Com o depoimento da última testemunha de acusação em audiência na semana passada, sobram elementos para que o processo vá a Júri, segundo advogado. Jovem tinha 17 anos e estava sob responsabilidade Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), instituição que mantém sob sua custódia jovens em conflito com a lei
Luiza Sansão, especial para a Ponte Jornalismo
Mais de sete anos se passaram até que Deize Silva de Carvalho pudesse ver avançar o processo contra seis agentes acusados de torturar e assassinar seu filho, Andreu Luís da Silva de Carvalho, à época com 17 anos, nas dependências do Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), instituição que mantém sob sua custódia jovens em conflito com a lei, na Ilha do Governador, zona norte do Rio de Janeiro.
Após duas audiências, em que foram ouvidas outras duas testemunhas de acusação, foi realizada no dia 17/08, no Superior Tribunal de Justiça, uma audiência para que fosse ouvida a última testemunha da acusação, Marcio Luís Brandão, que assistiu, da cela que ocupava no Degase, a sessão de cerca de uma hora de tortura ininterrupta a que Andreu foi submetido em 1º de janeiro de 2008, no CTR (Centro de Triagem e Recepção), culminando com a morte do adolescente, que chegou ao Hospital Municipal Paulino Werneck, na Ilha do Governador, com traumatismo craniano e gravíssimos ferimentos espalhados pelo corpo.
O Ministério Público denunciou os agentes Flávio Renato Alves da Silva Costa, Dorival Correia Teles (vulgo “Paredão”), Wilson Santos (vulgo “Manguinho”), Walace Crespo Rodrigues (vulgo “Seu Gaspar”), Marcos Cesar dos Santos Cotilha (vulgo “Da Provi”) e Arthur Vicente Filho (vulgo “Mais velho” ou “Cordinha”), por crime de homicídio doloso em maio de 2011 e, apesar de ter solicitado sua prisão preventiva e a suspensão imediata do exercício de suas funções públicas no mesmo período, os seis acusados continuaram em liberdade – sendo que cinco permanecem no Degase e um, Wallace Crespo Rodrigues, trabalha no colégio federal Pedro II em Realengo, na zona oeste do Rio, desde 2010.
Como Andreu já tinha passagem pela instituição (por roubo), os agentes o conheciam. Antes de iniciarem o espancamento, segundo Marcio, eles provocaram o adolescente – “você voltou? Quer dizer que isso aqui então é parque de diversões? Tá gostando?” –, aludindo a uma comparação que Andreu teria feito da instituição com um “parque de diversões”.
Enquanto alguns deles “seguravam o adolescente, os outros batiam”, de acordo com a testemunha, que afirmou que “estavam todos nervosos, querendo segurar e bater ao mesmo tempo”. “Os que eu vi batendo mais foram o sr. Flávio e o sr. Montanha [Teles]”, recordou Marcio, a quem Andreu chegou a relatar que sentia muito medo por ter retornado à unidade, pois havia sofrido ameaças de morte por parte dos agentes.
No corpo de Andreu, perfurações indicaram o uso de um cabo de vassoura durante o espancamento, no qual foram empregados ainda uma lata de lixo, saco plástico (inclusive um saco repleto de cocos) e pedaços de madeira. Segundo Marcio, os agressores também jogaram sobre a vítima uma cadeira de madeira.
“Ele [Andreu] não chegou nem a entrar na cela. Depois que eles [os agentes] viram que mataram, ficaram desesperados”, contou a testemunha, segundo a qual o corpo do adolescente foi levado pelos agentes pouco depois, como se se dirigissem à enfermaria. Para eliminar evidências da tortura, as roupas de Andreu foram logo queimadas, segundo contou um funcionário Degase que não quis se identificar contou a Deize à época.
Ela soube detalhes do que havia ocorrido ao filho por meio de relatos de vários internos que dividiam a mesma cela de onde tudo pôde ser visto por Marcio – que chegou a escrever uma carta à namorada em que narrava os fatos, tendo sido a carta anexada ao processo. Os 14 internos ouvidos durante a fase de inquérito afirmaram que Andreu foi agredido ininterruptamente até não apresentar mais reação, de acordo com a denúncia feita pelo MP.
Após o assassinato de Andreu, os agentes passaram a ameaçar outros internos. “[Eles diziam que] se nós fizesse qualquer coisa de errado, o que aconteceu com o jovem ia acontecer com a gente, que então era pra nós ficar calmo e esperar a liberdade chegar”.
O depoimento de Marcio revela uma realidade de torturas sistemáticas nas dependências do Degase – tanto psicológicas, como nas ameaças constantes relatadas, quanto físicas. Ele relatou ter sido torturado diversas vezes, inclusive por dois dos agentes acusados pelo assassinato de Andreu – Flávio Costa e Dorival Teles. “Quem ameaçava muito nós era o sr. Flávio. Que ia bater, que ia matar. Sempre, qualquer motivo que nós dava ele vinha, batia. Antes de acontecer, ele já tinha batido em nós, sempre com várias ameaças”, recordou.
Para o advogado da acusação Carlos Nicodemos, após a audiência “sobram elementos para encaminhar o processo a ser julgado, em princípio, no Tribunal do Júri”. “Esta é a primeira etapa do processo, que é a de pronúncia, na qual prevalece o princípio de que, havendo indícios mínimos, os acusados devem ser levados a Júri. E os indícios não são mínimos, já são máximos, e por isso não foi preciso trazer mais testemunhas de acusação, já que esta já é a quarta ou quinta prova de acusação que fala a mesma coisa”, afirma.
A partir de agora, começarão a ser ouvidas as testemunhas de defesa, etapa após a qual o processo caminhará para as alegações finais e decisão do juiz. Se condenados, os agentes poderão cumprir pena que varia entre 12 e 30 anos de reclusão.
“A dor fez com que eu não parasse”
Desde que Andreu foi morto, Deize deixou de trabalhar para se dedicar integralmente à luta por Justiça, unindo-se a outras mães de jovens assassinados em circunstâncias semelhantes, como as mulheres do Movimento Mães de Maio, de São Paulo.
“A dor fez com que eu não parasse. Não consigo explicar como eu consigo ter forças, junto com essas mães. Quando eu vejo histórias como a do filho ou até piores se repetindo, é muito triste. Eu preciso andar de mãos dadas com essas mães, é isso que me dá forças para seguir na luta contra o Estado genocida”, diz ela, que, durante um período, recebeu intimidações anônimas por telefone – advertindo-a de que deveria “olhar por onde anda”, porque “tem outros filhos”.
Quando Andreu foi preso, ela chegou a acreditar que o “sistema socioeducativo” pudesse fazer bem ao filho e protegê-lo. “Para mim, o Degase é um sistema sóciotortura. Todos os órgãos governamentais sabem o que acontece lá e não tomam uma providência porque não querem, não é do interesse deles”, critica. “Em alguns casos, eles dão um ‘cala a boca’ nas mães, para que não venham para a luta. Mas eu, como mulher negra da favela, não me calaria. Nenhuma indenização que me oferecessem quando eu iniciei essa luta calaria a minha voz, a dor que eu sinto, a revolta contra esse sistema que continua a matar”.
Deize percorreu um longo percurso até conseguir, em 2010, que o corpo de Andreu fosse exumado e submetido a uma nova perícia, mas o laudo produzido na ocasião reproduziu as informações do primeiro, sem mencionar fraturas e um afundamento no crânio da vítima. Em razão disto, será feita uma nova exumação.
Este ano, Deize conseguiu, por meio de uma doação, dinheiro suficiente para ter o direito de manter os restos mortais de Andreu no cemitério São João Batista, onde foi sepultado. “Para as pessoas, são só restos mortais, mas, para mim, é sentimento, é a minha alma, minha dor que está ali. Aqueles restos mortais simbolizam a minha vida, porque o Andreu foi gerado com amor, criado com amor, com dificuldades, e não foi feito para ser torturado no lugar onde esperava que ele estivesse protegido, onde eu não temia que ele pudesse morrer”, encerra, emocionada.
Outro lado
Os agentes do Degase alegaram, em seus depoimentos à Polícia Civil à época do crime, que a “luta” se deu após Andreu dar uma “gravata” ou “mata-leão” no agente Wilson Santos, e que o traumatismo craniano de que o adolescente foi vítima decorreu de uma queda sofrida durante uma suposta tentativa de fuga – embora o perito-legista Luiz Carlos Leal Prestes Junior, tenha informado, no dia do crime, que Andreu morreu “face às agressões” sofridas, sem mencionar a referida tentativa de fuga, de acordo com denúncia feita pelo MP em 2011.
Em seu testemunho, Wilson Santos afirma que, ao ser golpeado por Andreu com a dita “gravata”, teria pedido “ajuda aos demais agentes, pois estava quase desmaiando”, que estes teriam chegado para tirá-lo “do golpe” e que o adolescente teria então corrido e tentado fugir da unidade apoiando-se em uma pia para subir em uma das colunas que davam acesso ao telhado, mas “escorregou e caiu de costa no chão” de uma altura de aproximadamente quatro metros.
Após a queda, segundo Santos, os agentes “o dominaram, sentaram-no a um canto da parede” e, “enquanto pegavam o livro de ocorrência para as anotações administrativas, Andreu aparentava estar bem, não havia sangramento e ele estava lúcido”, mas desmaiou pouco depois e os agentes não conseguiram acordá-lo, levando-o “imediatamente ao HPW [Hospital Municipal Paulino Werneck], onde ocorreu o óbito”.
Já os agentes Flávio Renato Alves da Silva Costa e Wallace Crespo Rodrigues alegaram que, ao tentar fugir, Andreu teria batido com a cabeça no chão – sendo que o último mudou sua versão posteriormente, afirmando que Andreu caíra de costas, como havia dito Santos. Embora tenham alegado que o traumatismo craniano de que Andreu foi vítima decorreu da queda, os agentes admitiram, em seus depoimentos, que o adolescente continuou lutando após cair, e que teria passado mal minutos depois, sendo então encaminhado ao hospital, onde teria falecido.
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Deize Silva de Carvalho é mãe de Andreu Luiz Silva de Carvalho, morto aos 17 anos, dentro do Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), no Rio de Janeiro | Foto: Katja Schilirò
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