O Judiciário no Brasil, segundo Comparato (final)

Há alternativas para evitar que poder permaneça submisso às elites. Mudança crucial: STF não pode manter condição de órgão impermeável à democracia e ao controle cidadão

Por Fabio Konder Comparato – Outras Palavras

Leia também: Parte 1 e Parte 2

As Reformas Necessárias

Por todo o exposto, é evidente que algumas reformas se impõem, a fim de eliminar velhos defeitos de funcionamento das instituições de Justiça no nosso país. Eis as que, em minha opinião, parecem mais importantes.

a) Ampliar e aprofundar os instrumentos de controle do Poder Judiciário

Sem dúvida, a criação do Conselho Nacional de Justiça representou um avanço no aperfeiçoamento do sistema de controles da magistratura. A atual estruturação do órgão, no entanto, padece de sérios defeitos.

Em primeiro lugar, ele não é convenientemente estruturado para exercer suas atribuições em todo o território nacional. O Conselho deveria contar com unidades auxiliares em cada Estado da federação.

Ademais, o órgão é majoritariamente formado por integrantes da própria magistratura sujeita a controle. Por esta razão, ao que parece, o Conselho tem evitado sistematicamente, mesmo nos casos de graves delitos, aplicar aos magistrados, sobretudo os membros de tribunais superiores, a pena de demissão prevista no art. 42, inciso VI, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

Assinale-se, ainda, que os integrantes do Supremo Tribunal Federal não se submetem ao controle do Conselho Nacional da Magistratura.

Na realidade, aliás, os Ministros de nossa mais alta Corte de Justiça não estão sujeitos a responsabilidade alguma no exercício de suas funções, quer jurisdicionais quer administrativas. Esse status de total irresponsabilidade foi transposto da Constituição norte-americana, a qual, nesse particular, suscitou a severa crítica de Thomas Jefferson.

“Ao pretender estabelecer três departamentos, coordenados e independentes, de modo que cada um deles possa controlar os outros e ser por eles controlado (“that they might check and balance one another”), a Constituição atribuiu a um só deles o direito de prescrever regras para a atuação dos demais, e o fez justamente em favor daquele que não é eleito pela nação e permanece independente dela. Pois a experiência já mostrou que oimpeachment estabelecido pela Constituição não chega a ser nem mesmo um espantalho”.[28]

Tampouco entre nós, esse remédio constitucional inspira qualquer espécie de temor no seio do Supremo Tribunal Federal. Isto, sem falar no fato de que os anais de jurisprudência de todo o período republicano não registram caso algum em que os magistrados de nossa mais alta Corte tenham sido acusados de atos criminosos e, em consequência, constrangidos a responder a processo penal. Teríamos, no entanto, a ousadia de afirmar que fatos semelhantes aos que suscitaram a ira de Dom Pedro II em relação ao Supremo Tribunal de Justiça do Império jamais ocorreram no período pós-monárquico?

Ora, é sumamente constrangedor verificar que nem mesmo o cumprimento das disposições do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal pode ser imposto aos seus Ministros.

Tomemos, por exemplo, a norma do art. 337, § 2º desse Regimento, referente ao processamento dos embargos de declaração: “Independentemente de distribuição ou preparo, a petição será dirigida ao relator do acórdão que, sem qualquer outra formalidade, a submeterá a julgamento na primeira sessão da Turma ou do Plenário, conforme o caso”.

Pois bem, em caso de repercussão nacional e internacional, qual seja a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 sobre a lei de anistia de 1979, o relator dos embargos de declaração ao acórdão publicado em maio de 2010, até o momento em que escrevo estas linhas – ou seja, há quase 5 (cinco) anos! – apesar de várias vezes solicitado pelo embargante, não submeteu o recurso a julgamento.

Outro exemplo de flagrante desrespeito a norma constante do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal ocorreu durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.650, intentada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, objetivando o financiamento empresarial de campanhas eleitorais. Em sessão plenária realizada em abril de 2014, após o sexto voto pela procedência da ação – ou seja, quando já se havia atingido a maioria decisória – o Ministro chamado a votar em sequência pediu vista dos autos, e até o início do ano judiciário de 2015 ainda não os havia apresentado para prosseguimento da votação. Ora, o art. 134 do Regimento Interno dispõe, textualmente: “Se algum dos Ministros pedir vista dos autos, deverá apresentá-los, para prosseguimento da votação, até a segunda sessão ordinária subsequente”.

Dispõe a Constituição Federal (art. 5º, inciso XXV) que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O que não é então permitido à lei será por acaso tolerado individualmente a membros de nossa mais alta Corte de Justiça? Ao que parece, por trás do antojo constitucional existe embuçado um outro ordenamento, atribuindo a cada Ministro do Supremo Tribunal o poder discricionário de suspender, indefinidamente, o processamento de um recurso, ou o julgamento já iniciado no mérito de qualquer causa, segundo o seu próprio alvitre.

b) Instituir instrumentos de controle vertical, interno e externo, dos órgãos judiciários

Tradicionalmente, no sistema das assim chamadas democracias representativas, tal como a nossa, os órgãos estatais não são obrigados a prestar contas diretamente ao povo da antijuridicidade de seus atos ou omissões.
Uma exceção a essa regra, entre nós, tem sido a ação popular. No sistema da Constituição de 1824, como visto, qualquer cidadão, na qualidade de substituto processual do povo, podia intentá-la contra juízes de direito e oficiais de justiça, “por suborno, peita, peculato e concussão”. A Constituição Federal de 1891, contudo, não reproduziu essa disposição.

A partir da Constituição de 1934 (art. 114, alínea 38), qualquer cidadão tornou-se parte legítima para pleitear em juízo a anulação ou declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público. A Constituição vigente estende o cabimento dessa ação aos casos de dano ao patrimônio de que o Estado participe, bem como “à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural” (art. 5º, inciso LXXIII). Mas essa ação é incabível contra atos ou omissões dos órgãos judiciários.

Sem dúvida, é permitido a qualquer cidadão denunciar perante o Senado Federal os Ministros do Supremo Tribunal Federal pelos crimes de responsabilidade que cometerem (Lei nº 1.079, de 1950, art. 41). Tal denúncia, porém, jamais ocorreu, nem se imagina que, se um dia fosse feita, os Senadores da República tivessem a coragem de recebê-la e processá-la.

Nessas condições, a fim de cobrir as lacunas no campo do controle vertical dos membros da magistratura, parece sumamente recomendável a criação de ouvidorias públicas perante os órgãos de Justiça de todo o país, sem exceções.

Os ouvidores, necessariamente bacharéis em direito, seriam eleitos pelo povo para o exercício dessas funções por prazo determinado, podendo ser reeleitos. Eles teriam competência para abrir e presidir inquéritos, quando houvesse suspeita de violação pelo magistrado dos deveres e proibições expressos na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (artigos 35 e 36). Se as investigações oficiais confirmarem a suspeita, os ouvidores proporiam, perante o Conselho Nacional da Magistratura, a aplicação das sanções nela previstas. Na hipótese de o inquérito concluir pela prática de crime, caberia ao ouvidor representar ao Ministério Público para a abertura da ação penal cabível.

Ainda no nível do controle vertical, é indispensável deixar expresso na Constituição que o Poder Judiciário nacional tem o dever de cumprir as decisões tomadas pelas cortes de justiça internacionais, quando o Estado Brasileiro aceitou oficialmente a elas submeter-se.

De se lembrar, a propósito, o Caso Gomes Lund e outros v. Brasil (“Guerrilha do Araguaia”), no qual o nosso país foi condenado unanimemente. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, prolatora da decisão em 26 de novembro de 2010, decidiu que “as disposições da Lei de Anistia brasileira, que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos, são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana, ocorridos no Brasil”.

Ora, vários órgãos judiciários brasileiros, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, têm se recusado a cumprir essa decisão internacional; o que levou um partido político a propor, em 15 de maio de 2014, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 320, a qual recebeu parecer em grande parte favorável da Procuradoria-Geral da República. A inexecução da mencionada sentença condenatória foi, afinal, oficialmente reconhecida pela própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, em Resolução de 17 de outubro de 2014.

c) Mudança na cúpula do sistema judiciário

Deve ser lembrada, neste tópico, a Proposta de Emenda Constitucional nº 275/2013, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados.

Seu objeto precípuo é a transformação do Supremo Tribunal Federal em uma Corte Constitucional, modificando sua competência e a forma de nomeação de seus Ministros. Ademais, a PEC em questão determina o aumento do número dos Ministros componentes do Superior Tribunal de Justiça, bem como amplia sua competência.

A organização do Supremo Tribunal Federal, com efeito, padece de graves defeitos, tanto na forma de sua composição quanto no tocante ao âmbito de sua competência.

São reproduzidas, a seguir, as razões justificativas da mencionada Proposta de Emenda Constitucional.

Em todas as nossas Constituições republicanas, determinou-se, segundo o modelo norte-americano, que a nomeação dos Ministros do Supremo Tribunal Federal seja feita pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal.

Nos Estados Unidos, o controle senatorial funciona adequadamente, já tendo havido a desaprovação de doze pessoas indicadas pelo Chefe de Estado para a Suprema Corte. Algumas vezes, quando o Chefe de Estado percebe que a pessoa por ele escolhida não será aprovada pelo Senado, retira a indicação.

No Brasil, ao contrário, até hoje o Senado somente rejeitou uma nomeação para o Supremo Tribunal Federal. O fato insólito ocorreu no período conturbado do início da República, quando as arbitrárias intervenções militares decretadas por Floriano Peixoto em vários Estados suscitaram o acolhimento, pelo Supremo Tribunal, da doutrina extensiva do habeas-corpus, sustentada por Rui Barbosa. Indignado, o Marechal Presidente resolveu, em represália, nomear para preencher uma vaga na mais alta Corte de Justiça do país o doutor Barata Ribeiro, que era seu médico pessoal.

Literalmente, não houve violação do texto constitucional, pois a Carta de 1891 exigia que os cidadãos nomeados para o Supremo Tribunal Federal tivessem “notável saber e reputação”; o que ninguém podia negar ao Dr. Barata Ribeiro. Foi somente pela Emenda Constitucional de 1926, e em razão daquele episódio, que se resolveu acrescentar o adjetivo “jurídico” à expressão “notável saber”.

Mas essa qualificação aditiva não mudou a prática das nomeações para o Supremo Tribunal Federal. Perdura até hoje a hegemonia absoluta do Chefe de Estado no cumprimento dessa atribuição constitucional. Tal não significa que as pessoas nomeadas não estejam necessariamente à altura do cargo; mas o fato é que, sendo essa escolha feita tão-só pelo Chefe de Estado, este cede facilmente a seus sentimentos pessoais em sua decisão final, além de sofrer toda sorte pressões, em função da multiplicidade de candidaturas informais.

No que diz respeito à competência do Supremo Tribunal Federal, ocorre outra grave deficiência. A Constituição Federal de 1988 atribuiu-lhe, como objetivo precípuo, “a guarda da Constituição” (art. 102). Mas a consecução dessa finalidade maior é simplesmente obliterada pelo acúmulo de atribuições para julgar processos de puro interesse individual ou de grupos privados, sem nenhuma relevância constitucional.

A fim de corrigir esses graves defeitos no funcionamento do Supremo Tribunal Federal, a PEC nº 275/2013 determina seja ele transformado em uma autêntica Corte Constitucional, com ampliação do número de seus membros e redução de sua competência.

A nova Corte seria, assim, composta de 15 (quinze) Ministros,[29] nomeados pelo Presidente do Congresso Nacional, após aprovação de seus nomes pela maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, a partir de listas tríplices de candidatos, oriundos da magistratura, do Ministério Público e da advocacia. Tais listas seriam elaboradas, respectivamente, pelo Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

Transitoriamente, os atuais Ministros do Supremo Tribunal Federal passariam a compor a Corte Constitucional, com o acréscimo de mais quatro novos membros, nomeados como acima indicado.

O novo sistema de nomeação tornaria bem mais difícil do que é hoje exercer com êxito algum lobby em favor de determinada candidatura; além de estabelecer, já de início, uma seleção de candidatos segundo um presumível saber jurídico.

Nos termos da PEC nº 275/2013, a competência da Corte Constitucional seria limitada às causas que dissessem respeito diretamente à interpretação e aplicação da Lei Maior, transferindo-se todas as demais à competência do Superior Tribunal de Justiça.

De acordo com a Proposta em foco, o Superior Tribunal de Justiça teria uma composição semelhante à da Corte Constitucional, mas contaria doravante com um número mínimo de 60 (sessenta) Ministros; ou seja, quase o dobro do fixado atualmente na Constituição. Os atuais Ministros do Superior Tribunal de Justiça seriam mantidos, providenciando-se a nomeação dos futuros Ministros na forma do disposto no art. 104 da Constituição Federal, com a nova redação constante da proposta.

Conclusão

Em passagem famosa de O Espírito das Leis, [30] Montesquieu, ao aceitar o ensinamento de John Locke a respeito da necessária tripartição de poderes na sociedade política, conclui: “Des trois puissances dont nous avons parlé, celle de juger est en quelque façon nulle”. A assertiva parece flagrantemente contraditória, pois como reconhecer no Judiciário um Poder do Estado, e ao mesmo tempo negar-lhe todo poder?

Na verdade, a incongruência verbal é superada quando se estabelece a distinção, que o próprio Montesquieu fez, entre o poder estatuinte (la faculté de statuer) e o poder impediente (la faculté d’empêcher).[31] Em Roma, por exemplo, os tribunos da plebe não tinham poder algum de criar leis ou ordenar a prática de atos jurídicos; mas a tribunicia potestas (sempre temida pelo patriciado) compreendia, entre outras competências, a de vetar qualquer ato de titular de cargo público, contrário aos interesses da plebe.

Com base nessa distinção conceitual, percebe-se, desde logo, que ao Judiciário não compete nenhum poder estatuinte de criar normas gerais ou organizar serviços públicos. Mas ele possui no mais alto grau o poder impediente de corrigir e reparar, não apenas os desmandos dos demais órgãos públicos (e também dos particulares dotados de poder na sociedade), mas também em tese o de suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais no exercício de suas funções.

Ora, para que isto suceda plenamente é indispensável o estabelecimento de um sistema efetivo de controle dos órgãos judiciários, como frisado acima. Ainda aí, importa lembrar a sábia lição de Montesquieu: [32] “É uma experiência eterna que todo homem que dispõe de poder” – e devemos acrescentar, todo órgão estatal dotado de poder, mesmo constitucional – “é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites”.

Saberemos um dia atender a essa exigência fundamental para a verdadeira instituição do Estado de Direito em nosso país?

Notas
[28]Thomas Jefferson Political Writings, Cambridge University Press, 1999, p. 378.
[29]De se lembrar que a Constituição Federal de 1891, ao criar o Supremo Tribunal Federal, determinou que ele fosse composto de “quinze juízes” (art. 56).
[30]Livro XI, capítulo 6.
[31]Ibidem.
[32]Do Espírito das Leis, Livro XI, capítulo IV.

Foto: Sede do STF, Brasília. Corte máxima do Judiciário aprovou união civil gay, mas reconheceu golpe militar de 1964, mantém anistia aos torturadores e, em desafio ao Estado laico, conserva, no plenário de seus ministros, crucifixo cristão…

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