Por Alex Peguinelli, em Justificando
Um caminhão com 110 porcos tombou diante de uma praça de pedágio no km 14 do Rodoanel, no município de Caieiras, São Paulo. O motorista não teve mais do que pequenos arranhões. No entanto, os animais não-humanos não tiveram a mesma sorte. Alguns morreram, e outros tantos passaram o dia todo agonizando no local até serem levados por ativistas para um santuário, localizado também no interior do estado.
Algumas emissoras foram ao lugar do acidente, mas estavam mais preocupadas com as condições adversas causadas no trânsito, do que com as vidas em agonia dos animais. Aliás, nem mesmo de animais aqueles seres eram chamados, mas sim de “carga”. O jornalista Rodrigo Bocardi chegou a fazer piada: “Quanta emoção para esses porcos antes de chegar ao matadouro” – disse ele, com um sorriso no rosto.
Pensemos então em uma outra hipótese: imaginemos que ao invés de carregar porcos, este caminhão estivesse repleto de cães e gatos. Sim, cães e gatos, iguais àqueles animais que temos em nossas próprias casas e tratamos como um membro da família.
Não é preciso de muito para saber o estardalhaço que a mídia corporativa estaria fazendo. Não só ela, mas muitas pessoas acomodadas confortavelmente em seus sofás despejariam suas mais íntimas indignações e revoltas diante das redes sociais.
Foi assim quando, em 2013, ativistas realizaram um heróico resgate de cães da raça beagle, que se encontravam aprisionados no Instituto Royal, com a única finalidade de servir como modelos experimentais para testes extremamente cruéis. Essa tomada de posição fez com que o governador do Estado, Geraldo Alckmin, sancionasse a Lei 777/2013, de autoria do deputado estadual Feliciano Filho (DEN) que, com muitas ressalvas, proibe os testes em animais não-humanos para desenvolvimento de cosméticos.
Agora, vamos inverter a posição dos fatores e ver como este fato altera sim o produto.
Imaginemos que, ao invés de cães, os testes fossem feitos em porcos ou, como é mais comum em larga escala, em camundongos. Será que a questão teria também tomado a proporção que tomou na época?
Não precisamos ir longe para saber que não. Vejamos.
Nesse mesmo mês de agosto, 18 pessoas foram executadas por agentes públicos nas cidades de Osasco e Barueri, em uma das maiores chacinas do estado de São Paulo. Todas as pessoas assassinadas, sem exceção, eram parte de minorias: pretos, pobres, egressos do sistema prisional. Pouco se falou na mídia corporativa e a principal manchete de um famoso apresentador, que almeja se tornar prefeito de São Paulo, de quem eu prefiro nem mencionar o nome, dizia assim: “18 mortos, 12 inocentes”. Legitimando assim a prática do assassinato, tão comum de nossas policias, para com os outros seis.
Também nesse mesmo mês, Viviany Beleboni, a transexual que se crucificou como Jesus na última Parada Gay, relatou em vídeo ter sido agredida por uma pessoa que se dizia “de Deu$”. Não bastasse a agressão ser, por si só, impactante, os comentários gerados pela notícia no portal G1 fazem um esforço em piorar a situação: “Tomara que apanhe todo dia!! Merece e muito!!! Soquem mesmo toda vez que encontrar ela !! Perversa” (José Junior); “Já que ele (sic) resolveu aparecer na internet falando que foi agredido (sic), porque as autoridades não vão atrás dessa pessoa pra investigar o que aconteceu? Corram que talvez vocês consigam salvar um pouco do catchup no braço dele (sic). (Evandro Giachetto); “APANHOU POUCO!” (Igor Silva).
Imagino que todos os homens, brancos e heterossexuais, que interpretam essa mesma crucificação em encenações na data da Paixão de Cristo, muito famosas pelo país, não recebam esses tipos de comentários.
Esse é o ponto em que retorno ao questionamento inicial e, novamente, pergunto: por que nossa compaixão é seletiva?
Todas essas situações, mesmo que imensamente diferentes, possuem um fator comum: todas demonstram um ódio social contra tudo o que nos é distante. Nada muito diferente do que Jakobs, pensador alemão, esquematizou em seu direito penal do inimigo. Teoria na qual antecipamos a condenação, de maneira totalmente desproporcional e arbitrária, suprimindo até mesmo garantias mínimas processuais, para que estes ditos inimigos sejam prontamente punidos. Em nossa sociedade, infelizmente, há humanos e não-humanos, que já nascem condenados.
Precisamos levantar um muro entre nós e os outros até chegarmos ao ponto de despersonalizarmos aquela(e) indivíduo. Não mais falamos de porcos, dizemos “carga”. Não mais falamos de seres humanos, dizemos “bandidos”, “transexual”, e a lista continua: “maconheira(o)”, “pobre”, “prostituta(o)”; “louca(o)”; etc.
Assim, à distância, nosso ódio é capaz de tomar corpo e direção.
Vivemos em uma sociedade que nos ensina muito sobre odiar e pouco sobre amar. Desde muito cedo nos ensinam os lugares que cada um(a) de nós ocuparemos naquilo que costumamos chamar de Estado Democrático de Direito. Caso ousemos escapar desses espaços delimitados previamente, estaremos pondo nossa conta e risco, à deriva em um deserto onde a compaixão e o respeito não mais nos protegem. Tudo por nossa culpa.
Finalizando, é necessário que façamos diariamente um questionamento: Quantas vítimas nossos preconceitos fizeram no dia de hoje?
Trazemos à vida bilhões de animais não-humanos, seres sencientes, que amam como nós, se relacionam como nós, desejam viver suas próprias vidas de acordo com suas próprias necessidades – como nós. E, ao invés de buscarmos construir uma sociedade que viabilize tais necessidades, simplesmente levamos estes seres aos abatedouros para que vivam da pior maneira seu suplício final.
Condenamos seres humanos à morte, seja ela simbólica ou concreta, simplesmente por não sabermos lidar e respeitar a diferença presente em cada um(a), criando uma cultura de dedos em riste e ódio, esquematicamente direcionado contra tudo aquilo que busca ser livre.
Enquanto a ordem dos fatores continuar alterando o produto, continuaremos cercados de brutalidade e intolerância. Enquanto nossa compaixão for seletiva, continuaremos criando a figura do Inimigo, contra quem descarregaremos todo ódio que a sociedade nos ensinou sentir muito bem.
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Alex Peguinelli é quintanista do Curso de Direito na Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) e Integrante do coletivo MUDA – Ética, Justiça & Direitos Animais.
Foto: Rafael Bonifácio /Ponte Jornalismo