Como o Brasil produz cidades? Na base do conchavo e sem planejamento, por Leonardo Sakamoto

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Qual é a causa dos problemas urbanos? Falta de boa legislação? De vontade política? Carência de recursos humanos qualificados? Corrupção? Para além de tudo isso, o Brasil apresenta uma completa falta de equilíbrio entre as arenas da política e do planejamento urbano, fazendo com que o planejamento seja um discurso completamente descolado da ação coordenada pelo Estado. Ou seja, papel para jogar fora.

Essa é a opinião de Thiago Guimarães, pesquisador do Instituto de Planejamento de Transportes e Logística de Hamburgo, na Alemanha. Vencedor do prêmio Max Brauer por seu trabalho de análise da dinâmica social do metrô de São Paulo, é um dos grandes especialistas brasileiros em mobilidade urbana.

“Rotinas de planejamento e gestão urbanas no Brasil mal existem. Por isso, até as atividades mais elementares para o funcionamento de uma cidade como a provisão de materiais escolares no início do ano letivo, a limpeza de bueiros e bocas-de-lobo na época das chuvas acabam dependendo de ‘vontade política”’, afirma Thiago.

“Juntem-se umas empreiteiras por aqui, talvez uma indústria automobilística regada a subsídios federais no meio-de-campo, o mercado imobiliário na ponta de área e, se necessário, aliados políticos para tratorar no Legislativo. É nesse contexto que interesses políticos e econômicos – muitas vezes ‘predatórios’ e de curto prazo – que se encontram à margem de uma discussão pública sobre o futuro da cidade caem como uma luva um para o outro”, completa.

Pedi a Thiago um texto para este blog sobre esse tema, que está no centro do debate sobre a dificuldade do Brasil em garantir qualidade de vida nas grandes cidades. Segue.

O modo brasileiro de produzir cidades

Por Thiago Guimarães, pesquisador do Instituto de Planejamento de Transportes e Logística de Hamburgo

Você gosta da rua onde mora? Sente-se à vontade, seguro e confortável nela? É bem iluminada, arborizada? Tem calçada boa? E seu bairro? Oferece tudo o que você precisa no cotidiano? Há uma gentil vizinhança ou cada um vive para si mesmo atrás de grades?

A maior parte da população brasileira vive em cidades, mas está longe de viver bem nelas. Uma parte expressiva não tem acesso a saneamento básico (alô, século 21!), mora em moradias precárias, não tem acesso a serviços públicos de qualidade. Toda vez que reflito sobre essa realidade, sou tomado pela pergunta: Quais são as travas para um eficiente planejamento urbano no Brasil? O que impede que o País ofereça ambientes urbanos onde viver seja digno e talvez até prazeroso? O que está na raiz do problema?

Apagão: risco causado pela falta de planejamento em produção e distribuição de energia
Apagão: risco causado pela falta de planejamento em produção e distribuição de energia

Frequentemente especialistas identificam a causa dos problemas urbanos na falta de (boa) legislação. Esse poderia ser um argumento válido no passado, mas hoje o quadro legal está razoavelmente amadurecido. O Estatuto da Cidade, que logo mais vai completar quinze anos, é fundado no conceito de desenvolvimento urbano sustentável, define instrumentos e reafirma as responsabilidades do poder local. O problema é, muito mais, botar em prática a lei.

Exemplo: a Lei da Mobilidade Urbana definiu o prazo legal de três anos a partir de sua promulgação, em 2012, para que municípios com mais de 20 mil habitantes publiquem planos de mobilidade, em linha com seus planos diretores.

Três anos se passaram e adivinhem o que foi feito? Quase nada.

Em discussão, neste momento, está a extensão do prazo para a elaboração desses planos. Portanto, o próprio poder público continua ignorando, fingindo que não existem ou empurrando com a barriga leis que poderiam fazer a diferença ou, pelo menos, serem o começo dela.

Um vilão bastante citado é a falta de “vontade política”. Parece haver uma cristalina correlação entre o potencial de transformação de uma cidade, de um lado, e a mistura de capacidade visionária e empreendedora da gestão pública, de outro. Exemplos focados em política de mobilidade: Bogotá sob Peñalosa, Nova York com Sadik-Khan ou Curitiba (com Jaime Lerner). No Brasil, faltam líderes com visão, com projeto e com vontade de mudar.

No entanto, a vontade política, necessária para introduzir inovações e romper com padrões estabelecidos, não deveria ser requisito para o cumprimento de leis, a continuidade de planos existentes ou a consecução de rotinas de gestão das políticas urbanas.

Outro aspecto é a carência de recursos humanos qualificados. Esse fator pode ter impactos amplos não só em municípios pequenos, mas também cidades de maior porte e mesmo capitais estaduais. Por falta de gente com capacidade técnica e crítica, muitos municípios adotam a simples e espontânea estratégia de implementar o que os vizinhos fazem.

Copiar e colar. Jogar esgoto a céu aberto, produzir habitação social de baixa qualidade em regiões distantes e com pouca infraestrutura, rasgar a cidade com vias largas para aumentar a fluidez dos automóveis. É só copiar e colar. Existem até planos diretores praticamente xerocados. Desse modo, finge-se que os problemas urbanos são combatidos, enquanto, na verdade, eles são apenas fielmente reproduzidos.

No entanto, alguns problemas urbanos (mobilidade e moradia talvez sejam os mais óbvios) são ainda mais graves em municípios com reconhecidamente boas equipes técnicas. Portanto, a presença de uma equipe qualificada, com competência para conceber e elaborar propostas de intervenção no âmbito local, explica, no máximo, uma parte do problema.

Então qual o xis da questão? O xis da questão foi muito bem ilustrado por um pronunciamento do governador paulista Geraldo Alckmin no mês passado. Alckmin disse que o plano de contigência contra a séria crise hídrica que afeta o estado é um “papelório inútil”.

“Tem que fazer papel, gastar dinheiro para ficar na gaveta”, afirmou o governador, comparando o Brasil depois com um “grande cartório”. Disse isso exatamente ao assinar um contrato com uma instituição chamada Financiadora de Estudos e Projetos.

Alckmin não está sozinho. No “Primeiro Mundo”, também se investe muito dinheiro (e eu arriscaria dizer: proporcionalmente às receitas, muito mais dinheiro que no Brasil) em planos que nunca se concretizarão, que serão deixados de lado.

Em Hamburgo, acompanho há quase dez anos a novela sobre a ligação por transporte coletivo de um bairro “problemático” no norte da cidade. A gestão anterior pretendia reintroduzir o bonde e prometeu a primeira linha para aquela comunidade. Estudos foram feitos, estimou-se custo, compararam-se trajetos. Aí a gestão mudou. O partido que chegou ao poder adotou a bandeira do corredor de ônibus. Queriam implementar um dos mais eficientes sistemas de transporte coletivo sobre pneus do mundo. Agora, é provável que a conexão se dê por trilhos (metrô ou trem metropolitano).

Isso significa que os planos foram inúteis? De forma alguma. Até pelo volume de informações gerados por esses estudos, que, ao final, enriquece o processo decisório e o debate em torno de questões públicas, seria imprudente desmerecer todos esses esforços.

Então, mesmo nos países desenvolvidos (com sólida tradição em planejamento territorial e muitas vezes tidos como referências para as soluções urbanísticas no Brasil) há naturais descompassos, divergências e conflitos entre as arenas da política e do planejamento urbano. O que diferencia o Brasil de outros países é a completa falta de equilíbrio entre essas duas esferas, fazendo com que o planejamento brasileiro seja um discurso completamente descolado da ação coordenada pelo Estado.

Isso para não falar em investimentos mais complexos como o desenho de uma rede de transporte coletivo… Uma vez pedi a profissionais do Metrô que me esclarecessem como funciona o processo de planejamento de uma linha, ou seja, qual a sequência de etapas a ser seguida antes de sua construção. Estou até hoje sem resposta.

Sendo a sistemática do planejamento um mistério e seus resultados raramente respeitados, os próprios espaços de participação da sociedade civil no processo de planejamento (fóruns, conselhos, audiências públicas etc.) são esvaídos de sentido.

Ao mesmo tempo em que a importância do planejamento é incompreendida, espera-se do governante agilidade, capacidade de realização, habilidade para resolver tudo em pouco tempo. Diante disso, para que essas chatices de planos e estudos?

Estudo de impacto ambiental? Perda de tempo! Projeto básico? Bobagem! Plano? Nem morto! Sem essas “chatices”, os administradores públicos se sentem mais livres para fazer, para se jogar em aventuras e realizações com base apenas em subjetivas avaliações de impacto eleitoral.

Juntem-se umas empreiteiras por aqui, talvez uma indústria automobilística regada a subsídios federais no meio-de-campo, o mercado imobiliário na ponta de área e, se necessário, aliados políticos para tratorar no Legislativo. É nesse contexto que interesses políticos e econômicos – muitas vezes “predatórios” e de curto prazo – que se encontram à margem de uma discussão pública sobre o futuro da cidade caem como uma luva um para o outro.

Ao final, o que interessa é o contentamento desses atores. Esta tem sido a mais efetiva e genuína tática brasileira para a produção de cidades. Cidades onde, ao longo de décadas, cada vez mais gente vive mal.

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