A 8ª sessão do Mecanismo dos Especialistas em Direitos Indígenas, do Conselho de Direitos Humanos da ONU, debateu os direitos humanos dos povos indígenas. Documentos lidos por representantes de organizações indígenas no Brasil denunciaram as ofensivas em curso no país em relação aos direitos constitucionais dos índios e pediram ampliação de seu acesso a todas as universidades
Aloisio Cabalzar, ISA
Entre 20 e 24 de julho, aconteceu no Palais des Nations (sede europeia das Nações Unidas), em Genebra, na Suíça, a 8ª sessão do Mecanismo dos Especialistas em Direitos dos Povos Indígenas (EMRIP), instância subsidiária do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Entre os cerca de 400 participantes, além dos representantes oficiais de vários países (incluindo o Brasil, e sobretudo das Américas), estavam representantes das organizações e povos indígenas de todos os continentes, organizações especializadas das Nações Unidas (como a Unesco), ONGs relacionadas aos povos indígenas e direitos humanos e instituições acadêmicas.
A sessão plenária incluiu, além de informes, encaminhamentos de agendas e relatórios, uma discussão sobre a revisão do mandato do Mecanismo visando promover mais eficazmente o respeito à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, seguindo recomendação da Conferência Mundial sobre os Povos Indígenas que aconteceu em setembro de 2014. Houve também uma mesa redonda sobre os direitos humanos dos povos indígenas em relação a empresas, reunindo denúncias sobre situações em várias partes do mundo. Foi discutido um estudo sobre a promoção e proteção dos direitos indígenas com respeito ao patrimônio cultural.
Os representantes brasileiros foram Maximiliano Correa Menezes, tukano do Alto Rio Negro, atual presidente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e ex-diretor da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e Marcondy Maurício de Souza, Omágua/Kambeba do Alto Solimões, estudante da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), representando a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e o CCI (Centro de Culturas Indígenas).
Durante as sessões plenárias, Marcondy leu dois documentos. O primeiro deles cobra ampliação do acesso aos estudantes indígenas a todas as universidades por meio de políticas afirmativas, e meios para prover as condições adequadas para a permanência durante os estudos; o texto também chama a atenção para a necessidade de melhorar a informação e a formação em todos os níveis de escolaridade dos brasileiros sobre os povos indígenas e seus direitos (veja o documento na íntegra). A segunda carta denuncia a pressão, no âmbito dos poderes legislativo e executivo, para a fragilização dos direitos dos povos indígenas no Brasil e a urgência para que os acordos internacionais assinados pelo Brasil sejam cumpridos (leia AQUI).
Além das sessões plenárias, os dois representantes brasileiros se reuniram com a relatora especial (Special Rapporteur on the rights of indigenous peoples), a filipina Victoria Tauli Corpuz, denunciando iniciativas e decisões políticas, administrativas, jurídicas e legislativas tomadas pelo Estado, que buscam flexibilizar a legislação ambiental e indigenista, regredir ou suprimir os direitos indígenas assegurados pelo texto constitucional e os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, principalmente a Convençao 169 da OIT e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Algumas denúncias foram:
– Sobre a continuação da decisão política do Poder Executivo de paralisar os procedimentos de demarcação dessas terras, mesmo que estas estejam sem qualquer impedimento judicial e/ou administrativo para serem declaradas pelo Ministério da Justiça ou homologadas pela Presidência da República. Esta decisão tem gerado para os povos indígenas insegurança jurídica e social, conflitos e violências praticadas pelos invasores dos territórios, implicando em assassinatos e a criminalização de lideranças.
– Medidas políticas e jurídicas baixadas pelo governo que afrontam os direitos territoriais dos povos indígenas, como a Portaria nº 303/2012, da Advocacia Geral da União (AGU), que pretende generalizar para todas as Terras Indígenas as condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando a corte confirmou a homologação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, no Estado de Roraima. A Portaria afronta a Convenção 169 da OIT ao limitar e restringir os direitos de Consulta Livre, Prévia e Informada (Art. 6º), de participação nos planos de investimento ou desenvolvimento das Terras Indígenas e seu entorno (Art. 7º), o direito ao território e aos recursos naturais existentes nas Terras Indígenas (Art. 13º) e o direito de consulta para seu aproveitamento por terceiros (art. 15º).
– Ações do Poder Judiciário, especificamente no STF, onde a preocupação é com as decisões voltadas a anular portarias declaratórias de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, como aconteceu nos casos das terras dos Guarani Kaiowá e Terena, no Mato Grosso do Sul, e Canela-Apãnjekra, no Maranhão. Segundo as decisões, esses povos não teriam direito à terra porque não estavam nela em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Se for confirmada, pelo pleno da Suprema Corte, essa interpretação irá restringir os direitos territoriais de muitos outros povos, aumentando decisões contra procedimentos de demarcação de terras e o clima de conflitos e violências contra os povos indígenas.
– Interesses particulares de pequenos grupos representativos no Parlamento, que insistem na tramitação de propostas que visam a supressão dos direitos territoriais dos povos indígenas, de comunidades tradicionais e de outras populações do campo. Destacam-se entre essas iniciativas a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 215-A/2000, que transfere para o Poder Legislativo a responsabilidade de demarcar as Terras Indígenas, titular as terras dos quilombolas e criar Unidades de Conservação, usurpando uma prerrogativa constitucional do poder executivo. Se for aprovada, a PEC 215 permitirá paralisar o processo de reconhecimento de Terras Indígenas no Brasil e reverter até demarcações já homologadas.
– Projeto de Lei 1.610 /96 da Mineração em Terras Indígenas, que ignora flagrantemente salvaguardas socioambientais e restringe o direito de consulta livre, prévia e informada.
– PEC 237/13 que visa legalizar o arrendamento das Terras Indígenas.
– Projeto de Lei Complementar (PLP) 227/12 que dispõe sobre usufruto de Terras Indígenas por não indígenas e converte interesses privados do agronegócio e de outros poderosos segmentos econômicos em relevante interesse público da União.
– Lei 13.123 /15 do acesso ao patrimônio genético, conhecimentos tradicionais e repartição de benefícios. A Lei resultou da tramitação em caráter de urgência do PL 7735/14 formulado pelo governo e setores empresariais do agronegócio, da indústria farmacêutica e de cosméticos, sem nenhuma participação dos detentores do conhecimento (povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e agricultores familiares).
Tanto Maximiliano Menezes quanto Marcondy de Souza solicitam da Relatora Especial atenção especial para a ofensiva contra os direitos indígenas no Brasil e para a realidade dos conflitos territoriais e da violência sofrida por comunidades e lideranças indígenas e que o Brasil o cumpra com suas responsabilidades constitucionais, respaldadas por tratados internacionais, considerando:
– a retomada do processo constitucional de demarcação das Terras Indígenas;
– a revogação da Portaria n° 303/2012 e demais portarias e decretos que visam restringir os direitos territoriais indígenas;
– a suspensão da tramitação no Congresso Nacional da PEC 215, e de quaisquer outras iniciativas legislativas que se caracterizam pelo descumprimento da Convenção 169 da OIT, na tentativa de suprimir os direitos originários, coletivos e fundamentais dos povos indígenas;
– a aplicação da Convenção 169 da OIT, em todas as questões administrativas ou legislativas que afetem os direitos, interesses e aspirações dos povos indígenas, garantidos pela Constituição Brasileira, pela Convenção 169 da OIT, pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos e pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Segundo as lideranças está na hora de o Brasil reconhecer o importante papel dos povos e territórios indígenas na defesa do território nacional, na preservação do meio ambiente, dos bens naturais, das florestas, dos recursos hídricos, da biodiversidade, do equilíbrio climático, entre outras contribuições.
Foram feitas conversas também com o representante do Itamaraty, Carlos Eduardo da Cunha de Oliveira, onde foram debatidas a atual situação dos povos indígenas do Brasil e algumas experiências na área de educação.
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Imagem: O presidente da Coiab, Maximiliano Menezes e Marcondy de Souza, da Apib|Aloísio Cabalzar-ISA