Por Hugo Monteiro, em Buala
Comecemos num pressuposto simples, que logo explicaremos: nenhuma linguagem é neutra, nenhuma língua (como forma sistemática, codificada e ordenada de linguagem) é eticamente imparcial, esvaziada de valores ou meramente instrumental. Todas as relações humanas, toda a relação entre seres é linguisticamente mediada, sendo a língua o elemento mais convencional em que toda a relação se estrutura, vive e se determina. Por isso mesmo, porque nenhuma linguagem nem nenhuma língua são isentas de valores, é também pela linguagem que o preconceito subsiste ou, pelo contrário, é ultrapassado.
Convém assegurar, por isso, que pensar em linguagem e em língua é pensar em algo que não dominamos totalmente, que nos define e nos identifica mas onde temos poder limitado. A língua é uma morada, algo que não se domina totalmente, desde logo porque a língua é uma herança. Nós já nascemos numa língua que nos precede e que, de alguma maneira, nos faz crescer nela – na sua configuração ideológica, histórica e identitária – e não simplesmente com ela. A língua não nasce de geração espontânea. Ela é constituída por uma rede complexa e dinâmica de regras e de convenções que ultrapassam o indivíduo e a sua época, mas que os determina com decisiva intensidade. A língua é, frequentemente, a primeira fronteira com que se conta e que, como todas as fronteiras, pode assinalar a linha de convívio entre diferentes ou, pelo contrário, separar universos de forma hostil e decisiva. Daí que língua, linguagem e racismo adquiram uma conexão evidente, quando o conceito menorizador do outro e o próprio conceito equívoco de raça se estabelecem como formas antecipadas de definir o distinto.
E o distinto pode ser valorizado, como condição de possibilidade do próprio conceito de relação, ou confinado e regulado na mais restritiva lógica de poder. Tudo se joga, pois, na complexa relação entre língua, linguagem e poder, que aqui encaramos de forma brevíssima.
A ilusão da neutralidade
É na linguagem que os poderes se inscrevem. Assumir este pressuposto é uma urgência, principalmente quando verificamos que a linguagem é um dos elementos de potenciação do racismo e de outras formas de discriminação.
A assimetria entre as pessoas manifesta-se e sustenta-se na linguagem, sendo concretamente na língua que se instalam e se naturalizam diferenças simbólicas, sociais, culturais… que nutrem fenómenos de discriminação. Antigas e novas formas de racismo nascem ou recriam-se na linguagem, alimentam-se nela, sendo a pretensa imparcialidade instrumental da linguagem uma das formas de encobrir e de perpetuar discursos discriminatórios dos mais diversos. Exemplo crescentemente denunciado mas nem por isso ultrapassado é, de modo evidente, o universal masculino, em que a categoria “Homem” serve para designar todas as pessoas, sejam estas homens, mulheres ou crianças. Na verdade, o que aqui está em causa é um poder em que o único agente é realmente o homem, na hegemonia da sua presença na história, na linguagem da história e nas formas implícitas dessa hegemonia, sendo este “homem universal”, realmente, um homem branco, europeu, autóctone, judaico-cristão, etc. O critério do universal passa a ser o que designa o universal, denunciando-se assim a estrutura masculinizante da maior parte das línguas ocidentais e todos os outros e as outras que desse universal se excluem automaticamente: a mulher, o/a não branco/a, o/a não-ocidental. A linguagem e as línguas mostram, assim, como racismos, sexismos e xenofobias vêm de mãos dadas como formas de exclusão face a um universal impositivo e normalizador.
A linguagem, supostamente cristalina e imparcial, pretendendo despir-se de particularismos em nome de uma espécie de ambição universal, tende a classificar, a hierarquizar e a pré-definir. O racismo e, de um modo geral, discursos discriminatórios como os etnocentrismos, sexismos, homofobia ou xenofobia, dependem de uma visão global e distorcida do outro, apesar de tudo disfarçada no tal álibi da classificação neutra. Tal visão antecipa-se a indivíduos concretos e situações concretas, como uma espécie de processo de rotulagem destinado a anular e a silenciar o outro, na sua voz própria.
Poder da palavra dita
Para quem a detém, para o detentor da palavra, a língua é decididamente um poder. Se o poder de definir algo ou alguém é uma atribuição linguística, torna-se evidente que esse poder de definição não está equitativamente distribuído. Nem todas as pessoas têm o mesmo direito de definir e de se definirem, fruto das desigualdades sociais e simbólicas que pontuam o viver em comum. E o poder de se definir alguém, sem deixar a esse alguém qualquer escolha no processo da sua própria definição, traduz claramente uma assimetria: o/a professor/a define o “bom” ou “mau” aluno; o/a poderoso/a classifica o/a subordinado/a; o/a legislador/a determina o aceitável – e em cada um destes actos há um poder desigual. É sempre o elemento dominante, o sujeito hegemónico, aquele que detém a palavra e que pode definir e objectivar o outro. Sucede que, no âmbito do racismo, esta assimetria é imensa, desmesurada e particularmente opressiva, quando um discurso de poder produz conceitos prévios à pessoa, baseando-se numa menorização da diferença que anula a própria pessoa. No contexto das sociedades ocidentais, e actualmente no quadro de uma mundialização uniformizadora, o detentor da palavra e do poder é o homem branco, sedentário, escolarizado e heterossexual com privilégios variáveis consoante classe social, país de origem, situação geográfica… A discriminação nasce de uma vontade de poder e vive, actualmente, nesta conjuntura.
É na língua, por outro lado, que as identidades se desenham, sendo importante assinalar o risco de se conceber essa identidade como uma clausura excludente e opressora, potencialmente racista porque instalada na ilusão da “superioridade linguística” ou da “pureza idiomática”. A título de exemplo veja-se como um sotaque, ao identificar uma determinada proveniência, serve também de remoque e de depreciação, sendo raramente considerado como signo de riqueza idiomática e de diversidade de posicionamento face a uma mesma língua. Mais uma vez o poder impõe-se, determinando um padrão fonético tido como critério centralizado e monolítico de correcção linguística. Ainda que dentro de um mesmo idioma, vemos neste exemplo uma espécie de incursão do poder no exercício quotidiano de uma língua, estratificando os seus falantes consoante o modo como a pronunciam. E excluindo diferenças em nome da proximidade de um poder.
Língua como imposição
Uma das mais recorrentes ferramentas de opressão racista passa pela negação da legitimidade cultural e simbólica do outro. Hoje, séculos volvidos sobre as práticas colonialistas associadas à expansão marítima, maioritariamente ibérica (na imposição de língua e de religião associada a uma acção “civilizadora”, culminando em espoliação e escravatura), encontramo-nos com formas mais subtis de imposição de poder, no sentido único de uma mundialização mercantil e homo-hegemónica. Parte da estratégia homo-hegemónica passa, precisamente, pela intenção babélica da língua única e universal, com a língua inglesa, reduzida à sua dimensão mais instrumental, a ser imposta globalmente como língua franca e agregadora.
Num processo que empobrece a própria complexidade idiomática da língua inglesa, procede-se no sentido de um monolinguismo gerador de uma cultura de face e feição únicas, cultura esta excludente de tudo o que se não reduza ao seu imediatismo pragmático.
As implicações são vastas, são imensas, mas importa sublinhar no âmbito deste texto principalmente a anulação simbólica da diversidade linguística e cultural, na reinvenção de um certo monolitismo etnocêntrico que não deixa de potenciar, em todo o lado – das redes sociais às academias, aos modos como nos relacionamos – novas e possíveis formas de discriminação etnocêntrica, xenófoba e/ou racista.
Concluindo: Herdar o plural de uma língua
Em jeito de conclusão, recordaremos um dos pontos de partida deste texto: toda a língua é herdada e precedente. No sentido contrário ao poder que nela se inocula e que temos vindo a denunciar, esta mesma língua herdada multiplica-se e pluraliza-se na diversidade de quem a fala e que sempre a reinventa. Se é verdade que racismos, sexismos e outras formas de opressão sobrevivem na língua, também é verdade que é pela língua – pelas línguas – que as opressões se desmascaram e se combatem. Como? Deixando fluir, na língua, o seu estrutural, inclusivo e persistente apelo à invenção, à criação e à indomesticável pluralidade que nela se acoita. As identidades, linguisticamente engendradas, não são necessariamente fronteiras estanques, muros erguidos contra outros/as ou muralhas opressoras, mas celebrações da singularidade multicolor de cada ser e de cada pessoa. Daí que, mesmo num só idioma, se apele ao soerguer não de uma mas de muitas línguas, em múltiplas pronúncias, capazes de reencontrar, deste lado do continente, o registo não hegemónico de uma Europa plurilingue e diversa.
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Cultura e Racismo é o tema da Agenda 2015 do SOS Racismo. O BUALA associa-se publicando os textos que nela se inserem.
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Destaque: Kara Walker – Auntie Walker’s Wall Sampler for Civilians (detail), 2013. [Kara Walker é uma artista negra do sul dos EUA, que denuncia, principalmente com suas silhuetas recortadas de papel, a violência do racismo ao longo da História. TP].