O mundo inteiro acompanhou os episódios recentes no Rio de Janeiro, com a ação integrada das polícias na tomada de um dos territórios de facções criminosas. Há muito se esperava por isso. As comunidades pobres da cidade – como de outras regiões metropolitanas – vivem em meio à opressão do tráfico de drogas, de outras formas de criminalidade e das milícias, tudo isso alimentado por uma rede de corrupção tentacular. O diagnóstico é conhecido, sobretudo em sua face sutil de criminalização da pobreza, com marcas de racismo e violência real e simbólica.
Por tudo isso, com a euforia que se degenerou em quase irresponsabilidade, se comemorou a ação policial como uma vitória da liberdade. Foi, sem dúvida, um avanço nos campos moral, tático e político. Mas nem por isso a ocupação do Complexo do Alemão deve ser interpretada como triunfo do bem contra o mal. Há méritos inegáveis, que reclamam, exatamente pela honestidade das intenções, a ponderar sobre os outros elementos que compõem o jogo social.
Não se deve exigir que a política de segurança seja portadora de redenção em todos os campos. Ela deve dar conta da segurança, e não de todas as carências da sociedade e do Estado brasileiros. Por isso, em meio à compreensível sensação de superação das causas imediatas da violência, é preciso sempre atentar para o conhecimento acumulado na área, para que não se perca a medida ainda necessária de aprofundamento das ações políticas no setor.
Tanques e milhares de policiais nas ruas não vão solucionar o problema do sistema carcerário, da corrupção policial e judicial, da falta de presença do Estado nas comunidades mais afetadas pela violência, da ineficiência do modelo de gestão do aparelho policial, da ausência de uma carreira digna para os policiais, da falta de inteligência de organicidade das decisões e do desrespeito aos direitos humanos. A ocupação ostensiva do território é uma das ações. Só tem sentido quando deflagra um processo de continuidade que responsabiliza um arco cada vez maior de atores.
Esses são temas complexos, que vêm sendo debatidos por todos. O que é bom. No entanto, por uma característica típica de nossa formação, há sempre a tendência de responsabilizar o outro, na figura do Estado e de seus agentes, pela solução de nossos problemas. A violência é sintoma de uma sociedade doente. Expressa, em suas formas mais hediondas, o desvio profundo na rota civilizacional: injustiça social, privilégios, discriminação, preconceito, consumismo, impunidade. É esse trajeto de equívocos que faz com que ela se naturalize entre nós e faça com que as vítimas, em sua maioria, sejam os pobres, pretos, favelados, homossexuais, mulheres e crianças. Violência é signo de covardia.
Conivência e fraqueza – Por isso, ao mesmo tempo em que apontamos para o aparato estatal como grande responsável pelo controle da violência (nesse caso, a ação policial é sua expressão mais patente), corremos o risco de naturalizar algumas expressões do horror como sendo consequência de ações individuais de menor peso. A violência é sempre do outro. Quando emerge das classes média e alta – seja no trânsito, no racismo, na prepotência, no machismo, no preconceito –, surge como sinal de autoproteção. E aí não há Bope que dê conta. As pessoas sustentam o preconceito como se fosse uma visão de mundo.
Ao mesmo tempo em que o Brasil acompanhava pela TV as imagens do Rio de Janeiro, alguns episódios violentos localizados pareciam gritar à consciência. Em São Paulo, um grupo de jovens agrediu rapazes homossexuais de forma covarde. Não se trata de caso isolado, mas de realidade persistente, que ocorre todos os dias. Os agressores foram defendidos por um advogado iracundo, que parecia indignado com a ação da polícia pela detenção dos jovens. A intolerância tem amparo, como sabemos, em vários escalões da sociedade. A homofobia havia, algumas semanas antes, levado um soldado do Exército do Rio (que poderia ser um dos heróis da ocupação do Alemão) a dar um tiro na barriga de um adolescente que voltava da parada gay.
Em Belo Horizonte, dois casos também recentes exibem a marca da violência explícita de uma sociedade intolerante. No primeiro deles, um rapaz foi morto em briga de torcidas de futebol, em frente a uma arena que exibia torneio de luta livre. Do lado de dentro do ginásio, “atletas” se digladiavam a socos e pontapés, acompanhados por um público sedento de dores, sangue e sofrimento. Na porta, torcidas organizadas transformavam a luta simbólica em assassinato. Podem dizer que uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas a lógica que transforma jogo de futebol em questão de vida ou morte (a ponto de gerar ódio imotivado) é a mesma que traduz a selvageria do vale tudo em esporte.
Também na capital, um caso hediondo de violência envolveu o produtor cultural Hudson Carlos, mais conhecido como rapper Ice Band, covardemente espancado por sete homens em um bar. Hudson está internado no Pronto-Socorro, com fraturas no maxilar e na clavícula e escoriações por todo o corpo. Ao tentar pedir ajuda ao Batalhão da Polícia, perto do bar, foi preso com uma gravata e tratado como marginal pelo militar.
Hudson tem uma história de vida incomum. É desses homens que foram ao inferno e voltaram com sonhos de paz. Dedica sua vida a conversar com jovens, mostrando que há um caminho digno, que passa pela arte e pelo estudo, que pode tirá-los do destino da criminalidade. Hudson é negro, perdeu um olho e tem chumbo pelo corpo. Anda com dificuldade, mas é determinado, criativo e operoso. Superou o passado vivido no crime. Quando fala com os jovens, tem memórias reais, na carne, em todas as suas palavras. Foi espancado porque é negro, veste-se como rapper e tem “cara de pobre”.
Entre os agressores está um funcionário da Ordem dos Advogados do Brasil. A entidade, que fez história na defesa dos direitos humanos no Brasil – outra das causas do cidadão Hudson –, tem em seus quadros gente capaz de selvageria que antecede a noção de direitos e cidadania. Pode parecer contrasenso, mas não é.
Essa tem sido a regra da contraditória sociedade brasileira, que clama por paz e tolerância, mas educa seus filhos para o preconceito; que exige que o Estado garanta a segurança, mas mantém estúpidas relações sociais, trabalhistas e de gênero; que se orgulha de seu cosmopolitismo, traduzido em consumo de marcas e porcarias, ao mesmo tempo que instila a discriminação contra gays; que vê nos pobres e nos negros uma ameaça. A violência não está no Morro do Alemão, está ao nosso lado e é obra de conivência de quem transmite valores como o preconceito e o egoísmo.
Antes de chamar o Exército, é melhor dar uma faxina moral na visão de mundo que transmitimos às novas gerações. A impunidade desses casos, sobretudo os que estão mais próximos de nós, é o selo de nossa incompetência ética e política. Ainda bem que há homens como Hudson para nos lembrar de que podemos ser melhores e que temos muito o que fazer. Aos fortes, como ele, o gesto de levantar e sacudir a poeira faz parte da vida. Quando muitos podem pensar em vingança, Ice Band deve estar se movendo pela Justiça. É o que faz dele um homem honrado e necessário.
ESTADO DE MINAS, 4-12-10 – Caderno Pensar
Enviada por José Carlos.