Ressuscita-me, por Justino de Souza Júnior

No Correio da Cidadania

Houve um tempo, não muito distante, em que cabelos brancos indicavam amadurecimento, razoável capacidade de discernimento, responsabilidade, respeito. A frase da canção de Nelson Gonçalves: “respeite ao menos meus cabelos brancos”, ilustra bem essa relação. De maneira que não é menos do que aterrorizador ver essa imagem, que traz um cartaz no qual se lamenta que a atual presidente do Brasil não tenha sido “enforcada” (como foi o destino de Herzog e de outros muitos) pelo regime militar e por sobre o qual sobressaem os cabelinhos brancos de um vovô ou de uma vovó, como dizia Marx, em “odor de santidade”.

A hedionda imagem expõe uma aberração absolutamente impublicável e um ódio sem medida que só pode brotar de uma alma necrosada, apodrecida. Só a insanidade e/ou a mais completa ignorância podem justificar tamanha falta de senso. Não terão sido suficientes as lições deixadas por terríveis experiências de violências, de tortura, escravidão e extermínio, de campos de concentração e dizimação de povos e comunidades inteiros que deixaram na história caudalosos rastros de sangue?

Pois bem, o que poderia justificar a manifestação do cartaz? Ora, os governos petistas não fizeram nada demais, jamais ameaçaram os ricos, jamais questionaram a origem de suas riquezas e de seu poder, jamais indagaram sobre seus métodos de governar, ao contrário, procuraram se associar de maneira subalterna a eles, prestimosamente se ofereceram para colaborar com eles, trabalhar para eles, gerenciar seus negócios através de zelosa administração do Estado brasileiro.

Os governos petistas passaram longe de poderem ser caracterizados como governos populares, não fizeram nem ameaçaram fazer reformas sociais; cooptaram, desmobilizaram e enfraqueceram politicamente os setores mais organizados; desarmaram política e ideologicamente os trabalhadores.

Totalmente ao contrário do que alguns fazem crer, os governos petistas trabalharam para os banqueiros, para o agronegócio, garantiram altos lucros para as grandes corporações econômicas e financeiras. O que fizeram para o povo foi oferecer políticas de elevação do salário mínimo e de transferência de renda que eram tão necessárias quanto possíveis dentro da conjuntura econômica. Necessárias do ponto de vista das camadas mais pauperizadas, obviamente, mas, por outro lado, também muito úteis, pois ajudavam a dinamizar o mercado interno e a justificar o projeto estratégico em curso, que consistia essencialmente na promoção de generosos afagos ao capital.

Aquelas políticas ao lado de outras políticas focalizadas como a das cotas raciais emprestavam aos governos petistas, graças à diminuição real dos índices de miséria e pobreza e melhora da inclusão social, o emblema de bons governos. Noutras palavras, essas políticas eram necessárias, em última instância, para a governança capitalista, pois aquietavam os ânimos e as aspirações dos “de baixo” e seguiam na paralela de outras medidas que asseguravam altíssimas vantagens econômicas às corporações capitalistas.

Outro ponto muito destacado por manifestantes contrários ao governo Dilma é o da corrupção. Esse é um problema de fato do governo atual e dos governos petistas em geral, na medida em que é um aspecto endêmico da administração capitalista em todas as épocas e continentes. A corrupção é uma marca das administrações petistas como é uma marca da administração de todos os demais partidos da ordem e como será de qualquer partido de direita ou de esquerda que pretenda jogar plenamente o jogo da democracia burguesa e da administração capitalista.

O envolvimento de membros do governo ou do Partido dos Trabalhadores em casos de corrupção é apenas um grão de areia na vastidão da desonra nacional. O PT é apenas um estagiário, um aprendiz aplicado das lições dos mestres que controlam o cenário da política nacional desde tempos imemoriais. Desse modo, considerando que a prática da corrupção não é desvio ou exceção à regra, assim como é suja e promíscua a relação entre políticos, autoridades de diferentes setores do Estado e grandes empresas capitalistas, então que todos esses, aprendiz e mestres sintam, indistintamente, o peso da lei e da pressão popular.

O erro dos governos petistas não foi terem sido comunistas, terem sido de esquerda, ou pretendido imitar Cuba e Venezuela, coisas que definitivamente não fazem parte do seu horizonte. Seu erro foi justamente o de não terem sido aquilo que a história exigia que eles fossem: capazes de não apenas diminuir os índices da miséria econômica, mas de erradicar de uma vez por todas a miséria econômica, social, cultural, política e ideológica.

Depois de mais de uma década de administração federal petista o Brasil ainda apresenta índices de desigualdades assustadores. Não somos mais campeões mundiais de desigualdade social, título que possuíamos nos anos 1990, década dos governos de Collor, Itamar e FHC, mas continuamos figurando entre os países mais desiguais do mundo. Aqui ainda se mantém uma situação em que a parcela constituída pelos 10% da população do topo da pirâmide social é 42 vezes mais rica que a parcela da população constituída dos 10% mais pobres. Entre os 12 países mais desiguais do mundo, nossa situação só não é pior do que a da África do Sul – em que aquela proporção é de 49 vezes – e do que a de Honduras – em que aquela proporção é de 57 vezes (1).

O erro dos governos petistas foi exatamente não ter tratado a direita como direita, as elites como elites e terem tentado apagar os antagonismos de classes; foi não terem apontado exatamente onde estavam os malfeitos e os malfeitores; foi não terem apontado os responsáveis pela exploração secular das classes trabalhadoras e terem se aliado a eles e praticado seu jogo. Estava claro que tudo iria se voltar, cedo ou tarde, contra o próprio PT.

A pressão popular deve se acender, mas não para defender o indefensável, como a volta da ditadura, a intervenção ianque, ou qualquer tipo de violência ou retrocesso, mas para que avancem as políticas sociais a partir da redefinição das prioridades nacionais e do redirecionamento do fundo público para atender às reais e urgentes necessidades das maiorias sociais.

Que ressuscite a atividade popular para que “ninguém mais tenha de sacrificar-se por uma casa, um buraco (2)” e o Brasil possa curar suas chagas profundas e seculares para o bem de todo o povo.

Notas:

1) Ver artigo do professor Otaviano Helene “Concentração de renda no Brasil: Educação e desigualdade”, publicado no Le Monde Brasil, em 20/02/2015.

2) Frase extraída do poema O amor de Maiakovski, adaptado e musicado por Caetano Veloso.

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