A bomba é ‘caseira’ e o tiro é de ‘chumbinho’

Dois atentados acontecem e o que a mídia faz? Minimiza a gravidade dos fatos. A história mostra o que acontece quando nos calamos diante do fascismo.

Por José Renato Vieira Martins, em Carta Maior

O ódio inoculado há anos na população é um dos grandes responsáveis pela escalada da intolerância, do racismo e da xenofobia que estamos assistindo no Brasil. O atentando contra o Instituto Lula e a agressão contra os haitianos em São Paulo são manifestações do mesmo tipo de irracionalidade.

Os dois acontecimentos me concernem pessoalmente. Há dois anos, como professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana – UNILA, pesquiso a presença dos haitianos no Brasil. Há quatro, faço parte da equipe de colaboradores do Instituto Lula.

A versão da grande imprensa sobre a “bomba caseira” lançada no Instituto foi uma tentativa canhestra de minimizar a gravidade do atentado. Em qualquer país democrático, a imprensa daria ampla cobertura e repercussão ao “episódio”, em vez de diminuí-lo ou ocultá-lo como fizeram alguns veículos de comunicação.

Não vi nenhum editorial condenando o gesto, cuja dimensão simbólica atingiu em cheio não só o Instituto como a própria democracia. Silêncio total. Eloquentes colunistas, normalmente tão loquazes sobre assuntos menores, não escreveram uma linha ou disseram uma palavra repudiando o atentado.

Silêncio similar se produziu agora em torno da agressão aos haitianos em São Paulo.

Há atualmente na UNILA cerca de 80 jovens haitianos. O ingresso desses estudantes na Universidade corresponde a ajuda humanitária que o Brasil dedica ao Haiti. O país, que é um dos mais pobres do mundo, ainda não se recuperou totalmente do terremoto que matou mais de 300 mil pessoas em 2010.

Os haitianos que vieram para o Brasil estão concentrados nos estados do sul e sudeste. No Paraná, onde pesquiso a integração desses migrantes, a maioria está empregada na indústria da alimentação e na construção civil. Há anos falta mão de obra nos dois setores, e por isso empresários paranaenses foram buscá-los no Acre. Eles não roubaram o emprego de nenhum trabalhador brasileiro. Os dados da pesquisa revelam que eles ocupam vagas ociosas – fazem parte da solução e não do problema.

Assim como fizeram os imigrantes europeus que chegaram ao Brasil no início do século passado, os haitianos contribuem economicamente com o país. Além disso, são seres humanos que passam por dificuldades. Merecem respeito e solidariedade. Nem mesmo o mais grave distúrbio mental explicaria qualquer tipo de agressão contra pessoas frágeis e inofensivas como eles. E, no entanto, seis haitianos foram alvo de vil atentado em São Paulo.

É o mesmo ódio, a mesma intolerância, fundadas no racismo e na ignorância.

A grande imprensa, que demorou inexplicavelmente a divulgar a agressão contra os haitianos, agora nos informa que eles foram alvo de disparos de “espingarda de chumbinho”. Não houve o emprego de arma de fogo. Novamente minimizam a gravidade do ato, mesmo sabendo que dois dos atingidos provavelmente passarão por cirurgia.

Por trás disso tudo existe um óbvio subtexto, cujo objetivo é anestesiar o incauto leitor. A bomba é “caseira” e a espingarda é de “chumbinho”. Relaxa, não é tão grave assim.

A história mostra o que acontece quando os liberais flertam com o fascismo. Depois de destruir os partidos de esquerda e os sindicatos dos trabalhadores, é contra eles que os bandos fascistas se voltam. Que reflitam um pouco, e parem de inocular o ódio e a intolerância enquanto é tempo.

José Renato Vieira Martins, professor adjunto da Universidade Federal da Integração Latino-Americana ([email protected]).

Foto de Laura Daudén, Conectas.

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