Mariana Reis*, Asa
Vazanteiros/as, gerazeiros/as, quebradeiras de coco babaçu, quilombolas, indígenas, comunidades de fundo de pasto. Sobrevivendo entre os biomas do cerrado e da caatinga, esses povos tradicionais lutam pelo reconhecimento de seus direitos e pela defesa de seus territórios, enquanto reinventam um jeito de conviver com o Semiárido, em meio às adversidades, que são muitas. Além dos desafios próprios do clima – em muitos casos, com a escassez de acesso à água, devido à irregularidade de chuvas –, essas mulheres e homens precisam enfrentar dia após dia os grandes projetos de agronegócio e hidronegócio, que põem em disputa não só territórios, mas modos de vida.
O acesso à água e à terra, assim, também fazem parte da peleja diária dessas comunidades. Terra para viver, e não apenas para o plantio, pois diferentes usos da terra também fazem parte da diversidade cultural dessas populações: além do espaço para a produção de alimentos, há outras reivindicações do uso da terra. As comunidades de fundo de pasto, por exemplo, compartilham um espaço voltado para a criação de animais de pequeno porte, especialmente caprinos. E é essa forma de viver, de forma coletiva, na contramão da monocultura, que essas comunidades vêm sobrevivendo ao longo das gerações.
Já as mulheres quebradeiras de coco babaçu, distribuídas nos estados do Pará, Piauí, Maranhão e Tocantins, além da agricultura familiar, complementam seus recursos a partir do extrativismo. A luta dessas mulheres, assim, é no sentido de garantir o direito ao acesso aos babaçuais, preservando o meio ambiente e também suas moradias. (Leia aqui entrevista completa com liderança do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu – MIQCB).
Água para beber como conquista – “A relação com a terra, com a pouca água existente e com os recursos naturais de modo geral é baseada no manejo e no cuidado sustentável, ou seja, as comunidades tradicionais têm com a natureza uma relação harmoniosa e não de degradação que leva ao esgotamento, como os grandes empreendimentos econômicos”, afirma Leninha Alves de Souza, da coordenação executiva da ASA pelo Estado de Minas Gerais. Para ela, o olhar além das estatísticas oficiais, atento às pessoas e à região, revela como as comunidades tradicionais enfrentam os desafios resultantes dos fracassos das políticas de desenvolvimento nos últimos 50 anos, principalmente com a política de combate à seca.
Nas comunidades quilombolas e indígenas do Semiárido acompanhadas pelas organizações que compõem a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), de 2010 até hoje, já foram implementadas 3.668 tecnologias sociais de captação de água para consumo humano, sendo, desse número, 3.606 cisternas de primeira água e 62 cisternas escolares.
Já as comunidades de fundo de pasto do Semiárido baiano acessam a água através das tecnologias sociais de captação e armazenamento de água da chuva, tanto para consumo humano, através do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), como para a produção, por meio do Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2). Outra fonte de água para o consumo humano são os poços e cacimbas. Em alguns municípios, a exemplo de Pilão Arcado e Campo Alegre de Lourdes, ainda existem comunidades que não possuem tecnologias apropriadas, prevalecendo ainda o acesso ao carro-pipa como fonte de água para diversos fins. O desafio para a ASA, nesses casos, é a busca pela universalização da primeira água, a partir da construção das cisternas de 16 mil litros.
Maria Aparecida Machado da Silva, quilombola, liderança comunitária e diretora do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município de Chapada do Norte, em Minas Gerais, conta que uma das maiores dificuldades na sua região é o acesso à água. “A água não é de qualidade. O esgoto é jogado no rio. Muitas pessoas adoecem com viroses. A água da torneira é escura. Além disso, o rio só tem bastante água nos períodos de chuva: na seca, ficam só as poças. Córregos e nascentes secaram e as comunidades mais afastadas são as que mais sofrem”, descreve a liderança.
Aparecida ainda relata que o problema de acesso à água na localidade é ainda maior nas comunidades quilombolas. “Com as cisternas de 16 mil litros do programa da ASA melhorou um pouco mais, as famílias usam menos a água do poço, que não é de qualidade. Mas precisamos conversar com mais famílias para garantir essa conquista”, revela.
“Uma das características fortes das comunidades do Semiárido é a solidariedade e reciprocidade existente entre as famílias. Por toda a vida estas famílias desenvolveram e vem desenvolvendo estratégias de sobrevivência marcadas fortemente pela pouca água existente nos territórios”, explica Leninha.
A necessidade da cooperação também é trazida na fala de Aparecida: “A gente ainda não conhecia o histórico de muitas dessas comunidades, estamos conhecendo agora, a partir dos programas da ASA, das parcerias. Vamos conhecendo, nos aproximando, e a comunidade necessita disso porque muitas vezes o recurso e a assistência chegam ao município, mas não às comunidades. E os programas, quando chegam, valorizam nossos processos, buscam a integração com a comunidade, não trazem apenas a tecnologia em si”, enfatiza.
Resistência a favor da vida – O reconhecimento enquanto comunidade é outra bandeira de luta desses povos tradicionais. De acordo com o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), organização que compõe a rede Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e que trabalha com comunidades de fundo de pasto nos territórios do Sertão do São Francisco e de Itaparica (BA), a certificação significa que o Estado reconhece o jeito e o modo próprio de viver dos povos tradicionais. Em relação às comunidades de fundo de pasto, a certificação é o primeiro passo para a regularização fundiária das áreas coletivas, anseio destas comunidades tradicionais que lutam pela garantia de permanência na terra e garantia do acesso a políticas públicas específicas para suas necessidades.
Para as comunidades de fundo de pasto, a certificação é o primeiro passo para a regularização fundiária das áreas coletivas. Na Bahia, segundo o IRPAA, são 188 comunidades certificadas. De acordo com a Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA), no total, existem 447 comunidades tradicionais de fundo de pasto, mas a estimativa da Articulação Estadual de Fundo de Pasto junto com as entidades de apoio é de que existam aproximadamente mil comunidades com características de Fundo e Fecho de Pasto.
Chapada do Norte (MG) conta com 75% de população quilombola, mas por causa da falta do reconhecimento oficial das comunidades, esse dado não é mensurado. “Temos a cultura muito forte, temos a Festa de Nossa Senhora do Rosário, mas as comunidades são agredidas com a desvalorização, com o preconceito comunitário”, relata Aparecida.
Para essas comunidades, as manifestações culturais e a religiosidade popular são formas de proteger uma identidade coletiva e de resistir aos impactos e efeitos de grandes projetos de desenvolvimento. É o que destaca Leninha. “Os conflitos socioambientais, principalmente os que têm a água como elemento de disputa, ameaçam a sobrevivência destas comunidades. Batuques de tambores, danças e rodas coletivas de manifestações culturais ecoam pelo Semiárido como forma de emanar uma resistência a favor da vida”, reconhece.
*Com a colaboração de Cristiana Cavalcanti, assessora técnica do Programa Cisternas nas Escolas
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Imagem: Acesso à água em comunidade quilombola em Minas Gerais | Foto: Leo Drummond/Nitro Imagens/Arquivo Asacom