Antropólogo lança livro ‘Metafísicas canibais’ e expõe fotografias na mostra ‘Variações do corpo selvagem’
Por Guilherme Freitas, em O Globo
RIO – Certa vez, ao dar uma palestra em Manaus, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro deparou-se com uma plateia dividida entre cientistas e índios. Enquanto apresentava suas teses sobre o perspectivismo ameríndio, conceito desenvolvido a partir da cosmologia dos povos com que estudou na Amazônia, notou que a metade branca da plateia ia perdendo o interesse. No fim da palestra, diante do silêncio dos cientistas, uma índia pediu a palavra para alertá-los: “Vocês precisam prestar atenção ao que o professor aí está dizendo. Ele está dizendo o que a gente sempre disse”.
A cena, relembrada por Viveiros de Castro em entrevista ao GLOBO, remete a uma das teses centrais de seu novo livro, “Metafísicas canibais” (Cosac Naify e n-1 Edições). O autor descreve-o como a “resenha” ou “sinopse” de uma obra que nunca conseguirá concluir e que se chamaria “O Anti-Narciso”. Nela, aproximaria filosofia e antropologia, Deleuze e Lévi-Strauss, para investigar a pergunta: “o que deve conceitualmente a antropologia aos povos que estuda?”. As culturas e sociedades pesquisadas pelos antropólogos, escreve, “influenciam, ou, para dizer de modo mais claro, coproduzem” as teses formuladas a partir dessas pesquisas.
Um dos mais influentes antropólogos hoje, autor de “A inconstância da alma selvagem” (Cosac Naify, 2002) e professor do Museu Nacional da UFRJ, Viveiros de Castro desenvolve em “Metafísicas canibais” suas ideias sobre o perspectivismo, formadas a partir de ideias presentes em sociedades amazônicas sobre como humanos, animais e espíritos veem-se a si mesmos e aos outros. Ele descreve a antropologia como uma forma de “tradução cultural” e pleiteia que seu ideal é ser “a teoria-prática da descolonização permanente do pensamento”. O que implica reconhecer a diferença e a autonomia do pensamento indígena: “não podemos pensar como os índios; podemos, no máximo, pensar com eles”.
Os primeiros contatos de Viveiros de Castro com esse universo estão registrados nas fotografias que fez durante o trabalho de campo com os índios Araweté, Yanomami, Yawalapiti e Kulina, entre meados dos anos 1970 e início dos 1990. Parte dessas fotos será exibida pela primeira vez na exposição “Variações do corpo selvagem”, no Sesc Ipiranga, em São Paulo, a partir do dia 29 de agosto. Com curadoria da escritora e crítica de arte Veronica Stigger e do poeta e crítico literário Eduardo Sterzi, a mostra reúne ainda fotos feitas pelo antropólogo nos anos 1970, quando trabalhava com o cineasta Ivan Cardoso, mestre do gênero “terrir” e diretor de filmes como “O segredo da múmia” (1982) e “As sete vampiras” (1986).
Em entrevista por e-mail, Viveiros de Castro, de 64 anos, fala sobre o livro e a exposição e discute outros temas de sua obra e sua atuação pública, como a crise climática, abordada em “Há mundo por vir?” (Cultura e Barbárie, 2014), que escreveu com a filósofa Déborah Danowski, com quem é casado. Fala também sobre a resistência dos índios contra o “dispositivo etnocida” armado contra eles no Brasil, que mira “suas terras, seu modo de vida, os fundamentos ecológicos e morais de sua economia e sua autonomia política interna”.
Numa nota em “Metafísicas canibais”, você comenta que, sempre que expôs a ouvintes ameríndios suas teses sobre o perspectivismo, eles perceberam as implicações que elas poderiam ter para “as relações de força em vigor entre as ‘culturas’ indígenas e as ‘ciências’ ocidentais que as circunscrevem e administram”. Quais seriam essas implicações? O que interlocutores ameríndios costumam lhe dizer sobre o perspectivismo?
“Sempre que” é um pouco exagerado; dá impressão que eu faço tours de seminários sobre o pensamento indígena para ouvintes indígenas… Eu tinha em mente, naquela nota, uma ocasião em particular. Em 2006, a convite do Instituto Socioambiental, fiz uma palestra para uma plateia de cientistas do INPA, em Manaus, sobre as cosmologias amazônicas e as concepções indígenas da natureza da natureza, por assim dizer. Ao entrar na sala, descobri, com não pouca ansiedade, que apenas metade da plateia era composta de cientistas (biólogos, botânicos, pedólogos etc.) — e que a outra metade da sala estava cheia de índios do Rio Negro. Falar do que pensam os índios diante de uma plateia de índios não é exatamente uma situação confortável. Decidi então apresentar uma versão esquemática do que eu sabia a respeito do modo como o que chamei de “perspectivismo ameríndio” se manifestava nas culturas rionegrinas (povos Tukano e Aruaque, principalmente). No meio da palestra fui percebendo os cientistas cada vez menos interessados naquilo, e os índios cada vez mais agitados. Na hora das perguntas, nenhum cientista falou nada. Os índios, com sua cortesia habitual, esperaram os brancos presentes pararem de não dizer nada até que eles começassem a falar. Uma senhora então se levantou e, dirigindo-se à metade branca e científica da plateia, disse: “vocês precisam prestar atenção ao que o professor aí está dizendo. Ele está dizendo o que a gente sempre disse: que vocês não veem as coisas direito; que, por exemplo, os peixes, quando fazem a piracema (a desova) estão na verdade, lá no fundo do rio, transformados em gente como nós, fazendo um grande dabucuri (cerimônia indígena típica da região)”. E outro índio perguntou: “aquilo que o professor disse, sobre os morros da região serem habitados por espíritos protetores da caça, é verdade. Mas isso quer dizer então que destruir esses morros com garimpo e mineração é perigoso, não é mesmo? E não quereria dizer também que índio não pode ser capitalista?” Percebi, naquele confronto entre cientistas que estudam a Amazônia e os índios que vivem lá, que os primeiros estão interessados apenas no saber indígena que interessa ao que eles, cientistas, já sabem, isto é, àquilo que se encaixa na moldura do conhecimento científico normalizado. Os índios são “úteis” aos cientistas na medida em que podem servir de informantes sobre novas espécies, novas associações ecológicas etc. Mas a estrutura metafísica que sustenta esse conhecimento indígena não lhes dizia absolutamente nada, ou era apenas um ornamento pitoresco para os fenômenos reais. E os índios, ao contrário, se interessaram precisamente pelo interesse de um branco (eu) sobre isso. O que me deu muita coisa a pensar.
Mais geralmente, porém, tenho tido notícia da difusão lenta e episódica, mas real, de meus escritos (e os de meus colegas) sobre isso que chamei de “perspectivismo” junto a pensadores indígenas, ou muito próximos politicamente a eles, em outros países da América Latina (o livro foi traduzido para o espanhol, assim como diversos artigos de mesmo teor). Isso me alegra e, por que não dizer, envaidece muito. Mil vezes poder servir, com esses meus escritos aparentemente tão abstratos, à luta indígena pela autonomia política e filosófica que ser lido e comentado nos círculos acadêmicos — o que também não faz mal nenhum, bem entendido.
No livro, você pergunta: “O que acontece quando se leva o pensamento nativo a sério?”. E continua: “Levar a sério é, para começar, não neutralizar”. Partindo destes termos, quais são as maiores ameaças de “neutralização” do pensamento indígena no Brasil hoje?
Neutralizar este pensamento significa reduzi-lo ao efeito de um complexo de causas ou condições cuja posse conceitual não lhes pertence. Significa, como escrevi no livro, pôr entre parênteses a questão de saber se e como tal pensamento ilustra universais cognitivos da espécie humana, explica-se por certos modos de transmissão socialmente determinada do conhecimento, exprime uma visão de mundo culturalmente particular, valida funcionalmente a distribuição do poder político, e outras tantas formas de neutralização do pensamento alheio. Trata-se de suspender tais explicações-padrão, típicas das ciências humanas, ou, pelo menos, evitar encerrar a antropologia nela. Trata-se de decidir, em suma, pensar o outro pensamento como uma atualização de virtualidades insuspeitas do pensamento em geral, o “nosso” inclusive. Tratá-lo como tratamos qualquer sistema intelectual ocidental: como algo que diz algo que deve ser tratado em seus próprios termos, se quisermos respeitá-lo e incorporá-lo como uma contribuição singular e valiosa à nossa própria e orgulhosa tradição intelectual. Só depois disso poderemos, se tal for nossa veleidade, anatomizá-lo e dissecá-lo segundo os instrumentos usuais da redução científica das práticas de sentido humano.
Mas sua pergunta acrescentava “no Brasil hoje”. No Brasil hoje o que se vê é muito mais que uma “neutralização do pensamento nativo”. O que se vê é uma ofensiva feroz para acabar com os nativos, para varrer suas formas de vida (e portanto de pensamento) da face do território nacional. O que se pretende hoje — o que sempre se pretendeu, mas hoje os métodos são ao mesmo tempo cada vez mais sutis e eficazes sem deixarem de ser brutais como sempre foram — é silenciar os índios, desindianizar todo pensamento nativo, de modo a transformar aquela caboclada atrasada toda que continua a “rexistir” (este é o modo de existência dos índios no Brasil hoje: a “rexistência”) em pobre, isto é, em “bom brasileiro”, mal assistencializado, mal alfabetizado, convertido ao cristianismo evangélico por um exército de missionários fanáticos, transformado em consumidor dócil do estoque infinito de porcarias produzidas pela economia mundial. Em suma: fazer do índio (os que não tiverem sido exterminados antes) um “cidadão”. Cidadão pobre, é claro. Índio rico seria uma ofensa praticamente teológica, uma heresia, à ideologia nacional. Para fazê-lo passar de índio a pobre, é preciso primeiro tirar dele o que ele tem — suas terras, seu modo de vida, os fundamentos ecológicos e morais de sua economia, sua autonomia política interna —‚ para obrigá-lo a desejar consumir o que ele não tem — o que é produzido na terra dos outros (no país do agronegócio, por exemplo, ou nas fábricas chinesas).
Como avalia o estado atual das mobilizações indígenas contra intervenções do Estado em seus modos de vida, como na região do Xingu, com a construção da usina de Belo Monte?
Os índios fazem o que podem. Estão lutando contra uma máquina tecnológica, econômica, politica e militar infinitamente mais poderosa do que eles. No caso de Belo Monte, já perderam. Mas não sem dar um bocado de trabalho ao “programa” que esse governo, cujo ódio estúpido aos índios só é comparável ao que se via nos sombrios tempos da ditadura, vai implantando a ferro e a fogo na Amazônia inteira, inclusive fora do Brasil. Mas a luta continua, e ainda tem muito índio disposto a resistir (a “rexistir”) ao dispositivo etnocida armado contra eles, no Mato Grosso do Sul, no Tapajós, no Xingu, no Rio Negro e por aí afora.
Você tem trabalhado com o conceito de Antropoceno (que já definiu como o momento em que “o capitalismo passa a ser um episódio da paleontologia”) para alertar sobre os efeitos destrutivos da ação humana sobre o planeta. O que precisa mudar no debate público sobre a crise climática?
Muito. Isso tudo vai descrito no livro que coautorei com a filósofa Déborah Danowski, “Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins”, onde comparamos, de um lado, os efeitos já instalados e aqueles por vir da catástrofe ecológica desencadeada pela economia movida a combustíveis fósseis, e tudo o que vem com ela (inclusive o capitalismo financeiro e cognitivo), com os modos com que esse tema arquimilenar, o “fim do mundo”, vem sendo tematizado pela imaginação estética, política e mitológica de nossa própria civilização moderna, de outro lado. E por fim, tecemos considerações sobre como a “mudança de Era” (como dizem os camponeses nordestinos para se referir aos efeitos já palpáveis das mudanças climáticas) por que passamos hoje é pensada pelos índios, em suas mitologias e em sua prática ecopolítica concreta. Penso que as ciências humanas têm sido lentas em assumir que esta questão, que a palavra “Antropoceno” resume, é a questão mais grave e urgente da história humana desde o começo da era Neolítica, e que estamos entrando em uma situação inédita para a espécie como um todo. O debate na esfera pública tem sido laboriosamente mitigado, quando não silenciado, por uma poderosíssima máquina de propaganda financiada pelos principais interessados no status quo, a saber, as grandes corporações petroleiras e outras, como a Monsanto, a Nestlé, a Bunge, a Dow, a Vale, a Rio Tinto etc. Sem falarmos nos governos nacionais, meros instrumentos de polícia desses atores econômicos. Mas as coisas começam a mudar, devagar, mas mudando. Infelizmente, “devagar” é péssimo. Porque a aceleração dos processos de desequilíbrio termodinâmico do planeta marcha em ritmo crescente. O tempo e o espaço entraram em crise, escapam-nos por todos os lados. Hoje a luta política fundamental, a ser levada a nível mundial, é a luta pela liberação do espaço e do tempo.
Você afirma que o perspectivismo não é uma forma de relativismo cultural e, ao conceito corrente de “multiculturalismo”, contrapõe a noção de “multinaturalismo”. Quais são os problemas do relativismo cultural e como o multinaturalismo os evita?
O relativismo cultural é, ao menos como costumeiramente divulgado pela vulgata ideológica dominante, meramente a ideia de que existem várias opiniões sobre o mundo, o universo ou a “realidade”, mas que esta “coisa lá fora” (o mundo etc.) é uma só. Entre essas várias opiniões, há uma certa — a nossa, ou melhor, aquela que acreditamos ser a verdade cientifica (e 99,99% dos que acreditam nela não sabem em que estão acreditando). O resto é “cultura”, superstição, visões exóticas de gente que vive “fora da realidade”. Em relação a essa gente, podemos e até devemos mostrar um pouco de tolerância (afinal, são apenas opiniões, “visões de mundo”), devemos ser “multiculturalistas”. Mas a Natureza, com N maiúsculo, é uma só, e independe de nossas opiniões (exceto da minha, isto é, a da “Ciência” que nos serve de religião laica). O que chamei de “multinaturalismo” ou de “perspectivismo multinaturalista”, para caracterizar as metafísicas indígenas, supõe a indissociabilidade radical, ou pressuposição recíproca, entre “mundo” e “visão”. Não existem “visões de mundo” (muitas visões de um só mundo), mas mundos de visão, mundos compostos de uma multiplicidade de visões eles próprios, onde cada ser, cada elemento do mundo é uma visão no mundo, do mundo — é mundo. Para este tipo de ontologia, o problema que se coloca não é o da “tolerância” (só os donos do poder são “tolerantes”), mas o da diplomacia ou negociação intermundos.
Você defende uma concepção de antropologia como “descolonização permanente do pensamento”. Como ela pode fazer isso? Quais são os maiores impasses da disciplina hoje?
Vou responder rapidamente, ou os leitores não precisarão ler o livro… Trata-se de tomar o discurso dos povos que estudamos (os “nativos”, sejam quem forem) como interlocutores horizontalmente situados em relação ao discurso dos “observadores” (os “antropólogos”). O que a antropologia estuda são sempre outras antropologias, as antropologias dos outros, que articulam conceitos radicalmente diversos dos nossos sobre o que é o anthropos, o “humano”, e sobre o que é o logos (o conhecimento). Descolonizar o pensamento é explodir a distinção entre sujeito e objeto de conhecimento, e aceitar que só existe entreconhecimento, conhecimento comparativo, e que a antropologia como “estudo do outro” é sempre uma tradução (e uma tradução sempre equívoca) para nosso vocabulário conceitual do estudo do outro. O maior desafio vivido hoje pela antropologia é o de aceitar isso e tirar daí todas as consequências, inclusive as consequências políticas.
As fotografias reunidas em “Variações do corpo selvagem” remetem ao seu trabalho de campo com os Araweté, Yanomami, Yawalapiti e Kulina. Quais foram suas maiores descobertas nos encontros com esses povos?
Tudo o que eu escrevi sobre eles.
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Destaque: Índio com filmadora de Viveiros de Castro no Alto Xingu, em 1976. Foto de Eduardo Viveiros de Castro