Após dois anos de convívio intenso com comunidades tradicionais, fotógrafo João Roberto Ripper expõe dignidade mantida, mesmo em face de violência e abandono
Por Cibelih Hespanhol, em Outras Palavras
Com sua voz baixa e gestos demorados, João não parece querer ser visto. Mas vê o tempo todo.
Conheci as fotos antes do fotógrafo, e me foram apresentadas com exclamações de encantos. Diziam: “o Ripper consegue colocar beleza nas denúncias sociais”. “Ele faz um trabalho maravilhoso nas favelas cariocas”. “Uma foto dele faz a gente ver que também existe beleza naquelas pessoas”.
Conheci o fotógrafo quando fomos selecionados para produzir uma reportagem, que logo será publicada pela Agência Pública. Ripper chegou ao norte de Minas no seu Fiat Uno vermelho, com alguns pacotes de cigarro e o jeito mansamente apaixonado de quem faz o que ama. Adentramos pelo sertão até a comunidade vazanteira do Quilombo da Lapinha, onde, enquanto eu ouvia denúncias sobre a crise do São Francisco e conflitos territoriais, ele suspendia as calças até os joelhos para entrar no rio com as crianças. Câmera nas mãos. Os meninos e meninas gritavam, riam, viravam peixe, viravam cambalhota, e Ripper tudo fotografava, calmo e atento. O que é que ele via?
Nas suas fotos, ficamos sabendo. Ele via as cicatrizes áridas dos que resistem na terra seca. A liberdade tão sem querer de um gesto avoado em brincadeira ou carinho. O sorriso rompido feito uma flor no asfalto. E nisso tudo, as histórias por trás das pessoas. Indígenas. Quilombolas. Apanhadores de sempre vivas. Vazanteiros. Espantamo-nos com suas belezas inesperadas porque até então não os tínhamos visto. Não como o fotógrafo: com esse olhar de quem vê uma história. Toda pessoa é uma história. Cada pessoa é uma história. Esta é sua dignidade.
As fotos do Ripper denunciam a dignidade mantida, ainda que em circunstâncias inóspitas de violência e abandono. E nos deixam no desamparo de ter que lidar com a incômoda ternura que é então “ver” aquela vida. Mais fácil quando eles eram apenas uma história única, um número nas estatísticas. Com Ripper, eles são uma pessoa como nós. E como dói: ser gente e entre gentes se reconhecer.
Ripper finaliza seu trabalho de dois anos documentando povos e comunidades tradicionais. Pelos cantos de Minas Gerais e parte do Maranhão, saiu com sua equipe de fotógrafos contando histórias sem dizer muitas palavras. Histórias sobre os apanhadores de sempre viva da Serra do Espinhaço, onde os parques conservacionistas excluem as comunidades de seu território. Sobre os vazanteiros de Pau Preto, que vivem acompanhando as cheias e baixas do São Francisco, e se preocupam com suas águas cada vez mais sujas e secas. Sobre os quilombolas do Quilombo da Praia, que esperam sua regulação fundiária enquanto dançam e cantam para que não morra a sua cultura.
Entre tantas luzes e rostos, a gente se pergunta: como é que podia haver numa pessoa, tantas pessoas? Gesto perigoso. Só para quem está disposto a “transformar-se (muito mais sofridamente) na primeira e profunda pessoa do plural”.
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MAIS:
Fotografando Povos Tradicionais
Fotógrafo percorrerá 10 mil km entre MG e MA para retratar modo de vida de quilombolas, geraizeiros, ribeirinhos e colhedores de flores
O carioca João Roberto Ripper, renomado fotógrafo documental, está na estrada fazendo o que mais gosta, fotografando pequenos povoados no interior do país. Durante alguns meses ele percorrerá quase dez mil quilômetros de carro entre os estados de Minas Gerais e Maranhão documentando o cotidiano de populações que habitam florestas e beira de rios. Onze comunidades, onde vivem quilombolas, ribeirinhos, geraizeiros e colhedores de flores, foram selecionadas. Todas elas, compartilham um sentimento comum, a ambição pelo reconhecimento territorial e identitário.
“Eu vou dar continuidade a um trabalho que venho fazendo há muitos anos. A proposta é focar no norte de Minas e em Alcântara, no Maranhão, mas indiretamente outras populações pobres do Brasil, com uma rica diversidade cultural, beneficiam-se, pois este é um projeto que atinge a solidariedade humana” afirma Ripper. O projeto, intitulado Fotografando Povos Tradicionais está entre os contemplados pelo Prêmio Marc Ferrez de Fotografia, da Funarte. As imagens podem ser vistas pelo público no blog e funpage criados exclusivamente para acompanhar o deslocamento de Ripper.
Breve biografia
Aos 61 anos, João Roberto Ripper ocupa lugar de destaque entre os ícones da fotografia documental humanitária no Brasil e no mundo. Nos anos 90 trabalhou ao lado do Ministério Público e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) denunciando focos de trabalho escravo em minas de carvão no interior do país e fotografou durante duas décadas a triste saga dos índios Guarani Kaiowá em busca de direitos básicos, como terra, saúde e alimentação. Hoje, Ripper é visto como orquestrador de um novo olhar sob as favelas cariocas. Isto porque ele é um dos fundadores da Escola de Fotógrafos Populares que forma profissionais, prioritariamente moradores das comunidades que compõem o Complexo da Maré, na área da fotografia e jornalismo.
Nos últimos anos ele tem percorrido o Brasil e o mundo ministrando uma oficina intitulada Bem querer onde ensina os princípios da comunicação popular e fala sobre o método de trabalho que criou, a fotografia compartilhada, onde as pessoas fotografadas ajudam a editar o material final – podendo inclusive excluir fotografias dos arquivos brutos. J.R Ripper tem dois livros lançados. O primeiro chama-se Imagens Humanas e o segundo Retrato Escravo; ambos podem ser folheados no site oficial do fotógrafo.
Acesse também:
Blog Fotografando Povos Tradicionais:
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Fotos de João Roberto Ripper, claro!