Por José Luís Fiori, em Outras Palavras
“Assumo a responsabilidade de assinar
um texto no qual eu não acredito,
mas que sou obrigado a implementar.
A dura verdade é que nos foi imposto
um caminho de mão única”
Alexis Tsipras, citado por “O Globo”, 17/07/2015
É muito difícil identificar causas e estabelecer culpas, quando se está falando de processos históricos de enorme complexidade, como é o caso do acelerado esgotamento do projeto de unificação europeu. A atual crise grega representa apenas um ponto numa trajetória de erosão e de declínio que começou faz tempo, talvez no momento mesmo da unificação alemã, ou na hora em que o projeto se expandiu de forma irresponsável, incluindo 28 países totalmente diferentes e desiguais. Sem falar na importância decisiva que teve a criação da moeda única – o Euro – sem o respaldo de uma autoridade fiscal unificada e soberana. Mas agora esta história já é passado, e o projeto concebido pela geração de Schuman, De Gasperi, Adenauer e Delors, já acabou. E o mesmo se pode dizer da sua nova versão desenhada por Helmut Kohl e François Mitterand, na década de 80.
A importância econômica e demográfica da Grécia é pequena, dentro da EU, o PIB grego não chega a 2% do PIB europeu, mas o tamanho da humilhação grega transcende os números econômicos e a simbologia democrática, e já se transformou num aviso e numa advertência, sobretudo para as demais potências europeias. Em julho de 2015, a inflexibilidade e o mandonismo alemão enterraram definitivamente a utopia da solidariedade cidadã, e da responsabilidade compartida, que alimentou a primeira geração dos europeístas; e a “Europa social” foi completamente derrotada pela “Europa dos mercadores”, de que falava François Mitterand. O ressentimento grego ficará reprimido à espera da vingança, mas a desconfiança mútua, entre a França e Alemanha, deve aumentar tanto quanto o euroceticismo inglês. E para o resto da humanidade, fica a notícia da morte da última grande utopia do século XX: a do fim dos “egoísmos nacionais“ europeus.
Em termos imediatos, o novo plano de austeridade imposto aos gregos repete quase todas as cláusulas fracassadas dos dois planos anteriores, aprovados em 2010 e 2012. Mas ao mesmo tempo, inclui uma nova cláusula extremamente importante, criando um fundo gerido pelos credores, para administrar os 50 bilhões de euros obtidos com a venda de ativos nacionais gregos. Uma cláusula que relembra a história do século XIX, e introduz um fantasma assustador no horizonte europeu do século XXI.
Resumindo o conto: em meados do século XIX, existiam duas grandes posições dentro da elite europeia (e, em particular, da elite inglesa) com relação à melhor forma de relacionar-se com o “resto do mundo”. De um lado, alinhavam-se os seguidores de Adam Smith e do Lord Shelbourne, que consideravam que a simples superioridade econômica inglesa — acentuada pela Revolução Industrial – seria capaz de garantir seus interesses e vantagens em todo o mundo, sem ser necessário recorrer às conquistas territoriais e coloniais. Do outro lado alinhavam-se os partidários de Disraeli, Palmerston, Cecil Rhodes, entre outros que defendiam a necessidade da expansão territorial, da conquista colonial, e da civilização dos povos não europeus.
A posição de Smith predominou na primeira metade do século XIX, mas a de Disraeli e Rodhes se impôs de forma avassaladora, a partir de 1850. Nesta mudança de rumo, entretanto, o importante é que a passagem de uma estratégia para a outra se deu sem maiores traumas dentro da elite europeia, pelo caminho “natural” do mercado, sem grandes “conspirações imperiais”. O processo se repetiu muitas vezes e é fácil de ser sintetizado, porque tudo sempre começava pela assinatura de algum “tratado comercial” entre europeus e não europeus, envolvendo a abertura das fronteiras econômicas dos “não europeus”, em troca da compra dos seus bens primários, e do seu acesso fácil ao endividamento junto à banca inglesa e francesa. Uma “troca” que funcionava nos períodos de expansão, mas entrava em crise nos períodos de recessão internacional, quando os países endividados eram obrigados a fazer “ajustes fiscais” sucessivos, que agravavam os problemas e obrigavam uma renegociação permanente da dívida, até o momentos em que países e bancos credores impunham a criação de “comitês de administração” que assumiam a tutela fiscal e financeira dos endividados. Assim mesmo, quando a situação econômica piorava, os europeus se sentiam com o direito de invadir o território e submeter os endividados à sua dominação colonial. Como foi o caso paradigmático do Egito, onde a crise econômica da década de 1870 encerrou um ciclo de euforia modernizante, levando à renuncia do Quediva Ismael Paxá, em 1879, seguida da declaração da moratória, em 1880, da formação do Comitê de Administração (externa) da Dívida, em 1881, e da invasão inglesa e submissão do Egito à condição de colônia, e depois, de protetorado britânico, entre 1882 1952 .
É uma tolice fazer comparações macroeconômicas apressadas, ou supor que a história se repete mecanicamente. Mas é importante não fechar os olhos, porque o novo plano de austeridade grego não vai resolver o problema financeiro da Grécia, e a Grécia não vai pagar sua dívida, nos termos atuais. Neste caso, qual será o próximo passo da Europa e da Alemanha, em particular ? Além disto, é também importante que os “não-europeus” aprendam com a história, porque as políticas de austeridade só funcionaram em casos excepcionais, dos países que contaram com desafios ou fatores externos favoráveis, e com um poder político coeso e enorme capacidade de mobilização ideológica e social dos seus povos. Fora disto, as políticas de austeridade tenderam a agravar a situação que queriam corrigir, e se transformaram – na prática – num instrumento de submissão crescente dos países fragilizados, aos desígnios geopolíticos e geoeconômicos das grandes potências e suas corporações privadas, que operam e se expandem em conjunto.