Seis haitianos foram baleados no sábado (1), na região do Glicério, Centro de São Paulo. Eles passaram pelo hospital e ainda possuem balas alojadas nas pernas e quadris, mas não correm risco de morte. Foram dois ataques, um na rua do Glicério e outro nas escadarias da igreja onde funciona a Missão Paz, que acolhe imigrantes na capital e tem um papel importante no combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas. A informação foi trazida em reportagem de Leonardo Guandeline e Mariana Sanches, do jornal O Globo.
Segundo a matéria, testemunhas afirmaram que um ocupante de um carro cinza gritou “Haitianos, vocês roubam os nossos empregos” e atirou. O caso foi registrado no 8o DP e não há suspeitos. Antes de conseguirem atendimento médico, os feridos foram recusados em duas unidades de saúde.
É uma história que demanda uma investigação cuidadosa para verificar os responsáveis e se o atentado foi mesmo motivado por xenofobia ou por outra razão que se quer encobrir com essa justificativa. Acredito que o envolvimento da Polícia Federal se faz necessário tanto pela pauta quanto por quem são as vítimas.
Portanto este texto não é sobre o atentado e suas razões, mas sobre as repercussões que ele ganhou nas redes.
Pois se as causas estão sob investigação, já é possível falar sobre os comentários racistas e preconceituosos de apoio – isso mesmo, apoio – ao atentado contra os haitianos que já estão circulando na internet. Pessoas que estão rosnando contra os feridos, dizendo que “foi pouco” ou que “ainda bem que alguém tomou coragem”. Para essas pessoas, os imigrantes são também responsáveis pela crise econômica e o desemprego.
Isso me remete a um texto que eu havia escrito a um leitor que estava exatamente conclamando violência contra os haitianos Bem, com sete deles foram de combate, esse leitor deve estar feliz. Ou triste porque os feridos “estão ocupando leitos que seriam de brasileiros”.
O comentário desse leitor estava em um texto que tratava do naufrágio e morte de milhares de africanos que tentam cruzar o mar Mediterrâneo em direção à Europa. A foto e o sobrenome foram cortados para não expor o rapaz. Até porque não era só ele, mas havia muitos na rede com o mesmo teor:
Na época, respondi publicamente ao rapaz e retomo aqui os argumentos. Entendo que ele deva assistir na TV, ouvir de amigos e da família ou mesmo escutar na escola que imigrantes em geral, ou haitianos especificamente, são um “peso” para a nossa sociedade. Ou que sua presença é um dos motivos que levam à sobrecarga dos sistemas de atendimento de saúde, educação e assistência social. E que eles roubam os empregos de brasileiros. É normal que tenha medo daquilo ou daqueles que ele não conheça bem. Daquilo que é “de fora”.
Mas esse medo é infundado, equivocado e preconceituoso.
Os haitianos vêm buscar oportunidades de vida que não são encontradas em seu país, abalado pelo terremoto de 2010, que matou mais de 300 mil pessoas, pondo abaixo suas já frágeis economia e instituições. O Brasil coordena, há anos, uma “força de paz” no Haiti com a justificativa de ajudar a garantir a ordem e a reconstruir o país. O nosso país sempre disse que o Haiti deveria vê-lo como um grande irmão do Sul. Nada mais justo portanto que, no momento de necessidade, passarem um tempo na casa desse irmão. Ou, se quiserem, estabelecerem-se por aqui.
Mas eles vêm também atendendo a um chamado por mão de obra – assim como ocorre com os bolivianos e outros irmãos latino-americanos, africanos e asiáticos. Sim, esse fluxo migratório responde à demanda por força de trabalho no Brasil. Nos últimos anos, determinadas ocupações já não eram preenchidas apenas por brasileiros, como trabalhadoras empregadas domésticas, costureiras, operários da construção civil e de frigoríficos.
E há jovens brasileiros de classes mais baixas que não querem ser costureiros ou empregadas domésticas. Preferem se aventurar como atendentes de telemarketing, que é o novo proletariado urbano.
Os haitianos estão produzindo riqueza no e para o Brasil. Mas sob a perspectiva mal informada de parte população, contudo, eles vêm “roubar” empregos. Isso quando o preconceito não descamba para o medo de roubo de relógios, joias, carros e casas.
A verdade é que muita gente, do Acre a São Paulo, passando por Brasília, quando questionada, não sabe de onde vem o incômodo que sente ao constatar centenas de haitianos chegando e andando pelas ruas. Mas se fossem loiros escandinavos pedindo estada ao contrário de negros, a história seria diferente. Ou seja, para muita gente, o problema é o racismo mesmo. Com todas as letras.
Somado, é claro, à sempre presente discriminação por classe social – negros ricos são menos queridos do que tolerados em uma sociedade preconceituosa como a nossa.
O governo federal demora para viabilizar e financiar estruturas de acolhida, apoio e intermediação oficial de mão de obra de modo a evitar a superexploração e o trabalho escravo de haitianos que já começa a acontecer. E, ao mesmo tempo, não avançamos com a aprovação da nova lei de migrações. Se bem que, com esse Congresso Nacional que está aí, seria capaz deles acabarem legalizando a escravidão de imigrantes pobres.
Afinal, qual o conceito de “brasileiro”? A história de nosso país é uma história de migrações, de acolher gente de todos os cantos do mundo (não tão bem, é claro – São Paulo, por exemplo, é a maior cidade nordestina fora do Nordeste e, ao mesmo tempo, ostentamos ainda um preconceito raivoso e irracional).
Não podemos esquecer que a maioria de nossos antepassados foi explorada até o osso quando aqui chegou. Pois a esmagadora maioria de nós é descendente de imigrantes – sejam eles negros ou brancos. Nossos avós eram os forasteiros que sofriam nas mãos dos estabelecidos. Hoje, somos nós os estabelecidos que criticam os forasteiros.
Com exceção, é claro, dos descendentes de indígenas, que sofreram – e ainda sofrem – um processo lento de genocídio.
Não faz sentido que viremos às costas aos que vêm de fora e adotam o Brasil, mesmo que a contragosto. Eles são tão brasileiros quanto eu e você, trabalham pelo desenvolvimento do país, mas normalmente passam invisíveis aos olhos da administração pública e do resto de nós.