A escolha de uma cena do filme “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, para ilustrar um post no Facebook sobre o Programa de Proteção ao Emprego, do governo federal, demonstrou ignorância, incompetência ou displicência por parte da comunicação do Palácio do Planalto. Mas, ao mesmo tempo, foi um ato falho que, involuntariamente, mostra como parte da sociedade, do setor produtivo e do poder público ainda considera que a alternativa a um emprego massacrante é emprego nenhum, aceitando uma dualidade que, em verdade, é uma grande farsa.
A imagem, retirada de uma mais icônicas cenas do cinema, trata das terríveis condições de trabalho industrial no início do século e é utilizada, ainda hoje, para debater a alienação do trabalhador, a desumanização do trabalho e as consequências de lesões físicas e danos psicológicos causados por movimentos repetitivos. Não poderia nunca, portanto, ser vinculada a um programa que afirma ser o oposto disso.
Contudo, a cena do filme de Chaplin lançado há quase 80 anos ainda se repete diariamente em fábricas de todo o Brasil. Uma multidão de operários de frigoríficos ou de indústrias de eletrônicos, por exemplo, acabam afastados do trabalho por conta de doenças ocupacionais e, no limite, aposentados ainda jovens e obrigados a passar o resto da vida sob forte medicação por dores causadas pela inutilização de seus membros através desses movimentos repetitivos.
Quem fica com os lucros oriundos da produção são as empresas e seus investidores. Já quem arca com boa parte dos custos previdenciários oriundos dessa superexploração do trabalho somos todos nós. Considerando que o valor arrecadado é menor do que o custo de tratamento e manutenção dos trabalhadores afastados ou aposentados, a conta não fecha.
Produzimos na Repórter Brasil, há alguns anos, o documentário “Carne, Osso”, que ganhou prêmios nos Brasil e no exterior, esteve em dezenas de salas de cinema e foi exibido algumas vezes pela Globonews. Ele trata da complicada situação do trabalhador nos frigoríficos brasileiros e contribuiu com a melhoria da legislação sobre o tema – apesar dela estar ainda longe do ideal.
Alguns depoimentos extraídos do documentários:
“Cerca de 80% do público atendido aqui na região é de frigoríficos. Ainda é um pouco difícil porque o círculo vicioso já foi criado. O trabalhador adoece e vem pro INSS. Ele não consegue retornar, ele fica aqui. E as empresas vão contratando outras pessoas. Então já se criou um círculo que agora para desfazer não é tão rápido e fácil” – Juliana Varandas, terapeuta ocupacional do Instituto Nacional de Seguro Social de Chapecó (SC).
“A gente começou desossando três coxas e meia. Depois, nos 11 anos que eu fique lá, cada vez eles exigiam mais. Quando saí, eu já desossava sete coxas por minuto” – Valdirene Gonçalves da Silva, ex-funcionária de frigorífico.
“O trabalho é o local em que o empregado vai encontrar a vida, não é o local para encontrar a morte, doenças e mutilações. E isso no Brasil, infelizmente, continua sendo uma questão séria” – Sebastião Geraldo de Oliveira, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª região.
“Basicamente, é conscientizar essas empresas para reprojetar essas tarefas. Introduzir pausas, para que exista uma recomposição dos tecidos dos membros superiores, da coluna. Em algumas vai ter que ter diminuição de ritmo de produção. Nós estamos hoje chegando só no diagnóstico do setor. Mas as empresas ainda refratárias a esse diagnóstico” – Paulo Cervo, auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego.
Mas não é só na carne que a repetição de “Tempos Modernos” faz estragos por aqui.
Para preparar uma caixa de telefone celular com carregador de bateria, fone de ouvido e dois manuais de instrução, o empregado da fábrica da Samsung localizada na Zona Franca de Manaus contava com apenas seis segundos. Finalizada essa etapa, a embalagem era repassada ao funcionário seguinte da linha de montagem, que tem a missão de escanear o pacote em dois pontos diferentes e, em seguida, colar uma etiqueta. Em um único dia, a tarefa era repetida até 6.800 vezes pelo mesmo trabalhador.
Uma televisão era colocada em uma caixa de papelão a cada 4,8 segundos. A montagem de um smartphone, feita por dezenas de trabalhadores dispostos ao longo da linha de produção, levava 85 segundos. Já um ar-condicionado split ficava pronto em menos de dois minutos.
Os números constam de uma Ação Civil Pública ajuizada, em 2013, contra a Samsung pela Procuradoria Regional do Trabalho da 11ª Região do Ministério Público do Trabalho.
“O estabelecimento da Samsung em Manaus há alguns anos vem apresentando um índice de adoecimento muito elevado, acima até da média de outras empresas”, afirmou na época o procurador Ilan Fonseca. A empresa fechou um acordo para melhorar a situação e pagar compensações.
Vamos melhorando, mas em uma velocidade infinitamente menor que as esteiras dessas fábricas.
O governo federal tem razão em divulgar “Tempos Modernos” pelas redes. Vai ver até que a escolha foi proposital. Afinal, Chaplin continua atual nas linhas de montagem que moem operário de empresas que recebem financiamento público e na desorganização de muitos trabalhadores que temem perder o emprego se reclamarem das condições, tudo com as bençãos do sucateamento o sistema de fiscalização do trabalho e da defenestração da legislação trabalhista.
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Trabalhadores ficam até dez horas em pé, segundo o MPT. Foto: Alex Pazzuelo, Agência de Comunicações do Governo do Estado do Amazonas