O que o Rio pode aprender com a Remoção Negra dos EUA no século XX
David Robertson – Rio On Watch
Na área da psiquiatria, nunca houve uma palavra que formalmente diagnosticasse a dor e o trauma que resultam ao ser removido de um lar. Em seu livro, Root Shock: How Tearing Up City Neighborhoods Hurts America, and What We Can Do About It (Choque na Raiz: Como o Rompimento de Comunidades Urbanas Fere a América, e o Que Podemos Fazer a Respeito) a psiquiatra e pesquisadora Dra. Mindy Fullilove dá um nome para esse fenômeno: root shock (choque na raiz).
Fullilove diz: root shock “é a reação ao estresse traumático devido a destruição da totalidade ou de partes de um ecossistema emocional”. Ela acrescenta: “root shock em toda uma comunidade… rompe vínculos, dispersando as pessoas para todas as direções da bússola. Mesmo que consigam se reagrupar, elas não sabem o que fazer umas com as outras”.
O livro foca na destruição de bairros predominantemente negros por políticas de “renovação urbana” nos Estados Unidos. Pela estimativa de Fullilove, quase 1.600 bairros foram destruídos pelo Housing Act de 1949 até 1960. “Esta destruição maciça causou choque na raiz em dois níveis. Em primeiro lugar, os moradores de cada bairro experimentaram o estresse traumático da perda do seu mundo, do seu modo de vida. Em segundo lugar, por causa das interconexões entre todos os negros nos Estados Unidos, toda a América Negra também experimentou o choque na raiz. Após este processo de renovação urbana, o choque na raiz incapacitou poderosos mecanismos que existiam anteriormente de funcionamento das comunidades, deixando o mundo negro [nos EUA] em uma enorme desvantagem para enfrentar os desafios da globalização”.
Durante a imensa migração para cidades, após a escravidão, os negros americanos estabeleceram-se em grande parte nas áreas urbanas centrais que “foram o princípio e o fim de suas opções para a habitação. Como [esses] bairros tornaram-se ‘negros’, a segregação criou um limite que era rigidamente imposto e até mesmo violento”. Nos EUA, “a América Negra [era] … muitas ilhas dentro de uma nação americana”. Após a participação do Brasil nas atrocidades do tráfico de escravos–cerca de dez vezes mais escravos negros chegaram ao Brasil em comparação com os que foram enviados para os Estados Unidos–o Brasil nunca teve um apartheid estrutural como os EUA. No entanto, com escravos libertos reunidos em áreas urbanas como a região do Porto do Rio e frequentemente abrigados em favelas, a segregação urbana tornou-se uma realidade de qualquer maneira. Conforme o censo de 2010, mais de 63% dos moradores das favelas são negros, em comparação com apenas 1.5% de moradores da Lagoa.
Fullilove descreve as comunidades afro-americanas urbanas como lugares que “evoluíram ao longo do tempo, à medida que cada esforço na resolução de algum problema tornou-se parte da memória coletiva”. Da mesma forma, as favelas e comunidades do Rio têm evoluído em infraestrutura e identidade organicamente significativa e constantemente sem a intervenção do Estado. Embora, por vezes estereotipadas como empobrecidas e dominadas pelo crime, na realidade, favelas são ricas em história e cheias de empreendedorismo, práticas de vida sustentável e cultura. Crime e pobreza não são inerentes, mas sim o produto de isolamento sistemático da cidade formal e a falta de oportunidade devido à estigmatização, sendo que ambos tornam as favelas alvos fáceis para elementos criminosos.
Em Roanoke, Virginia, o processo de renovação urbana dispersou moradores afro-americanos em torno da cidade. Um morador descreveu a ‘comunidade coesa’ do seu bairro original–com ruas onde todos se cumprimentavam–resultado de ‘uma vida de rua ativa’ onde moradores andavam para todos os lados. Após a remoção, um morador destacou a dificuldade com a ‘perda de velhas amizades’ e o afastamento dos pedestres na rua para dar maior espaço para os automóveis. “Já não é comum ver as pessoas caminhando na rua dizendo ‘olá’ uma para as outras”. Essas características da identidade da comunidade, bairros mais adequados para pedestres do que para motoristas são fundamentais para a vida na favela. E porque essas características são criadas organicamente, está sendo provado que é, imensamente, difícil recriá-las em bairros planejados de habitação pública do Rio de Janeiro, razão pela qual comunidades orgânicas devem receber o reconhecimento e proteção.
Além disso, a pesquisa de Fullilove sugere que os impactos da dispersão dos membros de uma comunidade não são apenas sociais, mas políticos e culturais. Sala Udin, membro da Câmara dos Vereadores do distrito de Hill, na cidade de Pittsburgh, disse depois de ser removido da sua casa: “Nós estamos literalmente espalhados pelos quatro cantos da cidade, e estamos não só politicamente fracos, nós não somos uma entidade política… E eu acho que tudo isso contribui para uma ruptura cultural, uma quebra de valores e uma psique violada, além de enfraquecer esta cidade”. No contexto dos esforços ativos de organização nas favelas do Rio de Janeiro, devemos considerar que a luta pelos direitos torna-se mais difícil quando as redes estabelecidas são quebradas e os moradores são levados para morar numa área dominada pela milícia que controla a organização política.
Fullilove oferece esta palavra de cautela sobre as consequências da separação de comunidades sem um plano de escala maciça para reparar o dano feito: “Na ausência de uma solução apropriada pós-desastre, foi em um estado de danos esmagador que os negros tiveram que enfrentar uma série de crises: a perda de postos de trabalho não qualificados, o influxo de heroína e outras drogas que causam dependência… violência… O atual estado da América Negra é em grande parte o resultado da ‘Remoção Negra’”.
Infelizmente, os paralelos significativos entre as políticas públicas atuais do Rio de Janeiro e as ex-políticas americanas de renovação urbana, sugerem que os políticos do Rio não têm conhecimento da vasta literatura sobre falhas de habitação dos EUA, incluindo o aviso de Fullilove. Nos EUA, a renovação urbana foi vista como sinônimo de “progresso” durante toda a década de 1950, embora não dispunha de participação do público. Fullilove escreve: “As pessoas pobres, negras e mulheres ficaram completamente ausentes do quadro, e dos processos de decisão”. No Rio, tudo, desde o programa de policiamento até habitação e infraestrutura têm sofrido processos participativos não adequados. O governo municipal tem ignorado a proposta do Plano Popular(internacionalmente reconhecido) da comunidade Vila Autódromo para o desenvolvimento do bairro ao lado do Parque Olímpico.
O livro de Fullilove está cheio de estatísticas sobre a história do fracasso dos Estados Unidos para fornecer moradia acessível adequada para sua população. Em Newark, apenas 3.760 unidades habitacionais de baixa renda foram criadas desde 1959, ao passo que cerca de 8.000 unidades foram demolidas em nome da renovação urbana. Em Detroit, os números são mais drásticos: apenas 758 unidades foram construídas desde 1956, apesar de quase 12.000 famílias serem removidas. No Rio, as favelas servem como habitação à preços acessíveis para os moradores de baixa renda, por isso são essenciais para garantir acesso de todos à cidade. Se eles não forem preservados como tal, o Rio terá custo ainda maiores de habitação e um processo de gentrificação maior ainda do que muitas cidades americanas têm experimentado, dado a completa falta de regulação do mercado imobiliário do Rio de Janeiro (cidades dos Estados Unidos são reguladas em algum nível).
A principal crítica da renovação urbana americana é que ela abertamente e, inadvertidamente, retirou residências de áreas centrais e substituiu o traçado de ruas de pedestres para “mega quadras e mega edifícios rodeados por estacionamentos”. Apesar de algumas políticas públicas bem intencionadas para reconstruir ou modernizar bairros negros mais pobres no centro das cidades, os incentivos especulativos tomaram a prioridade para muitos governos municipais que foram convencidos a vender terras para empreiteiras privadas para aumentar a sua base de tributação. No Rio, com os Jogos Olímpicos a menos de um ano para o início, está claro que esta cidade também está em dívida com construções privadas e imobiliárias, e o tempo dirá se as autoridades irão deixar essas forças governarem o Rio ao custo das favelas e habitação acessível em geral.
Finalmente, Fullilove argumenta: “Quando toda a retórica extravagante sobre ‘a feiura’ [do lugar] é descartada, a renovação urbana americana foi uma resposta para a questão: “Os pobres estão sempre entre nós, mas nós temos que vê-los todos os dias?”. O problema abordado pelos urbanistas não era como acabar com a pobreza, mas como esconder os pobres. “Aqueles que estão sendo removidos hoje no Rio estão sendo movidos para as periferias distantes do Rio, na Zona Oeste, longe dos bairros mais ricos que são populares com turistas ou empreiteiras, e experimentam uma piora, não melhora, em sua qualidade de vida, bem como os negros americanos que foram removidos para as periferias das cidades norte americanas.
A narrativa de Fullilove sobre as falhas de renovação urbana nos Estados Unidos é detalhada, esclarecedora e impactante. Quando comparada com as injustiças atuais em favelas do Rio de Janeiro, no entanto, esta narrativa é ainda mais marcante por causa das semelhanças e avisos. Fullilove exorta-nos a ver que “uma cidade não é tão sólida quanto sólida parece, [mas] um fluido, constantemente tomando novas formas, como limpamos e construímos, limpamos e construímos”. Ela adverte que um sistema rígido, estilo apartheid, leva a uma maior aflição. Seu tratamento inclui se tornar consciente das divisões sutis que são reforçadas por políticas públicas, como raça e classe, e a construção de habitação suficiente para atender o déficit habitacional a preços acessíveis com qualidade, algo que tanto o Brasil quanto os EUA ainda não fez bem.