Por Antonio Claret Fernandes, para Combate Racismo Ambiental
O espaço da reunião é conhecido de Sofia, pois morara no Xingu, entre 27 de setembro de 2011 e 16 de novembro de 2014, e estivera ali algumas vezes, ano passado, em articulação da Constituinte Popular. Agora tem o prazer de estar na região novamente, após oito meses, com mais 23 companheiros de Minas Gerais, em missão.
Primeiro mira aquelas pessoas lutadoras, presentes à reunião. Povos, pessoas persistentes na luta é o de melhor que existe na Amazônia. Depois Sofia pensa no acidente dentro do canteiro de Belo Monte, no dia 30 de maio de 2015. Um dos silos da central de concreto desaba durante descarga de um caminhão, seis operários são atingidos e, dentre esses,três perdem a vida: Denivaldo Soares Aguiar, José da Conceição Ferreira da Silva e Pedro Henrique dos Santos Silva.
Sofia lembra, ainda, a indignação da Militante quando vê a Nota de Imprensa da Norte Energia, que reserva uma linha de nada aos operários, preocupada mais em retomar a ‘normalidade’ da obra do que com a morte dos trabalhadores.
Na reunião, a gripe incomoda Sofia, que arreda sua cadeira para um canto, buscando proteger-se, de algum modo, do ar condicionado. Seu pensamento, agora, se volta para atentado contra manifestantes, que trancam a Transamazônica no acesso aos canteiros de obra, no dia 18 de maio. Um carro avança, mata um casal de trabalhadores e, logo adiante, o carro é queimado e o motorista, que teria recebido cobertura de um motoqueiro, foge. Até hoje, após três meses, o Caso não está esclarecido.
Enquanto reflete, Sofia repara cada coisa: as cadeiras brancas, a máquina de ar condicionado – exageradamente frio –, os quadros do Candidato na parede e a grade reforçada na porta, consequência do clima de insegurança em Altamira agravado por Belo Monte.
São três quadros na parede que, ao mesmo tempo, se mostram engraçados e ridículos. Ao menos para Sofia. Em todos aparece a caricatura do Candidato. Desses quase eternos! Sofia se fixa num deles, do lado esquerdo, do ponto de vista geográfico. O Candidato segura uma bandeirola com o mapa do Brasil e uma lâmpada acesa, símbolo da hidrelétrica criminosa no Xingu. A mensagem é que Belo Monte ilumina o país.
Mas a verdade dura, nua e crua é que essa barragem faz parte de uma engrenagem maior, prepotente, de avanço do capital neoliberal na Amazônia, apelidado de desenvolvimentismo.
A fome capitalista atropela a lei. Os indígenas não são ouvidos. E seu processo de licenciamento é atípico (mas não único), uma espécie de sobremesa antes da refeição. Sem cumprir as condicionantes de Licença Prévia, a hidrelétrica ganha Licença de Instalação ‘parcial’ do IBAMA e, agora, sem fazer seu dever de casa, ganhará a Licença de Operação através de um TAC – Termo de Ajustamento de Conduta, internamente já em construção entre Norte Energia e Governo. Na prática, o TAC garante a formalidade para o enchimento do lago e operação de uma hidrelétrica marcada, o tempo todo, pela ilegalidade.
Também a disritmia entre obra civil da hidrelétrica e equipamentos individuais e coletivos garantidores de direitos elementares das famílias atingidas, e do povo em geral, é outra prova de crime. A prioridade absoluta são as intervenções que permitem, no tempo mais curto, a transformação da água, bem natural, em energia, mercadoria preciosa pelo conjunto de negócios que ela possibilita. A mineração será um deles. Empresa canadense chamada Belo Sun ronda a região há alguns anos.
Feito milagre às avessas, que destroça tudo, da Transamazônica se vê a Casa de Força principal da hidrelétrica com suas bocas enormes, local para dezoito turbinas; uma construção gigantesca, antes no papel, agora quase toda materializada, imponente, enquanto em Altamira se sente o caos, indecente, de condicionantes não cumpridas. Infelizmente, o mesmo ocorre em toda a região com indígenas aldeados e citadinos, ribeirinhos, moradores urbanos e do campo.
Altamira é um canteiro de obras! As pontes chamam a atenção! Muito altas, sobre os igarapés, mostram até onde chegará o nível das águas do Xingu na iminência de ser barrado e a imensa área que ficará submersa no lago.
São 3,6 bi para mitigação socioambiental na área impactada por Belo Monte, mas num conceito muito elástico. Tudo que interesse aos donos de Belo Monte, e a seus governos satélites, desde o município à federação, pode ganhar o carimbo socioambiental, as regras se torcem e retorcem ao sabor do apetite insaciável de acumulação e de poder, cada fase do empreendimento se torna um negócio à parte, o próprio direito negado vira lucro. Imagine quanto ganha uma empresa para construir loteamentos de concreto com mais de quatro mil unidades habitacionais? Essa é a conta que o capitalista faz! Se a casa tem vida útil de cinco anos, uma moradia provisória, pouco importa.
Ao final, tem-se a formalidade da comprovação dos gastos, mas sem as obras para a tão propalada melhora da qualidade de vida do povo.
Ainda mais! No limite – e o limite é logo ali -, a nota fria resolve o problema, ajeitando os números e garantindo, de bandeja, algum fundo para o bolso, para as corporações ou para uma candidatura enquadrada. Haverá, então, mais fotos sorridentes, mais quadros na parede, mais placas, menos democracia, menos participação popular, menos Política Pública e menos liberdade.
Apesar de fazer parte de uma engrenagem maior, Belo Monte tem um quê de diferente. Pra pior! Pela sua capacidade de calar vozes destoantes, como ‘cães’ que podem apenas ladrar à vontade. Pela sua habilidade em quebrar a resistência indígena com benesses e cavar-lhe a extinção. Por ser a porta de entrada para futuros lagos no Xingu. Pela Força Nacional instalada dentro do canteiro de obra, que vigia o operário, protege o empreendimento e criminaliza os lutadores.
Mas Belo Monte, por feio que seja, tem lá seus ‘filhos bonitos’, cuja paternidade é disputada a tapa. São filhos concebidos fora da Política Pública, paridos da promiscuidade entre Estado e Capital, nas Parcerias-público-privadas, no estupro ao Direito, porém, ainda assim, alguns são bem-vindos e importantes.
Em Altamira, o Saneamento Básico. O Gestor Público Municipal procura colar sua imagem nele. Consegue dinheiro da Norte – assim se diz entre os íntimos! – para fazer as ligações das casas à rede principal, uma reivindicação dos moradores.
Agora pretende receber o Sistema pronto, em nome da Prefeitura Municipal, para, possivelmente, repassá-lo à iniciativa privada, criando um negócio pra si e pra sua Corporação. Assim vai se desenhando o pós Belo Monte.
Pode até ser que os equipamentos de saneamento não funcionem pela sua inadequação ao contexto local, com refluxo de esgotos nas casas e seu mau cheiro insuportável, mas que importa? Negócio é negócio!
Na Sete, vicinal entre as cidades de Altamira e Brasil Novo, Evandro conta que, lá, um vereador se diz responsável pela chegada da luz, após quase 40 anos de espera. Em Assurini, a luz foi mais longe, entrando por mais de cem Km e, com isso, sua paternidade, também, é mais disputada. Além dos candidatos, em potencial, a disputa se estende para sindicatos, que funcionam como correia de transmissão de políticos de carreira.
A queda de braço maior, no entanto, por enquanto na surdina, vem se dando na disputa pela Prefeitura de Vitória do Xingu, cidade pequena, de aproximadamente 17 mil habitantes (município todo), que arrecada, em média mensal, 10 milhões de reais de Imposto Sobre Serviços por causa das obras da barragem. Considerando-se que Vitória do Xingu sedia Belo Monte, dá para imaginar o tamanho descomunal do bolo quando a hidrelétrica entrar em operação. Políticos de plantão estão de olho na ‘sua’ fatia.
Nenhum povo, porém, é passível de dominação completa e por todo o tempo. Diariamente, as pessoas se movem, reagem, de forma individual, de forma conjunta e espontânea e, por vezes, de forma organizada. Essa é a forma mais eficaz! No último dia 6, por exemplo, apesar dos interditos proibitórios da Norte Energia – processos políticos intimidatórios -, famílias membros do Movimento dos Atingidos por Barragens fecham, mais uma vez, a Transamazônica, na luta por direitos negados.
Quando o império econômico e a arrogância política pensam que tudo está sob controle, entra em cena a rebeldia popular, a única coisa que, realmente, faz diferença. Há sementes dela por toda parte, plantadas no coração militante, através do trabalho de base, e sementes poderão germinar e crescer.
O lago de Belo Monte, que possibilitará a geração de energia para o capital, poderá criar, no seu ponto contraditório, ambiente ainda mais propício para essa energia popular. O nível da água deixará de ser uma linha no mapa, que se arreda pra cá e pra lá ao sabor dos interesses; ele será real, a água morta entrará pelos igarapés, pelas terras, pelas casas, pelo campo, pela cidade. As máscaras cairão! E quem está junto do povo, nesse tempo em que a prepotência vem quebrando tudo, como macaco em casa de louça, tem legitimidade para juntar os ‘cacos’ e seguir em frente.
Termina a reunião. Sofia até esquece a dorzinha de cabeça provocada pela gripe, pois se acha esperançosa, tomada de uma convicção inarredável: o capital, que tem a força de barrar um rio, não pode barrar a organização de um povo. A última palavra, sempre, não é de quem oprime, mas de quem se rebela contra a opressão.
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Imagem: Remoções em Altamira – Reprodução do Movimento Xingu Vivo para Sempre