Murilo Gaspardo* – Correio da Cidadania
Em sentido amplo, a corrupção pode ser entendida como todo tipo de conduta que mobilize irregularmente recursos públicos em favor de interesses privados, em prejuízo do interesse público. Compreende tanto fraudes e superfaturamentos em licitações como o uso indevido de bens públicos e a ausência (ou o desrespeito) de critérios públicos e democraticamente estabelecidos na construção de obras e na prestação de serviços públicos. Portanto, a prática da corrupção não é exclusiva de políticos: também podem ser considerados corruptos os que oferecem suborno para evitar o pagamento de multas, sonegadores de impostos, servidores públicos que não cumprem suas atribuições, quem se vale de relacionamento com ocupante de algum cargo público para obter privilégios e, evidentemente, os que financiam campanhas eleitorais para que os representantes eleitos atendam prioritariamente os seus interesses, e não os da coletividade, dentre tantos outros exemplos.
As causas do fenômeno da corrupção encontram-se, primeiramente, na própria natureza humana, na qual convivem vícios (como o egoísmo) e virtudes. Em segundo lugar, é preciso lembrar que o Brasil é marcado, desde os primórdios de sua história, pela apropriação do Estado por interesses privados, por práticas políticas fisiológicas e clientelistas culturalmente enraizadas. O sistema econômico, que funciona sob a lógica do predomínio do interesse privado em detrimento do público, também explica a existência da corrupção. Por fim, temos os elementos institucionais do sistema político, cuja proposta de reforma se encontra em pauta.
Neste artigo, pretendemos apresentar pequena contribuição para a reflexão sobre o aspecto institucional, mas é necessário assinalar a existência dos demais fatores para nos precavermos contra a ilusão (espontânea ou estimulada) de que bastam uma “reforma política” e a transformação da corrupção em crime hediondo para que tudo esteja resolvido. Exigem-se, na verdade, mudanças radicais em nossos comportamentos, na cultura política e no sistema econômico, questões que exigem discussões específicas.
A propósito do financiamento privado de campanhas eleitorais, observa-se que se encontra na raiz da corrupção política, pois, conforme as regras do jogo capitalista, quem investe quer retorno do investimento, o que pode ocorrer por meio de desvio de recursos públicos ou por meio da defesa dos interesses do financiador junto aos poderes do Estado. Portanto, as propostas de restrição do financiamento de campanha exclusivamente público ou restrito a contribuições modestas de pessoas físicas são centrais em qualquer tentativa de reforma política, embora são sejam suficientes. Isto porque, se é de conhecimento geral a prática do “caixa dois” no sistema atualmente vigente, ela pode persistir mesmo com as mudanças propostas.
Desta forma, é necessário reforçar os mecanismos de fiscalização e controle do financiamento e dos gastos de campanha, além de diminuir seus custos. Por exemplo, como já foram proibidas a distribuição de brindes e a realização de “showmícios”, por que não proibir outras práticas como a utilização de cartazes, faixas e outros materiais que, além de custarem muito caro, causam poluição visual e em nada contribuem com o debate político? Ou então restringir os formatos dos programas de rádio e televisão para diminuir seus custos e reduzir a influência dos “marquereitos”?
Outro fator fundamental para o combate à corrupção é a transparência. Já houve um avanço institucional relevante com a “Lei de Acesso à Informação”, mas ainda há uma longa caminhada na garantia do seu cumprimento, que deve ser exigido, inclusive, perante o Poder Judiciário. Aliás, o Ministério Público e o Judiciário devem desempenhar um papel mais efetivo no combate à corrupção, não só nas ações com grande repercussão na mídia, mas, sobretudo, em sua atividade cotidiana, mediante maior celeridade, no ajuizamento e no julgamento de ações de improbidade administrativa e de crimes contra a Administração Pública.
Já o Poder Legislativo precisa assumir seu papel político e constitucional de fiscalização e controle da Administração Pública, o qual se encontra esvaziado por se submeter ao Poder Executivo em troca de distribuição de cargos e liberação de emendas parlamentares ao orçamento. Com a crescente perda de importância do debate ideológico e da disputa entre projetos alternativos (pelo menos para a maior parte dos partidos políticos e da população), bem como o avanço da atuação normativa do Executivo (por medidas provisórias ou pelo poder de iniciativa), cada vez mais o papel dos parlamentares se reduz à defesa de interesses particulares, à realização de favores e à intermediação de liberação de recursos para os municípios, e é pela eficiência no desempenho de tais funções que são avaliados pelos financiadores e pela população em geral.
Como o êxito no desempenho de tais tarefas depende, na verdade, do Executivo, os parlamentares deixam de fiscalizá-lo e de controlá-lo adequadamente, bem como de dedicar suas energias ao debate das grandes questões nacionais, para atuarem como meros defensores e representantes de interesses particulares e despachantes de prefeitos para liberação de recursos federais (ou estaduais, conforme o caso).
Diante deste cenário, há proposta em discussão no Congresso para tornar impositivas as emendas dos parlamentares ao Orçamento da União, mas este não é o caminho mais correto, pois não altera a lógica atual do sistema. Na verdade, as emendas individuais ao orçamento deveriam ser proibidas, de maneira que tais propostas ficariam restritas, por exemplo, às Comissões Permanentes, que discutiriam o projeto de maneira ampla, e não pensando apenas em atender, em geral sem muitos critérios, as bases eleitorais individuais.
Outro mecanismo importante consiste na ampliação e no aperfeiçoamento dos procedimentos de transferências voluntárias de recursos da União para os estados e municípios (e dos estados para os municípios), mediante editais com regras claras e democraticamente definidas; o papel do Legislativo deve ser discutir e interferir na definição destes critérios, e não determinar (sem critérios) quais municípios e instituições serão atendidos.
Na mesma linha, um debate essencial deve ocorrer sobre a redistribuição de receitas tributárias, hoje bastante concentradas na União, o que torna, sobretudo os municípios, extremamente dependentes de repasses federais para a realização de investimentos. Mudanças institucionais como estas poderiam ajudar a redirecionar o Legislativo para o cumprimento de suas missões institucionais de legislar, controlar o Executivo e fazer ecoarem as demandas da sociedade (não os interesses privados).
Outro efeito positivo seria a diminuição dos intermediários na distribuição de recursos públicos, o que contribui com o combate à corrupção, pois pode ocorrer de o sujeito que costuma intermediar a liberação de recursos para os municípios buscar algum benefício adicional, como o direcionamento da licitação para empresas “amigas”, ou o repasse de parte das verbas de “suas” emendas para custear sua campanha à reeleição ou outras “necessidades pessoais”.
Por fim, ressaltamos que duas das grandes agendas colocadas em debate nos últimos dias (combate à corrupção e qualidade dos serviços públicos) se relacionam: a não concretização dos direitos sociais faz com que os mais pobres, muitas vezes, recorram aos políticos para conseguir, por exemplo, atendimento de saúde, ou uma vaga em creche, fortalecendo-se o clientelismo, que corrompe o sistema político. Por sua vez, os detentores do poder econômico também podem pedir seus “favores”, como facilitar a aprovação de um financiamento de um banco público ou de projeto qualquer que se encontre atrasado em virtude da ineficiência da burocracia. Ou seja, a qualidade dos serviços públicos e a existência e cumprimento de regras claras para sua prestação contribuem com a substituição da cultura do favor pela prática da cidadania e, portanto, com o combate à corrupção.
*Doutor em Direito do Estado pela USP. Professor substituto de Ciência Política e Teoria do Estado da UNESP/Campus de Franca.