Sociólogo constata hesitações dos socialistas e disseca sectarismo dos dogmáticos, nas eleições portuguesas deste domingo. Ainda assim, recomenda: “transformações maiores virão; enquanto isso, votem à esquerda”…
Por Boaventura de Sousa Santos – Outras Palavras
Uma amiga querida, espanhola, disse-me há dias que lhe apetecia escrever uma crônica intitulada: “Votem à esquerda e deixem-se de parvoíces”. Com esta frase queria ela expressar a ideia de que, apesar de não haver escolhas ideais para votar à esquerda, o mais importante de tudo é mandar embora este governo e tudo o que ele significou para o país. Os danos mais evidentes aí estão: o país empobreceu, a classe média foi arrasada, muitos dos melhores jovens emigraram, a ciência, a saúde e a educação foram decapitadas, tudo isto para diminuir uma dívida que afinal aumentou e para relançar o crescimento econômico que afinal não surgiu e se surgir será um potenciador de desigualdades. E, para além de tudo, a corrupção. Exceptuando o Tribunal Constitucional, o sistema judicial português, além de conservador, é timorato, não sendo capaz de enfrentar políticos enquanto estão no governo. Esta é talvez uma das razões por que os dois líderes do governo queiram tanto ganhar as eleições. Qualquer cidadão minimamente atento não deixará de considerar um escândalo que, no caso dos submarinos, os alemães que corromperam os portugueses tenham sido julgados e punidos enquanto os portugueses corrompidos por eles continuem a exercer funções públicas.
Mas o mais grave do que aconteceu não se vê. Está inscrito no que os portugueses não veem quando se veem ao espelho: a contra-revolução do 24 de Abril, a ideia de que somos um povo incapaz, que não merecemos o que conquistamos nos últimos quarenta anos, que afinal nunca tivemos direitos, recebemos uns donativos que aliás malbaratamos, que fomos irresponsáveis em pensar que podíamos ser europeus noutra qualidade que não a de serviçais estrangeiros dos europeus do norte.
Devemos, pois, deixar-nos de parvoíces e votar à esquerda. Porque é que não há escolhas ideais? O Partido Socialista (PS) entende que, não estando sujeito a nenhuma pressão da esquerda, mais dividida do que nunca, e tendo o atual governo assumido uma posição muito mais à direita que a posição tradicional do Partido Social Democrata (PSD), tem à sua disposição o centro, onde não tem concorrência. Estratégia arriscada porque, depois de quatro anos de destruição da classe média que sustenta o centro, não se sabe como votarão as suas ruínas. A Europa está a mudar. Vejamos o caso inglês, onde o partido irmão do PS, o Partido Trabalhista, acaba de eleger o secretário-geral mais à esquerda da sua história. Por maioria esmagadora, com a contribuição crucial de jovens que só agora se filiaram no partido (3 libras — quase R$ 20 — pela filiação), com o objectivo de pôr fim ao centrismo e de poder lutar por uma sociedade onde a injustiça, a precariedade e a pobreza não sejam uma fatalidade de que só os ricos estão isentos. No discurso da vitória, Jeremy Corbyn referiu-se sempre ao partido como partido-movimento.
A esquerda à esquerda do PS é a única que se opõe inequivocamente à austeridade, mas é confrangedor vê-la dividir-se ainda mais quando nunca houve tantas razões para se unir. É confrangedor, mas tem uma razão sociológica. Dado o envolvimento dos partidos socialistas europeus com o neoliberalismo e a corrupção e, por último, com as políticas de austeridade que tanta desigualdade e sofrimento injusto têm causado, abriu-se uma janela de oportunidade para uma verdadeira política de esquerda. Para ela se concretizar, seria necessária um profunda revisão das ideologias e uma nova forma da fazer política a partir dos cidadãos humilhados e ofendidos. Em Espanha, a oportunidade foi aproveitada; na Grécia, foi tentada mas falhou ou foi feita falhar.
Em Portugal, não foi sequer tentada. Pelo contrário, o Partido Comunista Português (PCP) contentou-se em continuar a ter sempre razão ante os erros que sempre e só os outros cometem e o Bloco de Esquerda (BE), pelo seu dogmatismo, criou as condições para novos partidos surgirem à esquerda, nomeadamente o Partido Livre (PL) formado com ex-militantes do BE. Como nunca esteve tão longe de ser relevante, a esquerda à esquerda disfarça a irrelevância com a autenticidade dos princípios e a clarividência das propostas, quando não cai no mais caricato espetáculo de personalismo exibicionista. É um desperdício intolerável. Mas ainda maior é desperdício de não podermos contar com a intervenção política de tantos jovens progressistas, altamente qualificados, que podiam estar politicamente mais ativos se a política fosse menos medíocre.
Mas nem tudo é mau. Em alguns distritos, em Coimbra por exemplo, há movimentos de cidadãos e cidadãs com uma história que vem de trás e que, parecendo estar atrás de um partido, está, de fato, à frente dele. São o embrião das transformações políticas que acabarão por chegar à sociedade portuguesa.
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Foto: Multidões tomaram as ruas de Lisboa em junho de 2012, contra as políticas de “austeridade”. Mas também em Portugal, esquerdas tradicionais ainda não acordaram para nova cultura política