Na vigência do ECA, caiu mortalidade infantil, avançaram escolarização e acesso à saúde preventiva. Mas violência contra jovens explodiu — e agora, eles podem pagar de novo por isso
Por Lais Fontenelle – Outras Palavras
A infância tem sido encurtada e roubada diante de nossos olhos. Ao longo dos 25 anos de criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), completados neste 13 de julho, embora tenha havido conquistas, Estado e sociedade não têm cumprido seu papel na garantia dos direitos das crianças e adolescentes. Principalmente na proteção contra todas as formas de negligência, exploração, violência, crueldade e opressão, como impõe o artigo 227 da Constituição Federal.
O maior motivo de comemoração, na verdade, está nesse artigo da “Constituição Cidadã”, que marca o reconhecimento das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Ele prevê que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.” Inaugura assim a doutrina da proteção integral da criança – além do conceito de prioridade absoluta da infância.
O ECA é seu desdobramento, e a partir de sua promulgação as crianças perderam sua invisibilidade social e ganharam um novo status. O que falta então? Efetividade ou o próprio entendimento da lei? Ou é uma questão ética e moral? Talvez o que falte seja a sociedade civil reconhecer crianças e adolescentes como seres vulneráveis – que experimentam fase peculiar de desenvolvimento e, por isso, precisam ser protegidos e resguardados. A infância é o período decisivo na formação da personalidade, dos valores e do desenvolvimento físico, cognitivo e emocional das crianças – que podem ser o prefácio de um mundo mais ético, justo e sustentável dependendo da forma como são olhadas e escutadas/ tratadas.
Olhando em retrospectiva para os direitos da infância em nosso país, podemos dizer que muitos avanços foram conquistados, passando pela queda expressiva na taxa de mortalidade infantil à matrícula de quase 100% das crianças no ensino fundamental. Vacinação, atendimento à saúde e alimentação foram garantidas com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e programas como o Bolsa Família. No entanto, ainda não conseguimos, infelizmente, que os jovens deixassem de ser alvo de mortes violentas. Muito pelo contrário. Dados recentes do Fundo das Nações Unidas pela Infância (Unicef) indicam que o número de assassinatos de crianças e adolescentes até 19 anos passou de 5 mil para 10,5 mil por ano – são 28 por dia e transformam o Brasil em vice-campeão mundial no assassinato de jovens, só atrás da Nigéria.
Nos últimos anos, aconteceram muitos retrocessos em relação a direitos já conquistados – a começar pela pauta da redução da maioridade penal que, pasmem, dividiu opiniões e foi à votação através da emenda constitucional da PEC171/93, que reduz para 16 anos a idade penal. A proposta foi apresentada como solução para os problemas de segurança pública alegando, erroneamente, que a “impunidade” dos adolescentes era a causa dos altos índices criminais do país. A discussão toda foi descabida, principalmente por ferir o princípio positivado no artigo 60, §4, IV da Constituição, que veda o retrocesso em matéria de direitos fundamentais.
Segundo Guilherme Perisse, advogado do projeto Prioridade Absoluta do Instituto Alana, a PEC, assim como aqueles que votaram a seu favor, parecem desconhecer que levariam aos desumanos cárceres brasileiros adolescentes muitas vezes vítimas de sucessivas violações, o que não só contraria os direitos das crianças e adolescentes, mas em nada resultará na redução dos índices criminais. Mais violência não é solução. O caminho a ser seguido deveria ser exatamente o inverso, diz ele: “Assegurar os direitos previstos no texto constitucional e na legislação de forma a permitir o pleno desenvolvimento das crianças e adolescentes.”
“Brincar é solução, redução não”
Meu desejo é de que um novo ciclo com foco na defesa dos direitos de nossas crianças seja efetivo e compartilhado por todos: família, sociedade, mercado e Estado. E a resposta de que isso é tão possível quanto urgente foi a mobilização “Juntos pelo Brincar”, que aconteceu dia 5 de julho no Largo da Batata, Zona Oeste de São Paulo. Depois de inúmeras reuniões, conversas e articulações para garantir um dia memorável, com diferentes atrações para as crianças, a mobilização trouxe esperança ao domingo mais frio do ano, quando o espaço público se tornou palco de diversas atividades lúdicas propostas por organizações da sociedade civil que defendem os direitos das crianças e trabalham para promovê-los, ali reunidas para celebrar o ECA.
Bambolê, bicicleta, corda, leitura de livros, pintura, trepa-trepa, troca de brinquedos e muitas outras atividades se espalharam pelo largo, unindo adultos e crianças em torno da mesma causa: fazer valer os direitos de nossas crianças e adolescentes. A mobilização “Juntos pelo Brincar” contou com o apoio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo e da Subprefeitura de Pinheiros, mas foi construída de forma coletiva e horizontal com base em três eixos importantes garantidos pelo ECA. O direito ao brincar, fundamental no desenvolvimento da criança e do adolescente; o direito à convivência familiar e comunitária como forma de inserção no meio social para que eles interajam com o mundo de maneira saudável e segura; e o direito ao espaço público para encorajar as crianças e adolescentes a se reconhecerem como cidadãos e sujeitos de direitos.
O dia conseguiu mostrar que “Brincar é solução, redução não” de forma leve e lúdica. Que nos próximos anos, aconteçam mais manifestações coletivas em prol das crianças e do brincar, com cada vez mais pessoas e organizações empenhados em fazer valer os direitos das crianças e dos adolescentes. E que as crianças sejam ouvidas em seus direitos, principalmente o de ter infância. Não façamos o convite para que elas cresçam antes do tempo.
Que nos próximos 25 anos possamos honrar mais as crianças e que a maioria da população consiga entender que a culpabilização dos adolescentes, verificada nas propostas de redução da maioridade penal aprovada pela Câmara dos Deputados, é um retrocesso que não vai resolver o problema da violência no Brasil, mas, antes, agravá-lo. A solução para reduzir a violência é um maior investimento nas crianças e adolescentes. Devemos fazer valer o que está previsto no artigo 227 de nossa constituição Federal e no ECA, mostrando que a regra da prioridade absoluta não está sendo cumprida. Só assim chegaremos a alcançar uma sociedade mais digna, justa e igualitária para as crianças e adolescentes.