Arqueólogos questionam projeto de consultoria que pretende levar estudantes para ex-sítio arqueológico e acusam desrespeito com população local
por Felipe Milanez, Carta Capital
O Brasil está ampliando cada vez mais o seu portfólio para se tornar uma Disneylândia de conflitos. Quer ver sangue? Temos para espremer à vontade na favela mais próxima! Quer ver uma ex-floresta? Há um vasto pacote. E um ex-rio ainda habitado por ex-ribeirinhos em um ex-sítio arqueológico? No cardápio vem tudo concretado, difícil de ler, mas nesse safari a avistagem (assim se fala na gíria de agencias de ecoturismo) é garantida – ainda que a população local não esteja “habituada” (como algumas agências tentam treinar onças).
Uns anos atrás eu viajei pela Transamazônica visitando locais de tragédias no passado e escrevi um guia de turismo de conflito: Transando a Amazônia, essa quarentona. Era uma ironia, é claro, que representava uma luta pela memória de violências que não devem ser esquecidas. Nunca esquecer das atrocidades da ditadura empresarial-militar para que não se repitam.
Mas, na mesma Transamazônica, a história volta tanto como tragédia quanto como farsa. A destruição provocada por Belo Monte agora virou, efetivamente, uma atração operada pela empresa de consultoria Scientia Consultoria Científica. O nome, claro, deve ser mais sugestivo: um “sitio-escola“.
Os consumidores-alvo, que não precisam pagar pois a escola é subvencionada pelo cliente que concretou a região e barrou o rio Xingu, são alunos de graduação e pós-graduação que terão hospedagem paga e, portanto, serão visitantes de fora, funcionando como um turismo escolar. E o objetivo é: “a formação inicial de estudantes e pesquisadores na área de arqueologia por meio de atividades teóricas e práticas de campo relacionadas à arqueologia amazônica e escavação de sítios arqueológicos em um contexto de arqueologia consultiva”.
Treinados para servir a consultorias de grandes obras, e é importante lembrar que na Europa já existe um fórum sobre Mega Projetos Inúteis Impostos que, aparentemente, vai demandar mão-de-obra científica para a justificação de mega-obras inúteis, irão acompanhar as “pesquisas em andamento na área da UHE Belo Monte”:
“Os estudantes irão aprender técnicas básicas de prospecção intra-sítio, escavação, e registro necessários para execução de trabalho de campo. Os tópicos a serem abordados incluem estratégias de prospecção intra-sítio e escavação, estratigrafia, topografia, coleta de amostras de solo, técnicas e registro de escavação de sepultamentos, registro de gravuras rupestres e feições de polimento, além de técnicas de flotação de sedimento.”
Será então uma escola para aprender e reafirmar que a arqueologia foi, em quase toda a sua história, um violento instrumento de colonização e saque (lembram de Indiana Jones em busca de tesouros para trazer para casa?), ou, fosse diferente, que a arqueologia, como ciência, pode ser transformada acompanhando um mundo em luta por descolonização e respeito e consulta as populações atingidas por projetos? Paulo Freire deve estar revirando no túmulo sobre cada uso que se faz da ideia de “educação”.
O sítio-escola em um ex-sítio arqueológico (pois os impactos da obra destroem os vestígios arqueológicos da região) foi denunciado por arqueólogos comprometidos com novos paradigmas éticos da ciência que praticam, esses da descolonialidade e respeito às populações que vivem no entorno das áreas de trabalho.
Em uma carta publicada no site Xingu Vivo, e reproduzida AQUI, acusam o desrespeito com povos indígenas e populações locais em todo o processo da construção da usina e o fato dessas pessoas atingidas estarem excluídas da proposta do “sítio-escola”.
Atacam, ainda, os resultados das pesquisas e escavações realizadas nas obras da usina, que são agora objetos do “sítio-escola”, pois, segundo elxs, “em Belo Monte o resgate do patrimônio arqueológico tem assumido uma conotação fetichista, ou seja, é o resgate do patrimônio por ele mesmo”, e questionam se “é correto para a formação de novos arqueólogos realizar pesquisa e ensino em situações onde os seus fundamentos não atendam aos pressupostos humanitários e ambientais elementares sugeridos pela ONU e seus diversos organismos”.
A realização de um sítio-escola de arqueologia poderia ser motivo de comemoração por cientistas e, especialmente, para as comunidades onde eles ocorrem, que teriam uma chance de aprender mais sobre o passado social dos territórios onde vivem. A formação de novos quadros e a renovação dxs pesquisadorxs e das suas ideias é vital para o progresso da ciência. E, conforme sugere a ONU, xs arqueólogxs devem receber uma educação que também inclua a ética, a preservação do patrimônio cultural e, incondicionalmente, o respeito ao ambiente e às sociedades que vivem nas áreas de interesse para a arqueologia.
Tais preceitos também preconizam que xs arqueólogxs atuem em conformidade com as sociedades envolvidas, que as ouçam e as transformem em parceiras, respeitando e valorizando as suas perspectivas e histórias particulares e trabalhando em diálogo (não de cima para baixo, ou de fora para dentro).
No caso da hidrelétrica de Belo Monte, as populações locais não participaram da parte que coube à arqueologia. Nem, igualmente, de outros momentos da obra, como tem denunciando constantemente o Ministério Público Federal pela ausência de consulta às populações atingidas.
Nem foram ouvidas, e nem tiveram as suas perspectivas valorizadas. Basta andar por Altamira para ver que a maioria não concorda com a obra que irá mudar suas vidas — principalmente aqueles que estão deixando suas casas e assistindo à sua destruição por tratores, como tenho recebido relatos de amigxs que vivem lá.
Esse não é um processo muito diferente daquele que a ditadura implantou em Itaipu, em Balbina e em Tucuruí. Nesse sentido, Belo Monte, e me perdoem a ironia, respeita uma longa tradição. Assim como os arqueólogos e outros cientistas que lá estão servindo.
O governo espera ligar a tomada de Belo Monte ainda este ano. Fora cálculos apresentados para convencer investidores, não se sabe realmente qual será a quantidade de energia que efetivamente vai passar pelas turbinas, nem o tamanho da área que será inundada e nem a que será secada (principal efeito na Volta Grande do rio).
Quem está sofrendo mais diretamente as consequências tem descoberto que vive na linha de alagamento e está sendo removido à força de tratores – no processo mais violento de deslocamento humano do Brasil pós-ditadura. Para ligar as turbinas, a empresa Norte Energia vai depender de uma licença específica emitida pelo Ibama.
Mas, se for levado a sério por aqueles que sentam nos balcões dos aparelhos do Estado um minucioso levantamento feito pelo Instituto Socioambiental, essa licença não deveria sair. Em “Dossiê Belo Monte: Não há condições para licença”, não faltam descumprimentos de obrigações que a empresa havia se comprometido para avançar com a obra.
É provável, temo, que o governo utilize a tática que ficou conhecida pelas manobras do deputado Eduardo Cunha: mandar para o Ibama até que ele emita a licença, não aceitar jamais perder mesmo que esteja errado, repetidamente errado.
Esta não é a primeira vez que arqueólogos no Brasil que trabalham principalmente na Amazônia se posicionam contra o uso colonialista da ciência para a imposição de grandes obras para infraestrutura do extrativismo predatório. Aqui nessa coluna, publiquei carta onde escreveram (leia aqui): “conclamamos aos colegas de profissão a não participarem de atividades relacionadas ao licenciamento ambiental das barragens da bacia do Tapajós enquanto este processo seguir em um contexto de violações dos direitos das comunidades afetadas, que ainda não foram consultados segundo estipula a Convenção 169 da OIT”.
No Brasil, há arqueólogos que realmente miram o futuro quando trabalham sobre o passado, enquanto há aqueles que olham o presente mas pensam como se estivessem no passado.
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Imagem: Uma mega-escavação em Belo Monte /Reprodução.
A população local inexiste, assim como a fauna e a flora, quem está fora assiste, expectadores. Os algozes, empreiteiras, corporações e os representantes no poder público executam. As leis, ora, as leis protegem o projeto executado.