Mauricio Torres denuncia ações de violência praticadas pelo Ibama e ICMBio contra os ribeirinhos do Pará, populações que têm uma relação de equilíbrio com o meio ambiente
Por Carolina Motoki, Repórter Brasil
Uma casa queimada, instrumentos de trabalho apreendidos, comércio e roça proibidos. Tratados como uma ameaça à preservação, os ribeirinhos do rio Iriri, no Pará, sofrem pressão para abandonar o “beiradão” – a beira do rio é mais do que o lugar onde vivem, mas o lugar onde se fazem vivos. Por ações como essas, o cientista social Mauricio Torres trata o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) por ICMBope, em referência ao Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Nesta entrevista, ele revela as contradições na postura do Ministério do Meio Ambiente sobre as unidades de conservação: “São permissivos em relação à usina hidrelétrica de Belo Monte, mas quando veem um ribeirinho numa canoa, ‘deus do céu, tira esse monstro daqui que ele vai acabar com a Amazônia’”, ironiza.
Profundo conhecedor da região e de sua gente, Torres baseia suas críticas em um longo trabalho de pesquisa de campo realizada na Estação Ecológica Terra do Meio, publicada no livro digital Não existe essa lei no mundo, rapaz!. Nele, junto com Daniela Alarcon, traça um retrato da violência contra os beiradeiros do rio Iriri, caso exemplar do modo como comunidades são perseguidas, ameaçadas e expulsas de unidades de conservação pelo Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) e mais recentemente pelo ICMBio.
A Estação Ecológica Terra do Meio faz parte do Mosaico de Unidades de Conservação de mesmo nome, entre os rios Xingu e Tapajós, no Pará. O mosaico foi criado após a morte da irmã Dorothy Stang para fazer frente à grilagem, à exploração comercial da madeira e à pecuária. Os estudos indicavam que a área deveria ser uma Reserva Extrativista, modalidade que prevê o uso da floresta pelas comunidades. Em vez disso, as famílias ficaram dentro de uma Estação Ecológica, modelo com mais restrições à presença humana.
Se os ribeirinhos do Iriri são considerados uma ameaça à preservação, não muito longe dali, no Rio Xingu, são um entrave à construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, que vai alagar 510 quilômetros quadrados e pode gerar desmatamento de até cinco mil quilômetros quadrados, segundo estimativa do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia).
Na última semana, o Ministério Público Federal do Pará divulgou relatório de inspeção que denuncia a remoção de famílias de seus territórios com indenizações irrisórias ou a áreas de reassentamentos consideradas inadequadas. “Está em curso um processo de expropriação dos meios de produção da vida dos grupos ribeirinhos impactados pela UHE Belo Monte”, afirma Thais Santi, procuradora da República em Altamira, na apresentação do relatório.
Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo, Torres vive em Santarém nos intervalos do trabalho de campo que realiza para diversas organizações, entre elas o Ministério Público Federal. Ele narra o impacto que a saída do beiradão tem sobre a vida dessas famílias, cuja identidade e existência estão apoiadas nos marcos do território.
Repórter Brasil – O Ibama e o ICMBio agiram de forma violenta contra os beiradeiros?
Mauricio Torres – Desde a criação da unidade de conservação, os beiradeiros estão imersos em um quadro de violência cotidiana e violação de direitos. O órgão ambiental responsável pela gestão – antes o Ibama e agora o ICMBio – por muito tempo fez pressão para que as famílias reduzissem sua produção e impediu a comercialização do excedente, reduzindo as condições de sobrevivência. Durante nossa pesquisa em campo, um bombeiro que acompanhou uma operação do Ibama na Estação Ecológica da Terra do Meio nos contou que o então chefe da unidade de conservação ordenou a expulsão de moradores e chegou a atear fogo na casa dessa família.
Além disso, direitos como educação, saúde e transporte são negligenciados. Assim, vem ocorrendo um processo de expulsão, causado tanto pelas pressões impostas pelo Estado ao modo de vida desse grupo, quanto por abandono e privação de direitos constitucionais.
Houve outros casos de violência e pressão explícitas?
Os moradores contam que uma gestora do Ibama recolheu todas as facas, enxadas e terçados – instrumentos de trabalho – das famílias ribeirinhas, considerando que eram “armas brancas”. Uma violência absurda. Foram apreendidas as baterias de energia usadas pelas famílias para fazerem as festas. Ou seja, são retiradas não só as condições que forneciam as possibilidades materiais, como as que permitiam um mínimo de sociabilidade. Quando essas famílias, num átimo de desespero, abandonavam tudo e se lançavam no mundo sem nada além do que elas pudessem carregar, o Ibama, e depois o ICMBio, diziam com orgulho que elas haviam deixado o local espontaneamente.
É importante registrar que a coisa muda bastante com a chegada da última gestora da unidade de conservação, Tathiana Chaves de Souza. Ela teve sensibilidade em relação a esses grupos, de modo que, depois da sua chegada, essas pressões se aliviaram muito. Em compensação, as limitações começaram a vir de Brasília.
A legislação não protege as comunidades tradicionais desse tipo de ação?
A lei é bem clara: as comunidades tradicionais que vivem em unidades de conservação – mesmo naquelas de proteção integral – têm direito a permanecer nessas áreas. As condições dessa permanência devem constar em acordos firmados entre os ocupantes e o órgão ambiental. A Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho garantem o direito à permanência dessas famílias. Mas chegavam os servidores do Ibama, muitos sem qualquer preparo sobre o conceito de comunidades tradicionais, para concluir que os grupos não eram comunidades tradicionais.
Esse questionamento é referendado pelos gabinetes do órgão em Brasília, o que não é despreparo. É um questionamento conveniente à entrega de territórios tradicionalmente ocupados para concessão florestal, para grandes projetos de infraestrutura logística. É uma violação do direito das comunidades tradicionais à autoidentificação. O que os ruralistas fazem ao negar certas etnias como índios é muito parecido com o que a direção do ICMBio faz ao negar a certos grupos a condição de comunidade tradicional.
O ICMBio não tem competência, no sentido de atribuição, para esse diálogo. É um órgão focado na questão ambiental. Eu dei aula em três cursos de formação de gestores ingressos no ICMBio. O tempo destinado à discussão acerca dos territórios tradicionalmente ocupados e de comunidades tradicionais era absurdamente pequeno, duas ou quatro horas. A duração das aulas de tiro era maior.
Por isso você fala em ICMBope?
Eu digo que às vezes o ICMBio parece ser o ICMBope, com ações policialescas e repressivas. Eu não estou condenando ações de repressão ao madeireiro. Eu estou falando de ações policialescas e repressivas contra o ribeirinho, como as famílias que vivem em diferentes unidades de conservação sofreram não sei quantas vezes. Quando analisamos a atuação do órgão ambiental em face dos povos e comunidade tradicionais, encontramos coisas aberrantes. E isso vem piorando.
A criação do mosaico de Unidades de Conservação da Terra do Meio reduziu os conflitos e a grilagem?
No Pará, adotou-se uma política de combater grilagem com a decretação de unidades de conservação. E isso não é algo automático, pois as unidades de conservação não são instrumentos de regularização fundiária, mas de proteção ambiental. A decretação da unidade de conservação torna a área não “grilável”, não passível de ser apropriada privadamente. Mas são muito precários – se não inexistentes – os procedimentos para se retomar as terras em poder de grileiros. O fato é que a regularização fundiária virou um grande gargalo das unidades de conservação.
Os grileiros foram expulsos ou sofreram pressão como os beiradeiros?
O mosaico da Terra do Meio é o único caso que eu conheço em que quase todas as grilagens foram expulsas. Mas isso foi feito pelo MPF. Até hoje, o ICMBio não moveu uma ação de reintegração contra os grileiros que ocupavam ou os poucos que restam no mosaico. Por exemplo, em áreas que estavam fora da jurisdição do procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida, responsável pela ação, há grileiros instalados que nunca foram sequer incomodados. Se o órgão tem um bom tráfego na questão ambiental, é precário na questão fundiária. Faltam instrumentos legais para que o ICMBio tenha competência de arrecadar as terras que devem ser transferidas para o seu nome.
Famílias foram expulsas, em um primeiro momento por causa dos grileiros, e depois pela pressão do órgão gestor da Estação Ecológica. Como isso é vivido por elas?
Eu trabalhei com expropriados do Parque Nacional da Amazônia, no rio Tapajós, na década de 1970. A principal queixa era a educação dos filhos. A frase que muitas famílias repetiam era: “eles não nos obedecem mais”. Quando falo educação, estou indo muito além da escolarização. Sabemos, de Aristóteles a Foucault, que o mestre ensina porque é investido de uma autoridade conferida pelo saber. Esse saber é local.
Eu conheci verdadeiros sábios, com um conhecimento extremamente profundo sobre a floresta, sobre seus usos, seus perigos, seus remédios, suas possibilidades de fartura. Quando essa família sai, e vão trabalhar como guarda noturno ou como faxineira, são desprovidos desse saber. Eu conheci uma senhora que disse que o marido remava dois dias pra pescar no lugar onde eles viviam, que ele não sabia pescar em outro lugar, e a última frase dela foi: “ele não era mais”. Esse “não era” sem o complemento é extremamente eloquente. Ele não era mais. Ponto.
A identidade de beiradeiro, como qualquer outra, é apoiada em uma memória do grupo, construída em cima daquelas histórias ancoradas naquelas pedras dos rios, naquelas seringueiras, naquelas castanheiras. Na hora em que você priva as pessoas de tudo isso, você priva o grupo da memória e abala suas identidades.
O impacto de expropriar essas famílias é irreparável. Como se indeniza o túmulo de um filho que ficou lá no beiradão, perto da antiga morada de uma família expulsa?
Existe uma orientação do Ministério do Meio Ambiente de que a presença dessas populações é incompatível com essas Unidades de Conservação?
Há, dentro do ICMBio, duas tendências: a preservacionista, que é avessa à ocupação humana em unidades de conservação, e a conservacionista, que entende que, se as áreas que hoje correspondem a unidades de conservação foram ocupadas por povos e comunidades tradicionais durante séculos e estão bem conservadas, é porque o uso que fazem dos recursos é, em si, um valor ambiental.
A corrente preservacionista que hoje domina o órgão em Brasília é classista: o problema é o pobre. Instalar um resort em um Parque Nacional para receber milionários é algo muito bem-vindo, mesmo que isso tenha impacto ambiental. Já a comunidade tradicional que fazia um uso absolutamente interessante e menos impactante que o hotel tem que ser expulsa. Os responsáveis pelo órgão são permissivos em relação à usina hidrelétrica de Belo Monte, mas quando veem um ribeirinho numa canoa, “deus do céu, tira esse monstro daqui, que ele vai acabar com a Amazônia”.
Como compara a situação dos beiradeiros da Terra do Meio com a dos ribeirinhos removidos por Belo Monte?
Ao passo que a descomunal degradação gerada por Belo Monte contou com benevolência dos órgãos de controle ambiental, a meia dúzia de famílias de extrativistas distribuídas ao longo em 300 quilômetros do rio Iriri é tida como intolerável, geradora de impactos inadmissíveis a uma unidade de conservação de mais de 3 milhões de hectares.
No caso de Belo Monte, a atual orientação da política ambiental mostra sua subserviência às políticas de “desenvolvimento”. Ao mesmo tempo, a dramática situação dos ribeirinhos expropriados pela usina dá uma boa amostra do quadro ao qual resistem os beiradeiros do alto Iriri: desagregação do grupo comunitário, destruição do modo de vida, perda dos meios de subsistência. Mas o modo como as famílias da Estação Ecológica foram expulsas – e outras ainda correm risco de ser – é ainda mais cruel. Elas sequer “existem” como famílias removidas. Não houve um processo instaurado para retirá-las da terra, ao contrário: sequer se admitiu que isso estava sendo feito.
Há um senso comum de que a floresta conservada é incompatível com a presença humana?
O primeiro senso comum é de que a Amazônia não é ocupada. Podemos compreender quando esse discurso é empregado pelo citadino do centro-sul, mas não quando lastreia a ação de burocratas que trabalham com isso. A arqueologia mostra que muito do que se imaginava ser floresta virgem são ambientes socialmente construídos. Arqueólogos mostram que a Amazônia já chegou a ser muito mais habitada do que hoje. Eu diria até que o que existe de mais efetivo para deter o desmatamento são justamente esses povos da floresta. E Chico Mendes, no Acre, já mostrava isso há 30 anos. O que está detendo o desmatamento são os territórios étnicos: as terras indígenas, os territórios quilombolas ou as unidades de conservação ocupadas por comunidades tradicionais.
Mas tem uma coisa que me incomoda: o discurso de que “eles detêm o madeireiro porque amam a floresta”, como se fossem essencialmente bons e puros. A relação com a floresta está mais regida pelo campo político do que pelo moral. Eles terem a floresta saudável e íntegra do lado de casa é uma necessidade para a sobrevivência. Quando eles detinham o desmatamento, o avanço do pasto do grileiro, eles estavam lutando pela própria sobrevivência.
Como essas comunidades mantêm a floresta com o uso da própria floresta?
Uma das coisas mais certas na Amazônia, depois do grileiro, é a umidade. É muito difícil fazer estocagem. Essas comunidades, herdeiras de conhecimentos indígenas, detêm uma tecnologia capaz de reconhecer na floresta uma quantidade imensa de potencialidades para garantir a manutenção de uma despensa viva e, portanto, sadia. Até nos roçados a gente encontra um sistema que imita a dinâmica da própria floresta.
As comunidades ribeirinhas têm verdadeiros bancos de germoplasmas. Lá no rio Iriri, é possível perceber uma variedade enorme de cultivares de mandioca, pouquíssimas catalogadas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Na lógica da agricultura capitalista, o razoável seria: planta-se a mais produtiva, a melhor. Mas a prioridade dos beiradeiros é a necessidade da família. Então, tem uma variedade de mandioca que é para mulher grávida, uma para quem está convalescendo, outra para o idoso, outra que é muito precoce e já pode virar farinha depois de seis meses, outra que suporta e consegue ficar enterrada por até três anos e mantém essa função de estocagem viva. O grupo garante, assim, sua segurança alimentar.
Uma vez eu estava andando com um engenheiro florestal. Ele olhou para uma árvore e comentou: “com isso vocês fazem cabo de machado, não é?”. O beiradeiro disse: “não, com isso a gente faz cabo de enxada, porque isso é leve. Cabo de machado, a gente faz com tal madeira. Mas cabo de foice, a gente faz com aquela outra, e cabo de vassoura…”. Ele enumerou uma série de cabos de ferramentas, sem repetir a madeira, a espécie. Essa tecnologia de saber a propriedade de cada madeira responde por sustentabilidade. Mostra que ele vai explorar com baixa pressão uma quantidade muito grande de espécies e não vai sobrecarregar um único recurso. Não esgotar o recurso é um componente fundamental de um modo de vida construído ao longo de gerações.
Qual a situação hoje das famílias?
Para amenizar situações de conflito – no caso de sobreposições territoriais – eram elaborados termos de ajustamento de conduta ou termos de compromisso, em que se firmava um acordo entre as duas partes, o grupo ocupante e o órgão ambiental. O termo de compromisso foi elaborado, consensuado com as famílias beiradeiras que vivem no interior da unidade de conservação, a gestora do ICMBio deu todo o encaminhamento devido e ele parou em Brasília. Assim, sem qualquer justificativa, o processo foi paralisado e as famílias continuam no limbo. Os processos de elaboração e assinatura de acordos dessa natureza foram estancados em Brasília. Isso saiu de pauta.
O que pode gerar esse vácuo provocado pelo Estado ao não garantir o direito dessas famílias, e entrar como o braço repressor?
Há frentes de grilagem e madeireiros que estão chegando lá, vindas da BR-163 (Cuiabá-Santarém) no sentido oeste-leste. E eles sabem muito bem como trabalhar com a cooptação ocupando o vácuo do Estado. Estamos falando dos beiradeiros do rio Iriri, tratados no livro, mas existem também os do rio Curuá, um afluente do rio Iriri, que passaram pelo mesmo processo: conforme os estudos, deveriam ser beneficiados por uma reserva extrativista e não foram, foi criado um outro tipo de unidade de conservação lá, uma floresta estadual, que é um tipo focado no fornecimento de madeira.
O caso do rio Iriri não é isolado…
Exatamente. Grileiros e madeireiros já estão equipados para o que a gente vai chamar, entre muitas aspas, de assistência social: garantem transporte, socorro num caso de doença, possibilitam que uma criança vá estudar na cidade mais próxima etc. Na ausência do Estado como garantidor de direitos, eles entram na área com o seguinte discurso: “estamos indo para ajudar os ribeirinhos abandonados”. A gente sabe muito bem o preço que isso vai ter. A entrada de um ente privado em um vácuo deixado pelo Estado, levando a essas pessoas aquilo que é seu direito, é o caminho pelo qual se formaram máfias no planeta inteiro. A postura do Estado hoje é pavimentar o caminho desses grileiros.
Há quem defenda que as unidades de conservação devem ser Florestas Nacionais em que determinada área é concedida aos madeireiros e, a partir desse ponto, devem ser de proteção integral, onde não pode ter gente. Mas e as comunidades tradicionais? Elas já estão lá.
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Imagem destacada: “Eu não quero sair daqui, só se me mandarem embora. Se mandarem, eu vou chorando”, Maria Raimunda Gomes da Silva, moradora da beira do rio Iriri (Foto: Daniela Alarcon)