Dom Erwin Kräutler: “O caos estava programado de antemão”

Por Alan Azevedo, Revista Greenpeace, no Cimi

138 índios assassinados (sem contar as tentativas de homicídio), 135 suicídios, 785 crianças indígenas mortas, 118 casos de morosidade na regularização de terras e 84 invasões possessórias. Isso apenas em 2014, segundo o relatório Violência contra os povos indígenas do Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Presidente do CIMI, Dom Erwin Kräutler é bispo do Xingu há 50 anos e um dos maiores opositores da construção da usina de Belo Monte, e por isso conta com autoridade e experiência para explicar o grau de intolerância da sociedade em relação aos indígenas, que sofrem incessantes ataques aos seus direitos desde a chegada do homem branco ao dito “Novo Mundo”. Para ele, essa problemática está engendrada em nossa cultura: “grande parte do material didático das escolas deve ser revisado. A verdadeira história do Brasil precisa ser contada não do ponto de vista dos que ‘descobriram’, mas do ponto de vista das vítimas que são, em primeiro lugar, os povos indígenas”.

O religioso austríaco naturalizado brasileiro foi consultado pelo Papa Francisco para a formulação de sua Encíclica “Laudato Si” e critica o processo de desenvolvimento brasileiro na mesma linha que o Papa alerta para as consequências do capitalismo desenfreado: “optar por um crescimento que deteriora cada vez mais o meio ambiente é cortar o galho em que estamos sentados”. E chama atenção para a demarcação de áreas indígenas como “uma forma de salvaguardar parte da Amazônia contra a fúria do agronegócio, das empresas mineradoras e hidrelétricas”.

A seguir, em entrevista exclusiva para o Greenpeace Brasil, Dom Erwin Kräutler fala sobre a violência, a mortalidade, o preconceito e a indiferença que ainda permeiam as relações com as comunidades indígenas.

O Relatório do Cimi sobre Violência Contra os Povos Indígenas, lançado semana passada, registrou uma escalada na taxa de violações contra esses povos, com crescimento de 42% no número de assassinatos. No texto de abertura do relatório, o senhor pede misericórdia aos indígenas que “encontram-se hoje feridos entre o Chuí e o Oiapoque”. A que você atribui este aumento?

Há vários motivos para a escalação da violência. O primeiro está ligado à não-demarcação das áreas indígenas. O governo é refém do agronegócio e a bancada ruralista é contra demarcações previstas na constituição. A PEC 215 quer tirar do Executivo a prerrogativa de demarcar áreas indígenas e fazer depender qualquer demarcação de uma votação no Congresso. Isso equivale a dizer que não haverá mais demarcação, porque a bancada ruralista, cujo número de assentos no Congresso aumentou, não vai votar a favor de área indígena. Percebe-se, em segundo lugar, um ressurgimento de antipatia e aversão aos indígenas. Mesmo que eles estejam amparados pela Constituição em seus direitos a “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam” (Art. 231), continua arraigada no coração de muitas pessoas a ideia de que índio “não é gente”, é “bicho do mato”, é “bugre”, é “caboclo”, é inferior, pária, segregado.

Não se admite que os indígenas tenham direito às suas terras ancestrais já que não as exploram para o mercado e a exportação. Numa sociedade orientada pelos ditames neoliberais de investir e lucrar, os indígenas são considerados obstáculos para o desenvolvimento. Lula declarou isso em 2006, em um banquete oferecido pelo então governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, quando o então presidente identificou índios, quilombolas, ambientalistas e até o Ministério Público como “entraves” para o progresso.

Entre os dados do relatório, talvez o mais impressionante seja a taxa de mortalidade de crianças entre 0 e 5 anos, que é de 785 mortes em 2014. Em Altamira, município atingido pelas obras da hidrelétrica de Belo Monte, a taxa de mortalidade na infância chegou a 141 a cada mil crianças, número dez vezes maior que a taxa nacional. O que causa estas mortes no Brasil? E em Altamira, Belo Monte contribui com esse quadro?

Há várias causas para este descalabro que envergonha o país, mas vejo um relacionamento entre a mortalidade de crianças e os grandes projetos governamentais que parecem ser algo sacrossanto, decidido nos altos escalões do governo sem levar em conta quem vive na área. A decisão e as deliberações sobre a execução do projeto são tomadas em lugar “asséptico”, como se o povo não existisse e muito menos o meio-ambiente, que é a casa em que esse povo vive. A decisão é indiscutível e irrefutável, pois o projeto é considerado de “interesse nacional”. Uma vez decidido o projeto, encaminha-se o EIA-RIMA.

De acordo com a Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), o primeiro item analisado em impactos ambientais é “a saúde, a segurança e o bem-estar da população“. Mas este ponto é o mais negligenciado, haja vista a situação caótica de Altamira. Já contando com o afluxo de milhares de pessoas, em vez de providenciar uma infraestrutura hospitalar e de assistência médica, deu-se luz verde à construção, relegando as condicionantes exigidas pelo Ibama ou pela Funai a segundo plano. No caso de crianças indígenas, a realidade é mais vergonhosa.

Em muitas aldeias, faltam medicamentos elementares. Com todos os avanços de tratamento de saúde no mundo, aqui morre criança acometida por diarreia e vômito e outras causas facilmente tratáveis. Quem não se revolta com um orçamento muito aquém do necessário para a saúde e bem-estar precários da maioria dos brasileiros? Quem não fica indignado quando percebe o abismo entre os que tem condições de se tratar nos melhores hospitais e o povo madrugando em fila para marcar consulta ou aguardando atendimento, deitado no chão de um corredor de posto de saúde ou hospital superlotados?

Além da violência física, o preconceito e a indiferença são marcantes na sociedade brasileira. Muitas pessoas se manifestam contra os indígenas em nossas redes sociais, culpando-os pelos danos florestais, dizendo que não pagam impostos, trancam estradas, obstruem o desenvolvimento etc. Muitas vezes, o que reforça esse preconceito é o acesso de índios a serviços básicos como telefonia e internet. Até quando vestem calças e camisetas viram alvo de crítica, como se deixassem de ser índios. Por que o senhor acha que existe tanta hostilidade em relação aos indígenas e como romper com isso?

Grande parte da sociedade brasileira ainda não entranhou os parâmetros da Constituição de 1988, que consagra os direitos dos povos indígenas. Continuam em voga padrões ultrapassados de constituições anteriores que defendiam a tese da “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”. É isso que os anti-indígenas de norte a sul querem: aplicar os parâmetros das antigas constituições. O índio tem que se tornar brasileiro “comum“, tem que abdicar à sua identidade de pertencer a esse ou aquele povo. A atitude de muitos anti-indígenas não deixa de ser esquizofrênica: por um lado, índio tem que deixar de ser índio, tem que sair da aldeia, tem que largar sua maneira de ser, seus cocares e pinturas corporais para ser um brasileiro igual a todos. Mas, por outro lado, se o índio veste calça jeans e camiseta estampada, usa telefone celular e fala bem português, aí os defensores de brasilidade idêntica para todos começam a gritar que ele não é mais índio. Preconceito gera intolerância e hostilidade. É puro racismo! E racismo é crime. O preconceito começa cedo. Grande parte do material didático de nossas escolas tem que ser revisado.

A verdadeira história do Brasil precisa ser contada não do ponto de vista dos conquistadores, dos que “descobriram” e dominaram a Terra de Santa Cruz, mas do ponto de vista das vítimas que são, em primeiro lugar, os povos indígenas e depois os negros trazidos como escravos. “O Brasil não tem ideia da riqueza humana e cultural que se perde ao insistir em uma política que não se cansa de tentar transformar índios em pobres, ‘integrados’ às levas de marginalizados que ocupam as periferias das grandes cidades” escreveram Maria Rita Kehl e Daniel Pierri no Dia do Índio, em 2015, na Folha de S. Paulo.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, prevê a consulta e a participação dos povos tradicionais na produção de leis e políticas que interferem em suas vidas. Qual a importância desse mecanismo na defesa dos direitos indígenas? A Convenção tem sido respeitada nos casos de grandes obras de infraestrutura, como as hidrelétricas planejadas para a Amazônia, a exemplo de Belo Monte e Tapajós, próxima tragédia em iminência na região?

No caso de Belo Monte, não houve consulta nem participação dos indígenas. Houve um faz-de-conta de consulta. Representantes do governo foram a diversas aldeias para explanar aos índios o que iria acontecer, querendo convencê-los de que a hidrelétrica só traria vantagens. A fim de dobrar os índios, apresentaram mapas e deitaram falação em forma de monólogos muitas vezes incompreensíveis. Os índios não tiveram oportunidade de expor seu ponto de vista. Em diversos casos, a barreira linguística impediu desde o início uma oitiva de verdade. O pessoal enviado a determinada aldeia não falou o idioma indígena e não se deu ao luxo de deixar acompanhar-se por intérpretes fidedignos. Realidade é que nenhum dos povos atingidos teve oportunidade de se manifestar. A iniciativa nada mais foi do que camuflar de “oitiva” uma mera explanação sobre a planejada hidrelétrica.

O desembargador Souza Prudente alertou, em agosto de 2012, que a consulta teria que ser prévia e não podia ser “póstuma”, mas na realidade a consulta nem sequer foi póstuma. Do ponto de vista da legislação vigente, ela é ilegal pois fere os parâmetros da Constituição da República Federativa do Brasil e da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Uma notícia alvissareira neste contexto pode ser a decisão tomada pela Justiça Federal de Itaituba e pelo Ministério Público Federal que proibiram o licenciamento da Usina São Luiz do Tapajós enquanto não for realizada “a consulta prévia, livre e informada sobre o assunto“. Antes de qualquer licenciamento, tanto os povos indígenas como os ribeirinhos terão que ser ouvidos. O Ministério Público Federal solicitou ainda à Justiça que determine levantamentos mais amplos sobre os impactos ambientais na região. Faço votos de que nenhuma instância superior venha agora derrubar esta sentença, alegando “interesse nacional“.

Entre diversos ataques do Congresso aos direitos indígenas, em junho foi reinstalada uma Comissão Especial para analisar e aprovar o PL 1610, que trata sobre mineração em territórios indígenas. Segundo o deputado Índio da Costa, presidente dessa Comissão, os índios não perderiam nenhum direito, apenas teriam mais um: o de escolher se aceitariam ou não a mineração em suas terras. Se aprovada a lei, com base no histórico brasileiro neste tipo de processo de consulta, o senhor acha possível que povos contrários impeçam a mineração em suas terras?

A mineração em terras indígenas é uma verdadeira espada de dois gumes. Se os índios não “cederem”, parece-me fácil prevalecer a tese das mineradoras que a pesquisa e lavra de minerais nobres como ouro, diamante e nióbio (usado em usinas nucleares) são de “interesse nacional” e de fundamental importância para o país. O lobby das mineradoras no Congresso Nacional é grande, e é difícil acreditar que algum povo indígena levará vantagem contra as mineradoras. Se os indígenas concordarem com a pesquisa e lavra de minérios em suas terras, é um tiro no próprio pé, pois assinala o fim de sua existência como povo. Serão vítimas do que chamo de “auricídio”: o ouro ou outro minério mata suas relações comunitárias e os fará sucumbir a um consumismo letal. A presença de não-indígenas fará estímulos não-indígenas se sobreporem a seus costumes e tradições. Nenhum povo indígena sai ileso da mineração em seu território. Não esqueçamos também o risco de contaminação dos rios e do meio-ambiente em que a mineração implica. A extração de ouro industrial exige a retirada de toneladas de terra e rocha.

Para cada tonelada, um grama de ouro será retirado. O problema é que o processo vai expor o arsênio contido na rocha, que, em caso de vazamento para o rio, pode ter consequências mortais para as comunidades indígenas que vivem das águas do Xingu. Para o mesmo um grama de ouro, são liberados até sete quilos de arsênio, “que é altamente tóxico“. Essa advertência divulgada no site do MPF/PA dispensa qualquer comentário.

Alguns criticam a encíclica do Papa Francisco, que teve o auxílio do senhor em sua formulação, por conter um discurso anticapitalista, uma vez que ele nos convida a rever alguns hábitos da nossa cultura, como o consumismo exagerado. Muitos opõem conservação ambiental com o crescimento do país, como se fosse possível apenas uma coisa ou outra. A seu ver, essa dicotomia é real? 

Ao ler as raras críticas à Encíclica “Laudato Si” do Papa Francisco, logo me dei conta de que seus autores ou não leram o documento ou o leram superficialmente ou o leram movidos por preconceitos. Dou como exemplo o recado dado ao Papa pelo candidato republicano à presidência dos Estados Unidos, Jeff Bush. Sem o acanhamento, sentencia que o papa teria feito melhor se deixasse “assuntos de ciência aos cientistas”. Com o comentário, revela que não entendeu nada, pois a encíclica não tem a pretensão de ser um tratado científico. Na realidade, alguns políticos conservadores e empresários consideram o Papa “liberal demais”, por sua abertura a questões sociais e sua crítica a um capitalismo selvagem, gerador de miséria e exclusão social. A encíclica não se restringe aos católicos, pois a questão do meio-ambiente ultrapassa qualquer fronteira confessional.

Trata da sobrevivência da humanidade. É absurdo colocar o crescimento do país em oposição aos cuidados que o meio-ambiente exige. Optar por um crescimento que deteriora o meio-ambiente é cortar o galho em que estamos sentados. O Papa lança “um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós“ (LS 14). Lamenta que “a terra, nossa casa, parece se transformar num imenso depósito de lixo“ (LS 21). Insiste que “a humanidade é chamada a tomar consciência da necessidade de mudanças de estilos de vida, de produção e de consumo, para combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou acentuam“ (LS 23). E dá seu recado em vista da Conferência Mundial do Clima em Paris dizendo: “A submissão da política à tecnologia e à finança se demonstra na falência das cúpulas mundiais sobre o meio ambiente. Há demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum e manipular a informação para não ver afetados os seus projetos“ (LS 54).

Quem de nós que nos engajamos na Amazônia e lutamos contra a exploração inescrupulosa desse macro-bioma e em defesa dos povos que habitam esta terra não se sente apoiado quando lê as palavras do Papa? “É louvável a tarefa de organismos internacionais e organizações da sociedade civil que sensibilizam as populações e colaboram de forma crítica, inclusive utilizando legítimos mecanismos de pressão, para que cada governo cumpra o dever próprio e não-delegável de preservar o meio ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios interesses locais ou internacionais“ (LS 38).

Quanto aos povos indígenas o Papa Francisco enfatiza: “É indispensável prestar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais. Não são apenas uma minoria entre outras, mas devem tornar-se os principais interlocutores, especialmente quando se avança com grandes projetos que afetam os seus espaços. Com efeito, para eles, a terra não é um bem econômico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são objeto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem livres para projetos extrativos e agropecuários que não prestam atenção à degradação da natureza e da cultura“ (LS 146).

Para finalizar, é sabido por meio de diversos estudos que as terras indígenas são uma das formas mais efetivas de prevenção do desmatamento, que é um dos grandes responsáveis pelas emissões de gases efeito estufa na atmosfera. No entanto, o ano de 2014 foi marcado pela morosidade do Poder Executivo em assinar e homologar terras indígenas já demarcadas e sem nenhum impedimento legal. O senhor acredita que um dos caminhos para o Brasil se firmar líder no combate às mudanças climáticas seria ampliar o número de territórios indígenas?

A demarcação das terras, além de ser um direito constitucional dos povos indígenas e a garantia de sua sobrevivência física e cultural, contribui também para salvar pelo menos parte da Amazônia. A história recente da região Alto Xingu da Prelazia do Xingu, no Pará, ilustra a tese de que a demarcação de áreas indígenas tem imensa importância para o conjunto da Amazônia. São Félix do Xingu emancipou-se de Altamira em 29 de dezembro de 1961.

Estive pela primeira vez nesse município em 1967. Sobrevoando naquele tempo a região, só se via selva e água e as minúsculas clareiras da sede do município e das aldeias indígenas do povo Kayapó. Jamais esqueço o impacto deste mundo de todas as nuances e tonalidades de verde do qual emergiram os ipês em flor, lilás ou dourados. Em menos de meio século, quase nada restou da paisagem deslumbrante. O paraíso foi arrasado, a biodiversidade em grande parte destruída e a terra desnudada.

Hoje, sobrevoando a região, pode-se ver onde terminam as áreas indígenas demarcadas e começa a melancólica vastidão das áreas desmatadas. O que sobrou de vegetação originária são apenas as áreas indígenas demarcadas. Esses dados demonstram por si que a demarcação de áreas indígenas junto aos parques nacionais – que representam pouco mais de um milhão de quilômetros quadrados ou 26% da Amazônia Brasileira – é uma forma de salvaguardar parte da Amazônia contra a fúria do agronegócio, das empresas mineradoras e hidrelétricas.

A demarcação das áreas indígenas prevista na Constituição e um recomendável aumento de número de parques nacionais granjearia ao Brasil o respeito da comunidade internacional pois mostraria ao mundo a determinação em fazer sua parte para “mitigar a mudança climática” já que a “perda das florestas tropicais piora a situação” (LS 24).

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