Dia e noite de 08 de agosto de 2015 foi um momento histórico para as centenas de pessoas que participaram da 12ª edição da Reza do Retiro Velho, projeto Cozinha da Viola, na Comunidade Rural dos Pintos, no município de Resende Costa, cidade do artesanato, de milhares de tecelãs. Doze violeiros, vários deles com filhos e filhas cantores/ras, encantaram a todos nós que tivemos a graça de existir e estar ali de coração aberto saboreando a beleza da arte dos violeiros e desfrutando de uma convivência humanizadora.
Imagine o que vivenciamos. Viagem de Belo Horizonte ao Retiro Velho, contemplando a beleza dos ipês floridos, o ar gostoso da natureza, a natureza se recompondo na beira do asfalto, chegando a formar uma floresta secundária. Mas também contemplando as contradições de uma sociedade capitalista: excesso de monocultura do capim e do eucalipto, e a devastação perpetrada pelas mineradoras que não movem montanhas, mas as removem literalmente deixando crateras obscenas, após esfaquear as entranhas da mãe terra e dizimar as nascentes e os lençóis freáticos.
Em Lagoa Dourada, terra do rocambole, encher o tanque de gasolina a 3,70 reais o litro, pagando 190 reais, o maior preço que já paguei na minha vida para encher o tanque de um gol. Ouvir o comentário do dia em Lagoa Dourada: “Explodiram o Banco do Brasil daqui nessa madrugada.” Cruzar toda a cidade de Resende Costa devagarinho observando a infinidade de lojas de artesanato, feitos em teares, reaproveitando retalhos, em uma profunda sintonia de cores: redes, tapetes etc. E doze quilômetros de estrada de terra com muita poeira, curvas, subindo e descendo morros. Filhos da mãe terra, sempre presente, os ipês floridos exuberantes até chegarmos a uma Igreja que, no alto de um morro, anunciava que estávamos aproximando da Comunidade dos Pintos, onde, na Venda do Roberto, encontramos dezenas de pessoas, violeiros, familiares e amigos/as.
Na Venda do Roberto, daquelas antigas da roça, os litros de cachaça na parede ao lado de pacotes de arroz, de açúcar, trança de alho, uma balança antiga em cima do balcão daqueles também antigos etc. Ambiente propício para rolar uma boa prosa, causos e muita alegria. Depois, na Escola ao lado, um almoço comunitário delicioso: feijão tropeiro, couve e mais um ipê amarelo florido, no terreiro, que com sua grande copa nos acarinhava e dava as boas vindas.
Mais três quilômetros na companhia do cantor e compositor Carlos Farias que, tão inebriado de poesia, nos apresentava as belezas do projeto Cozinha da Viola, a criação das músicas Retiro Velho e Riozinho (esta em parceria com o seu filho Samir Cauã), acabou não percebendo a entrada para o Sítio Retiro Velho. “Foi bom errar o caminho, pois, assim, posso mostrar esses morros e vales aqui”, ponderou Carlos Farias. Voltamos e chegamos ao Retiro Velho, onde Guilherme e Ana, casal anfitrião da festa há 12 anos, ao lado de Ana Paula, Mateus e Lucas – filhos – acolheram a todos com um sorriso estampado no rosto e um abraço afetuoso. “Bem-vindo/a! O Retiro Velho é sua casa. Sinta-se à vontade!”
A fachada da casa, melhor dizendo, do Retiro Velho, parece uma casa da cidade de Tiradentes, com aquelas janelinhas encantadas e encantadoras. Na sala de entrada, um banner anunciava como foram a origem e a evolução do projeto Cozinha da Viola. Nascida de forma espontânea, fruto de inspiração de um encontro descontraído de violeiros na grande cozinha da casa, enquanto tomavam café, dedilhavam as cordas de violas e cantavam. Uma parede da cozinha virou mural onde muitas pessoas escrevem uma mensagem. Fogão a lenha e, ao lado, uma bica d’água jogando água 24 horas por dia e noite direto da fonte, em queda livre. Água que alimenta a chaleira para se fazer o café. É só alguém descobrir que o café está acabando que alguém espontaneamente faz um novo café, pois a água da mina corre ao lado do fogão de lenha que também se mantém aceso. Biscoitos caseiros não faltam. Causos, música de viola, criação de novas músicas como Retiro Velho e Riozinho, fotos, vídeos etc.
Na hora da Ave Maria, na Capelinha de São Sebastião, ao lado da sede do Retiro Velho, iniciamos a Missa dos violeiros, com uma das folias da região, Folia de São Sebastião, com foliões e foliãs. Com um raminho e um pouquinho de água na cuia, reconhecemos a bênção humanizadora que é a capelinha, a Cozinha da Viola, o Retiro Velho, todos, todas e tudo … Em procissão, guiados pela Folia, dirigimo-nos para frente do Retiro Velho, onde um palco tinha sido preparado com muito carinho.
Conclamamos a todos: Sejam bem-vindos/as! Sintam-se em casa aqui na Cozinha da Viola, no Retiro Velho. Respirem fundo. Observemos a beleza do ambiente que nos envolve: o Retiro Velho, as fitas que ornamentam o ambiente, a capelinha de São Sebastião, a grande fogueira. Ouçamos a sinfonia da orquestra dos sapos, dos grilos e de tantos artistas da natureza! Ouçamos a eloquência do silêncio que nos traz a irmã noite …!
Há diversos tipos de missas: missa tradicional que, por muitas vezes, apenas repetir roteiros, não agrada mais a muita gente. Missa sertaneja, missa dos vaqueiros, missa da juventude, missa das crianças. Oxalá as missas fossem todas celebrações da vida e da realidade vivida pelas pessoas e suas comunidades. Hoje, celebraremos aqui uma Missa dos Violeiros, contando com o protagonismo dos violeiros, embaixadores do Deus que também é violeiro. Para invocarmos a santíssima Trindade, mistério de infinito amor, convidamos o violeiro Pereira da Viola, que cantou – e todos acompanharam – a música Louvação, do violeiro Levi Ramiro.
Em um momento de exercício de perdão, recordamos a todos: somos uma beleza extraordinária. Somos imagem e semelhança da trindade santa. O divino está em nós. Temos um infinito potencial de humanização, mas somos humanos e, por isso, ambíguos, limitados, contraditórios. Faz bem sermos humildes, não humilhados. Ser humilde é ser húmus, terra fértil. Peçamos perdão saboreando a música “Deus esteja”, com o violeiro Gustavo Guimarães.
Que perdoados pelo Deus, que, além de violeiro, é mistério de infinito amor, sejamos instrumentos de perdão e de reconciliação onde vivemos e convivemos.
João, um irmão de rua, catador de material reciclável, que participava intensamente da celebração, leu como 1ª leitura bíblica, Isaías 65,17-24: “Eis um novo céu e uma nova terra …” Após a Missa, João dançou o tempo todo diante do palco, durante a apresentação dos violeiros. De vez em quando, com um grande saco, girava no meio do povo recolhendo as latinhas de cerveja e refrigerante, sua fonte de renda.
Recordamos que evangelho é boa/ótima notícia, mas não boa notícia para opressores e oprimidos. Evangelho é boa notícia, sim, para todos, mas a partir dos oprimidos e injustiçados. E para aclamar ao Evangelho, Carlos Farias cantou a música Retiro Velho, “meu recanto predileto, espaço aberto onde a luz se manifesta/ guarda em teu seio o calor da amizade/ quando o chega o fim de tarde/ cada encontro é uma festa/ Retiro Velho, cada amanhecer é lindo/no cantar da seriema gargalhada de menino/ Teu fogo aceso alimenta a cantoria/ muita prosa e poesia/ Salve o dia que vem vindo”, composição dele com Wilson Dias e Tau Brasil.
Como evangelho, anunciamos a mensagem de Mateus 5,13-16: “Sejam luz, sal e fermento no mundo …” E na homilia, que quer dizer diálogo, pontuamos: com os violeiros aqui no Retiro Velho, na Cozinha da Viola, em uma festa beneficente em benefício da APAE de Resende Costa, um novo céu e uma nova terra estão sendo construídos. O profeta, em Isaías 65,17-15, canta o que está em gestação: uma sociedade justa e solidária, onde as/os trabalhadoras/res gozem dos frutos do seu trabalho. Onde quem constrói casas nelas possam morar. “Tá vendo aquele edifício, moço. Ajudei a levantar …”. Estamos no meio de muitas crises, entre as quais a crise ecológica. Oxalá essa nossa celebração aqui, esse encontro fraterno e humanizador, nos inspire a sermos a cada dia luz, sal e fermento na sociedade, cientes de que a luz incomoda pra caramba as trevas, o sal incomoda a comida e o fermento incomoda a massa. Não dá para fazermos a diferença seguindo a política da boa vizinhança e nem sendo omissos, cúmplices ou coniventes diante de tantas injustiças que campeiam por aí. Ser luz, sal e fermento no mundo exige andarmos na contramão atrapalhando o sistema capitalista, máquina de moer vidas.
O momento de ofertório foi animado pelos violeiros Quincas da Viola e Dito Rodrigues com a música Cio da terra. Que beleza! Após a consagração do pão e do vinho, recordamos que Jesus, profundamente ameaçado de morte pelos poderosos da política, da economia e da religião, com seus companheiros/ras mais próximos, em um jantar numa Cozinha, pegou o pão e o vinho em suas mãos e disse: “Comam e bebam todos, todas …” Logo, ninguém tem o direito de excluir ninguém da mesa eucarística. Eucaristia não é prêmio para os puros, mas alimento espiritual para todos e todas. Ai de quem, por moralismos, excluir mães solteiras, desquitados, divorciadas, homossexuais, qualquer pessoa da eucaristia. Todos, quem quiser, podem e devem se sentir convidados de honra para partilhar o pão e o vinho eucarístico. O Evangelho recorda-nos “Façam isto em memória de mim!” Isto, o quê? Fazer o que Jesus de Nazaré fez: viver se doando, consolando os aflitos e incomodando os acomodados, os opressores. Os violeiros são luz, fermento e sal na sociedade. Sigamos com os violeiros conspirando um mundo onde o sentido do nosso viver esteja em ser ético, solidário, justo e amoroso.
Enquanto socializávamos o pão eucarístico, o violeiro Tau Brasil cantava a música “João e o grão”, de Wilson Dias, cuja letra diz: “Como Jesus multiplicou o pão, João planta seu grão/Que deixa de ser grão, pra ver nascer seu filho, fruto do milagre, da multiplicação/ Louvado seja João, bendito grão… / De onde vens, João? Venho do chão/ Sei que sou pai mas também sou filho do grão.”
Como bênção final, o violeiro Wilson Dias cantou Deus é violeiro (letra de João Evangelista Rodrigues): “um romeiro/cancioneiro/meu parceiro/canoeiro diz: Deus é violeiro.”
Ao final, uma bonita procissão com velas acesas seguiu a Folia, saudou a capelinha de São Sebastião, levantou o mastro e acendeu a fogueira de uns 6 metros de altura. Foguetório fez brilhar ainda mais o céu daquela noite com temperatura de uns cinco graus. A palavra foi passada ao Emerson Bastos, que foi o apresentador da festa, regada com música dos violeiros, cerveja, churrasco, caldo de feijão, tropeiro, canjica etc. Toda a renda em benefício da APAE de Resende Costa. Para apresentar os violeiros, Emerson contava um causo e convidava ao palco, um a um, os violeiros. Três músicas para cada um para que todos pudessem nos encantar.
Alguém resolveu, “ao final”, convidar todos os violeiros ao palco. Wilson Dias, ao ser citado como um dos promotores do Projeto Cozinha da Viola, logo pediu o microfone e disse: “Não podemos exaltar ninguém aqui. O que acontece aqui na Reza do Retiro Velho é tudo coletivo e comunitário. Não é obra só de um ou outro, é de todos nós e de muitos que não puderam estar aqui hoje conosco.” Mas não resisto à vontade de mencionar pelo menos alguns nomes de violeiros: Quincas da viola, Pereira da Viola, Wilson Dias, Carlos Farias, Joaci Ornelas, Levi Ramiro, Tau Brasil, Gustavo Guimarães, Ramon e Rosado. Participações especiais de Bartira (filha de Pereira da Viola e Patrícia), a pequena Taila (filha de Dito Rodrigues e Marizete), o percussionista Gladson Braga, o sanfoneiro Lucas Viotti, Augusto Cordeiro (filho de Tau Brasil) Pedro Gomes, Wallace Gomes e Ana Teresa (filhos de Wilson Dias e Nilce) etc.
Que beleza humanizadora! Assim, a festa reinou até a madrugada, na certeza de que Deus é violeiro e está ali na Cozinha da Viola, no Retiro Velho e nos Violeiros e, óbvio, em quem segue os violeiros.
Em 2016, teremos a 13ª edição da Reza do Retiro Velho, com o seu belo projeto “Cozinha da Viola”.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 11 de agosto de 2015.
Obs.: Sugiro a quem não pode estar lá que veja e ouça:
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1) Retiro Velho – Cozinha da Viola:
2) Música Retiro Velho (Cozinha da Viola):
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* Frei e padre da Ordem dos Carmelitas, bacharel e licenciado em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia, mestre em Exegese Bíblica, doutorando em Educação na FAE/UFMG, assessor de CEBs, CPT, CEBI e SAB. [email protected]”; www.freigilvander.blogspot.com.br; www.gilvander.org.br
é como toda missa devia ser, quando tivesse que ser!