Belo Monte está potencializando um rastro de sangue e violência. Os burocratas do setor energético continuam ignorando estudos de planejamento
Por Najar Tubino, em Carta Maior
A visita de dois dias, depois de quatro anos do início da obra, de representantes das Defensorias Públicas federal e estadual, do IBAMA, do Instituto Chico Mendes, do Procurador Federal dos Direitos do Cidadão e antropólogos da USP, UNICAMP e a Universidade Federal do Pará constatou o óbvio:
“- Os direitos constitucionais das populações tradicionais do Xingu estão sendo frontalmente violados pela empresa e é necessário readequar as remoções para que cumpram o licenciamento e o projeto básico ambiental de Belo Monte, assegurando os direitos dos ribeirinhos”. A comitiva, posteriormente, elaborou uma lista com 55 constatações de irregularidades na visita que realizaram em 15 ilhas e beiradões, no início de junho desse ano. A defensora pública do Pará, Andreia Barreto, resume a questão:
“- Os mesmos problemas se repetem desde o início das remoções onde averiguamos que há falta de informações para as famílias, analfabetos assinando documentos em branco, ruptura de relações familiares e perda de territórios”.
Belo Monte, na concepção do governo federal, deveria ser um exemplo de negociação e respeito com os povos atingidos, no caso, ribeirinhos e indígenas – são 25 mil residentes na região. O Dossiê elaborado pelo Instituto Socioambiental e com a participação de várias pessoas que lidam diretamente com a construção da hidrelétrica, aponta para uma realidade que desmente a projeção. Ao invés de respeito, a violação dos direitos dos povos atingidos. No caso dos araras, uma tribo que tragicamente está no caminho do capitalismo brasileiro, desde a construção da rodovia Transamazônica na década de 1970, quando o trajeto da BR-230 cortou as suas aldeias e os militares continuaram a obra, como se eles não existissem. Inclusive, transmitindo a versão de que não havia índios naquela região.
Uma fila de 13 mil caminhões
Agora a Terra Indígena Cachoeira Seca está degradada, os cálculos dos pesquisadores revelam uma retirada de 200 mil metros cúbicos de madeira – uma fila de 13 mil caminhões -, as invasões são constantes e o ISA considera a situação como fora de controle. Para piorar dois ramais da Transamazônica estão a 30 km da aldeia Cachoeira Seca. As terras dos Jurunas, que deveriam ser transferidos da sua área, não foram adquiridas. Os planos de compensação começaram atrasados, no caso indígena, três anos depois do início da construção. Para resolver a situação criaram um plano de emergência, que repassou durante dois anos R$30 mil por aldeia e mais compras de bens materiais – 578 motores de barcos, 322 barcos voadeiras, 2,1 milhões de litros de gasolina e muitas caixas de refrigerantes e televisões de plasma. O resultado foi o seguinte:
“- A taxa de mortalidade infantil indígena em Altamira é quatro vezes superior à média nacional. Os atendimentos a indígenas na mesma cidade aumentaram dois mil por cento. Um relatório recente da FUNAI sobre vistorias realizadas analisando a segurança alimentar e o desenvolvimento de projetos produtivos definiu como um fracasso o projeto e recomendou a aquisição de cestas básicas, diante da vulnerabilidade alimentar das comunidades indígenas”.
População da região de 600 mil pessoas em 2030
O fato é que aumentaram as queimadas – de 60 para 503 o número de focos, no caso da Terra Indígena Apyterewa que tinha 1.278 posseiros no seu interior, sendo uma parte retirada – 369 reassentados pelo INCRA -, porém o processo parou e as famílias estão voltando, e outras contestam a transferência na justiça. A Terra do Meio, assim designada porque fica entre os rios Xingu e Iriri, já é um caldeirão de violações generalizadas, dominada por grileiros, madeireiros e pecuaristas. Belo Monte está potencializando este rastro de sangue e violência. Uma das consultorias contratadas para estabelecer planos socioambientais na região, considerando uma área abrangida por 11 municípios com mais de 360 mil habitantes prevê que dentro de 15 anos a população será de 600 mil habitantes.
Na realidade a questão é complexa. O Banco Mundial considera que 12% dos custos de uma hidrelétrica no Brasil estão nas compensações dos impactos socioambientais. Em Belo Monte, a Norte Energia se comprometeu a executar mais de 100 programas de compensação específicos em todas as áreas. Na questão indígena, são 31 condicionantes. Depois da licença de instalação, a empresa começou a contestar algumas ações principalmente em relação à regularização de terras indígenas e das unidades de conservação, que cercam a região, incluindo várias reservas extrativistas. Faz parte da tática para empurrar o problema para o futuro, e não resolvê-los. Um parte da verba destinada à recuperação ambiental de R$126 milhões foi usada pelo ICMBio fora da bacia do rio Xingu, apenas 18,6% foram aplicadas nas unidades de conservação atingidas, segundo o Dossiê do ISA.
Não houve resposta do BNDES
Só para lembrar: as áreas indígenas não serão inundadas pelo lago de Belo Monte, mas a vazão será reduzida em 80% entre as aldeias Volta Grande do Xingu e Paquiçamba. Ou seja, o rio deverá secar na época da estiagem amazônica. O BNDES, que é o banco financiador da hidrelétrica, também é responsável pela fiscalização do cumprimento das chamadas condicionantes. O Dossiê do ISA é claro a este respeito:
“- Sendo um banco público de desenvolvimento, a instituição deveria ser a primeira interessada na promoção de processos inovadores de controle social, que fortalecessem as comunidades locais atingidas pelos empreendimentos por ele financiados.”
O BNDES contratou uma auditoria independente para averiguar o cumprimento das condicionantes socioambientais. O Instituto Socioambiental entrou com pedido de informações com base na Lei de Acesso à Informação, que obriga as instituições públicas a responder aos questionamentos. Não houve resposta, inclusive recorreram a CGU para validar o pedido. Receberam um resumo de algumas averiguações.
“- A atual política de responsabilidade socioambiental do BNDES não foi capaz de identificar e equacionar adequadamente os riscos socioambientais de Belo Monte, nem durante sua fase de análise prévia, nem ao longo de sua execução e de acompanhamento do financiamento”, conclui o relatório do ISA.
Quem vai pagar a ligação na rede de esgoto?
Uma questão prática e fundamental. Quem vai pagar pela ligação da rede de coleta e esgoto implantada pela Norte Energia e quem vai operar a Estação de Tratamento? O engenheiro sanitarista da prefeitura de Altamira, Raimundo Nonato Monteiro, disse em entrevista publicada no Dossiê Belo Monte o seguinte:
“- Para se construir um sistema desses tem que comprar no mínimo três canos de 100 metros, duas caixas coletoras, mandar esgotar e entupir a fossa, para depois ligar o ramal. Isso além de ter que adaptar o banheiro, comprar caixa de gordura, mais os custos da construção e outros equipamentos. Aqui em Altamira pode custar até R$3 mil”.
Esse é o custo que a população de Altamira terá que pagar para fazer a ligação da residência com a rede coletora. A Estação de Tratamento, com 13 elevatórias e 10 caixas d’água, necessita entre 20 e 25 pessoas, mais um custo de manutenção mensal entre R$200 e 500 mil, segundo o engenheiro Raimundo Monteiro. Ninguém sabe quem pagará esta conta. E a Norte Energia está contando os dias para receber a Licença de Operação e a população corre o risco de ter todo o esgoto jogado dentro do reservatório de 516 km da hidrelétrica.
A região ficará com 30% da mão de obra contratada
A construção de Belo Monte revela a problemática de construir uma obra desse porte no interior de um dos componentes principais do sistema climático mundial, que é a Amazônia. Numa época de democracia formal, que ainda vale mais para o sul e sudeste, do que para o Norte e Nordeste. Um contingente da Força Nacional está em Belo Monte desde 2011. O Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB) que atua na região está com um interdito jurídico, que proíbe qualquer tipo de manifestação contra a Norte Energia, com pena de pagar multa diária de R$50 mil. Uma decisão judicial, que envolve inclusive o monitoramento das atividades do movimento e de suas lideranças.
A projeção dos acontecimentos para os próximos anos é pior ainda, considerando que as próprias análises dos impactos socioambientais consideram que 30% da mão de obra empregada na obra permanecerão na região. Muitos comprarão terras em loteamentos rurais dentro das terras indígenas ou nas unidades de conservação. O aumento da população aumenta o consumo de madeira, de peixes, de alimentos em geral e isso impacta a floresta e seus habitantes de forma trágica. Pior: o planejamento que envolve a construção de hidrelétricas na Amazônia foi feito durante a ditadura – o primeiro estudo de Belo Monte, na época Kararaô, foi realizado pela CENEC, a consultoria da Camargo Correa, que é uma das construtoras de Belo Monte, juntamente com Odebrecht, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, e outras, enfim, a nata do setor no Brasil.
Em 2008, a COPPE fez um estudo sobre mudanças climáticas e a segurança energética no país. O estudo aponta para uma redução de 30% na vazão dos principais rios como São Francisco, Parnaíba e também da Amazônia. Os burocratas do setor energético, formados pela ditadura militar, continuam ignorando estes estudos no planejamento, embora o Brasil vá para o segundo ano com as térmicas, movidas a carvão e a óleo diesel, ligadas como segurança do sistema nacional de operação do setor elétrico.
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Destaque: Crianças em Altamira (Foto: Anderson Barbosa / Fotoarena).