que algumas dessas mudanças apontam em um sentido positivo, de um pouco mais de controle público sobre a operação privada do setor. Mas pensando a questão da mineração em seu conjunto e mesmo comparando com as normativas de outros países, vemos que essas medidas são bastante insuficientes.
IHU On-Line – Quais são suas principais críticas ao projeto de lei que propõe alterar o Código da Mineração?
Carlos Bittencourt – O Código trata a mineração apenas como um negócio. Nem sequer considera que está regulando um bem comum natural, finito e não renovável. Nesse sentido, penso que o Código da Mineração pode ter uma dimensão mais perversa do que o Código Florestal, pois se trata de ações irreversíveis. Em certa medida, em um governo menos dominado pelos ruralistas, poder-se-iam alterar os limites de proteção das florestas para uma área maior do que a anterior às mudanças propostas no Código Florestal e, com o passar do tempo, reflorestar essas áreas. Com a mineração não. Não há segunda safra na mineração. O que se avançar sobre as reservas de minérios do país, exportando-as, será um avanço irrecuperável.
Outra crítica tão importante quanto à primeira é que não há qualquer menção a pessoas ou comunidades na proposta: é um código desumano, por assim dizer. As pessoas não aparecem nem como trabalhadores de um dos setores econômicos que mais mata, mutila e enlouquece seus operários, nem como os afetados pela mineração nos territórios que têm suas roças inviabilizadas pela contaminação das águas ou pela apropriação do solo. Mais uma vez fica claro que é a regulação de um negócio e não de uma atividade com todas as suas implicações.
Um terceiro problema, que complementa e intensifica os anteriores, é a total privatização dos bens naturais. Após a privatização do Sistema Mineral Brasileiro na década de 1990, os recursos minerais apenas formalmente são bens da União, enquanto não estão sendo explorados. Quando se inicia a exploração mineral, quem decide como, quanto e em que ritmo os minérios devem ser extraídos são as empresas privadas, levando em conta apenas as dinâmicas do mercado. Em muitos casos são empresas estrangeiras que determinam o planejamento sobre a produção mineral como, por exemplo, na extração de ouro, na qual 80% da extração é feita por empresas de fora do país. Não há um controle público sobre a extração e isso dificulta que os benefícios advindos daí retornem para a sociedade brasileira.
IHU On-Line – Quais são as reivindicações do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração?
Carlos Bittencourt – A reivindicação número 1 é a retirada do regime de urgência. Se o governo mantém a proposta tramitando nesse regime, interpretaremos como uma falta de compromisso com o diálogo e o debate. A manutenção do regime de urgência inviabiliza a participação da cidadania e das comunidades afetadas na discussão.
Até aqui elaboramos sete pontos mínimos que, acreditamos, devem ser inseridos no debate. São eles: Democracia e transparência na formulação e aplicação da política mineral brasileira; direito de consulta, consentimento e veto das comunidades locais afetadas pelas atividades mineradoras; definição de taxas e ritmos de extração, de acordo com planejamento democrático; delimitação e respeito a áreas livres de mineração; controle dos danos ambientais e estabelecimento de Planos de Fechamento de Minas com contingenciamento de recursos; respeito e proteção aos Direitos dos Trabalhadores; garantia de que a Mineração em Terras Indígenas respeite a Convenção 169 da OIT e esteja subordinada à aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas.
Essas propostas vêm dos territórios afetados, dos movimentos sociais do campo e da cidade, de pensadores de nossas universidades e ONGs, que compõem o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Diz respeito a questões muito concretas envolvendo a mineração no país. Em torno delas temos debatido e apresentado emendas ao projeto na Câmara Federal. É evidente que esses são temas que não podem ficar de fora e representam muitas entidades e movimentos sociais do Brasil.