Cândido Grzybowski,
Sociólogo, diretor do Ibase
A Prefeitura do Rio inicia a preparação do Plano Estratégico 2017-2020 da cidade do Rio, para ser apresentado em 01/03/2016. Trata-se de debater e construir a proposta de agenda para os próximos anos, mas com uma perspectiva que nos leve aos 500 anos, a serem comemorados em 2065. Apesar de ser anunciado como processo participativo de planejamento, aberto a diferentes espaços de consulta, debate e decisão, precisamos ficar muito alertas e cobrar. Afinal, a intervenção urbana promovida pelo prefeito Paes na nossa cidade, sob a justificativa em especial das Olimpíadas 2016, está deixando um legado de grandes transformações, sem nós, a cidadania, termos sido minimamente consultados. Pior do que os transtornos de todo tipo no cotidiano, com remoções de moradores, demolições e concessões obscuras para negócios privados são as transformações que tornam nossa cidade mais atrativa para negócios globais, mas de benefícios duvidosos no sentido de uma cidade mais cidadã.
Há uma interessante iniciativa da Redes da Maré para, através de um seminário, pensar os 450 anos do Rio de Janeiro a partir da favela, deslocando o debate sobre a cidade para a periferia. Como afirma Edson Diniz, trata-se de “falar desse lugar que costuma aparecer deslocado, isolado, no fim da cidade. Mas são essas pessoas que constroem o Rio. A galera da favela produz cultura, funk, rap, samba, malandragem, carioquice, enfim” (Flávia Oliveira, na sua coluna de O Globo, p.42, de domingo 16/08/15). Na verdade, precisamos multiplicar espaços de debates sob iniciativa da cidadania ativa em toda a cidade do Rio de Janeiro, independentemente da própria iniciativa da prefeitura e até na contramão dela, se necessário for. Sou dos que não vê nenhum sinal de que desta vez o processo de planejamento, conduzido pelo grupo que tecnocraticamente controla o poder local, será mais democrático e cidadão. Ainda mais num contexto de crise de hegemonia e esgarçamento político na democracia brasileira como um todo.
Gostaria de apontar alguns desafios a partir de debates que estamos realizando no Ibase. No centro de nossas reflexões está a concepção da cidade como um bem comum, como território comum de cidadania, de realização de direitos e de responsabilidades de todas e todos, em contraposição a território de negócio privado, feito para gerar lucros a serem acumulados por empresas. A cidade real se faz a partir de e nos territórios que vivemos, nosso endereço de cidadãs e cidadãos. A cidade é um território determinado, mas não espaço físico em si e sim espaço geográfico dinâmico, com história humana passada e história em construção pela ação atual de seus habitantes. O uso humano do território cidade, em sua enorme diversidade de formas, qualifica a sua organização e lhe dá sentido histórico. Uma cidade é sempre uma síntese de vários modos de fazer a cidade. Homogeneizá-la é negar a diversidade que lhe dá vida, especificidade e garante a cidadania como ela é e sonha ser. Nós, seres humanos, criadores de cultura, de relações e estruturas, de economias e de poder, somos muito diversos e moldamos o território físico como território produzido, síntese de condições dadas e de nossa ação, contradições, lutas, imaginários e criatividade. Esta é uma referência fundamental para contrastar a cidade criada pela cidadania com as intervenções para moldar a cidade aos interesses econômicos e políticos locais, nacionais e globais.
O que aconteceu no Rio recentemente – e ainda faz a cidade e os cariocas sofrerem – é um processo de moldagem da cidade para negócios, para torná-la uma cidade global, com conexões globais, território para acumulação mais do que território bem comum da cidadania. Fomos deixados de fora, sobretudo a população de favelas, a grande Zona Norte (moradia da maioria da cidade) e a imensa Baixada, intrinsecamente ligada ao que se passa no Rio. Um projeto como o “Morar Carioca”, que reconhecia as favelas como forma de cidade e se propunha a fortalecê-las, tendo em vista o Rio Olímpico, morreu antes de fincar raízes. O Ibase viveu diretamente tal experiência, emprestando o melhor de si para concretizá-la e sendo atropelado pelas opções políticas no sentido de adequar o Rio para jogos e turismo como espaços mercantis e por interesses mais brutos de acumulação econômico-financeira de longo prazo, que sabem se colocar acima de tudo.
Estamos sentindo as mudanças no cotidiano na cidade. Temos os transtornos do Porto Maravilha, com o fim do Elevado da Perimetral – feio mas que poderia ser útil por muitos e muitos anos ainda -, com a novidade boa do VLT e a tal nebulosa de revitalização da área. Esta, de fato, não passa de uma “gentrificação” e abertura de uma área, com infraestrutura já pronta, para grandes investimentos imobiliários … para ricos. Temos, também, o prolongamento da linha de metrô para a Barra e temos os linhões do BRT, em nome dos Jogos Olímpicos, mas pouco ou nada foi feito para melhorar o sistema ferroviários, que está a serviço da mobilidade de mais de 6 milhões de habitantes da Zona Norte, Oeste e da Baixada.
Vamos ficar com novos equipamentos olímpicos, desenhados para competições e não para “cidadania e esporte jogar no mesmo time”, como nos lembrou Betinho lá em 1995, quando o Rio se candidatou pela primeira vez para sediar os jogos. Assistimos a muita remoção para dar lugar a obras, atropelando a cidadania dos invisibilizados e excluídos. Sem dúvida, a cidade é hoje mais global, mais adequada a negócio globais. Ainda mais que é no nosso “marzão” aqui em frente – parte de nossa identidade como cidade – que estão as maiores reservas de petróleo. Acabamos sendo referência para empresários que investem em esporte, turismo, construção civil, no petróleo e mais as sondas e navios. Para variar, com grandes falcatruas próprias do “Cassino global” criado pelas grandes corporações sem pátria. Onde ficou a cidadania?
Precisamos retomar o protagonismo, senão seremos atropelados novamente. A democracia brasileira, com uma onda se esgotando na praia e ainda sem sinais claros de nova onda, demanda ousadia da cidadania. Nós, por definição, temos raízes locais. A reconstrução de nossa cidade, o Rio, é para nós uma forma de reconstrução do próprio país e até do mundo. Sejamos ousados e mãos à obra! Como a conjuntura mostra, nada a esperar dos poderes constituídos!