Por Gilberto Vieira, secretário nacional do Conselho Indigenista Missionário – Cimi
Antes que alguém faça qualquer associação maldosa ou distorcida, vinculando este texto ao leito presidencial, uma nota:
Segundo o mito grego, Procusto era um malfeitor que morava numa floresta na região de Elêusis, península da Ática, Grécia. Conta o mito que ele mandou fazer uma cama de ferro com exatamente as medidas do seu próprio corpo, nem um milímetro a menos ou a mais. Quando capturava alguém na estrada, ele amarrava naquela cama. Se a pessoa fosse maior do que a cama, ele simplesmente cortava fora o que sobrava. Caso fosse menor, ele a esticava até se ajustar ao tamanho da cama – “justa medida”. Ao que tudo indica, mais uma vez o mito encontra sua âncora firme na realidade, ou nos ajuda a entendê-la melhor.
Há séculos a ‘cama de Procusto’ do Estado brasileiro vem buscando ‘ajustar’ os povos indígenas a suas justas medidas: escravidão, exploração das riquezas, violência, invasões multidimensionadas do corpo, da mente e dos territórios. E os ajustes são sempre na perspectiva procustiana de que a justa medida é sempre ‘do outro’, do branco português, do militar ou do civil golpista, do capital transnacional, que da prata de Potosí ao petróleo amazônico tem por justa medida a exploração exaustiva dos recursos ambientais para o enriquecimento de alguns.
Passados séculos de permanente pressão para a tal adequação forçada – nunca sem resistência, claro –, a reedição da cama de Proscuto ganha também outras dimensões. Assim, vejamos o governo Dilma e a atual edição dos ajustes aos quais os povos indígenas, segundo a lógica governamental subserviente, devem se adequar sob justa medida.
Devem aceitar a privatização da saúde, com o Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI) e o jogo sujo impositivo, enquanto o caos se instala nas comunidades mal ou não assistidas; devem resignar-se à paralisação das demarcações, mesmo que não haja impedimentos judiciais para muitas destas, pois o ‘fantasma’ que ronda o Ministério da Justiça é de que pode haver contestações futuras, então ‘já que se pode cair, não se anda’; devem se contentar e acreditar, mesmo com os números provando o contrário, no discurso repetido a exaustão de que este é o governo que mais demarcou terras indígenas; devem acreditar que as chamadas ‘mesas de negociações’, que não avançaram um milímetro desde que saíram de alguma cartola, são a solução para os conflitos envolvendo os direitos dos povos indígenas por seus territórios, mesmo que estes continuem sendo assassinados, despejados violentamente por pistoleiros e tendo seus direitos constitucionais postergados.
Na cama procustal do governo Dilma, corta-se a cabeça e os pés dos povos à medida em que eles não se encaixam na perspectiva política e conjuntural do governo federal.
A cabeça é cortada quando, mesmo não se admitindo, mantém-se vigente a Portaria 303 da Advocacia-Geral da União (AGU), utilizada ao bel prazer pelos inimigos dos povos; da mesma forma também decapita quando em pleno agosto de 2015 liquidou apenas 11% dos recursos para a Estruturação das Unidades de Saúde Indígena para atender estes povos, quase a mesma medida dos gastos destinados ao Saneamento Básico em Aldeias, cuja execução mal chegou aos 13% dos 60 milhões dotados. E como estará a cabeça dos mais de seis mil indígenas que vivem no Distrito Federal, onde se encontra a sede da Sesai, quando não foram gastos nenhum centavo do um milhão dotado para Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde Indígena?
As adequações também atingem os pés, se assim podemos dizer, pois para a Delimitação, Demarcação e Regularização de Terras Indígenas, processos que o governo do corte não admite paralisados, dos já ínfimos R$ 19 milhões dotados não foram liquidados mais que 4,3%. E para demostrar sua disposição em solucionar os conflitos – que ao contrário do que aparece no relatório do Ministério do Planejamento, não são “Conflitos Indígenas”, mas causados pela violência dos invasores de suas terras e pela anestesia governamental que vitimiza estes povos – dos vergonhosos 30 milhões dotados, nenhum centavo foi liquidado pelo mesmo Ministério da Justiça que diz não paralisar as demarcações.
Ao que tudo indica, no processo de ajustes pretendidos pelo governo que menos demarcou terras indígenas ‘na história deste país’, o muito que ainda resta dos iniciais R$ 152 milhões do orçamento do MJ serão utilizados, na verdade, para a nova Cama Precustal de Dilma: a revisão dos marcos jurídicos que regulam áreas indígenas. Assim, na reedição da vergonhosa concessão ao capital que busca atualizar a cada dia sua exploração, as terras indígenas – cortados os pés ou as cabeças dos direitos dos povos originários – serão, enfim, compatibilizadas com as atividades produtivas para que aqueles que, alimentados por este mesmo governo, se fortaleçam para o golpe certeiro que buscam dar para ajustar o Brasil às justas medidas desmedidas.
Enquanto não dorme no outro leito com o som das panelas batidas por aqueles que não se contentam com a alta do caviar e da garrafa de Moët & Chandon, o governo ajusta em sua Cama Procustal os corpos esportivos indígenas em jogos mundiais, pois isso, em sua cama de ferro, cabe.