Em entrevista exclusiva, o geógrafo marxista britânico analisou ainda diálogo entre Cuba e EUA, papel do papa Francisco e situação da esquerda brasileira
Felipe Amorim – Opera Mundi
O geógrafo britânico David Harvey tem dezenas de livros publicados e trajetória acadêmica reconhecida por seu pioneirismo no estudo das dinâmicas globais do capitalismo, mas não consegue entender a União Europeia. “O que eles estão fazendo é realmente incompreensível, completamente irracional.” Harvey se refere ao tenso processo de negociação sobre a dívida grega entre o governo de Atenas e os credores internacionais da troika.
De um lado, o partido esquerdista Syriza, eleito por seu forte discurso antiausteridade, que se recusa a aceitar o receituário neoliberal de Bruxelas; do outro, os líderes europeus, tímidos ao propor concessões para renegociar o pagamento e, muito menos, cogitar o perdão da dívida. “Me parece muito claro que o Syria vai sair da UE. Eles vão ser chutados do bloco, porque não vão dar calote nas promessas feitas aos gregos”, prevê o acadêmico. Para Harvey, a troika só não cogita perdoar o déficit — que, como ressalta o geógrafo, ela própria reconhece como impagável — para não deixar um precedente aberto a outros endividados europeus, como Espanha, Portugal, Itália e Irlanda.
O que mais chama, entretanto, a atenção de David Harvey é o perigo da tensão dessa negociação, algo ignorado pelos líderes europeus. “A UE vai se arrepender caso pressione o Syriza a ponto de fazê-lo falhar”, diz. Para o pensador, a alternativa mais provável na Grécia em caso de fracasso dos esquerdistas é a ascensão da legenda fascista da extrema-direita, o Aurora Dourada, a terceira mais votada nas últimas eleições. “Apoiar a esquerda grega vai no melhor dos interesses para todos os políticos”, arremata.
O britânico de 79 anos, tido como um dos mais influentes marxista da atualidade — e que só começou a ler Karl Marx aos 35 — está no Brasil para participar, entre outros eventos, do Seminário Internacional Cidades Rebeldes, organizado pelo Sesc São Paulo e pela Boitempo Editorial, que, ao completar 20 anos, lança o título Paris, capital da modernidade, do geógrafo.
Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, David Harvey, além de comentar a crise grega, que terá seu desfecho determinado ao longo das próximas semanas, falou também sobre as vitórias recentes de movimentos de minorias no mundo; chamou a atenção para a universalidade da agenda antiausteridade; discutiu a reaproximação entre Cuba e Estados Unidos; elogiou o papa Francisco; e, analisou a situação da esquerda brasileira em tempos de ajuste fiscal e terceirização: “O PT estaria numa situação muito melhor se tivesse mantido fortes laços com os movimentos sociais”.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista com o geógrafo britânico David Harvey:
Opera Mundi: Ao longo deste ano, temos visto alguns feitos interessantes para os movimentos de minorias em algumas partes do mundo. Foi o caso da coalizão árabe-judaica nas eleições em Israel, os resultados expressivos dos escoceses no Reino Unido e dos curdos na Turquia. Além da vaia em massa contra o hino espanhol de bascos e catalães em uma partida de futebol. Como explicar esse bom momento da agenda autonomista?
David Harvey: Sem dúvidas, há um clamor por políticas mais descentralizadas, políticas que sejam mais próximas do povo. O que vemos em muitos países, como por exemplo nos Estados Unidos, é um ressentimento contra o governo federal e o desejo de ter os estados com mais autonomia em relação a esse governo central. Porque as pessoas sentem que o que elas dizem importa em um nível local. E há um desejo por isso, que certas vezes é expressado na forma de alianças regionais: Catalunha, Escócia, norte da Itália e Baviera são exemplos de frações que buscam mais autonomia. E muitas vezes isso se trata de nacionalismo local.
OM: De que forma isso se relaciona, na Europa, com o contexto pós-crise econômica imposto pela troika e suas políticas de austeridade?
DH: Há uma conexão desse fenômeno com o discurso antiausteridade que considero muito importante. As políticas anti-troika foram injetadas dentro de muitos desses movimentos locais. Querem criar um espaço autônomo, em que não sejam governados por essas políticas austeras, que são sempre definidas por uma autoridade central.
Essa insurreição de políticas antiausteridade, e sua expressão em níveis locais, tem se transformado num fenômeno importante, em particular no contexto europeu. Então, é muito relevante vermos pessoas progressistas eleitas para as prefeituras de Barcelona e Madri. São movimentos de massa que não se importavam muito com a política anteriormente e, agora, são influenciados e influenciam a política de formas muito cruciais. E veremos muito mais coisas desse tipo, em que movimentos por autonomia local passam a se conectar com o discurso antiausteridade. Vemos elementos disso em Portugal, Irlanda e Itália, por exemplo. E esse, é claro, é o caso da Grécia, em que o país basicamente diz: ‘basta, já tivemos o suficiente dessa austeridade por sete anos, queremos uma política antiausteridade e estamos nos mobilizando para isso’.
OM: Junho será um mês crucial para definir o futuro da negociação sobre a dívida grega entre o governo esquerdista do Syriza e os credores internacionais. Qual a melhor saída para o premiê Alexis Tsipras?
DH: Acho que ele está numa posição difícil ao enfrentar a seguinte escolha: dar um calote em suas promessas ao povo que os elegeu; ou então dar um calote na dívida. E, até aqui, eles tentaram deixar claro à União Europeia que não vão dar esse calote na população. É claro que a UE passou a empreender uma guerra contra eles; e o Syriza modificou suas propostas um pouco aqui e outro tanto ali, mas também manteve sua posição.
OM: Qual desfecho o senhor enxerga para esse impasse?
DH: Me parece muito claro que o Syriza vai sair da UE. Eles vão ser chutados do bloco, porque não vão dar default em suas promessas para a população. Mas o perigo é que, se o Syriza falhar — e voltar a registrar apenas os 3% das preferências da população grega como fazia nas eleições muitos anos atrás —, o único outro partido capaz de seguir à frente com os interesses gregos é a legenda fascista de extrema-direita, a Aurora Dourada. Eles [os líderes da União Europeia] vão se arrepender muito se pressionarem o Syriza a ponto de fazê-lo falhar, vendo, então, o crescimento de um governo fascista na Grécia. Mas, como assistimos em muitas partes da Europa, com a ascensão de correntes fascistas na Hungria, França, Bélgica e Holanda, essa tendência de ultradireita surge como uma alternativa política muito forte no momento. Dessa forma, vai ser no melhor dos interesses de todos os políticos dar apoio à esquerda.
OM: A União Europeia não foi capaz de perceber essa ameaça? Por que não adotar outra estratégia de negociação com Atenas?
DH: Eu realmente não sei o que eles acharam. O que eles estão fazendo é realmente incompreensível. Digo, todos os documentos que lemos admitem diretamente que absolutamente não há nenhuma maneira pela qual a Grécia pode pagar a dívida. Não tem jeito. E eles mesmos [os credores] dizem isso, em relatórios do FMI, da troika. Isso é completamente irracional. Se não tem nenhum jeito de pagaram a dívida, a única coisa a fazer é perdoar a dívida e seguir em frente, certamente com algumas penalidades envolvidas, mas é o que deveria ser feito. E a UE está se recusando a fazer isso não por causa da Grécia, mas por causa de Portugal, Espanha, Itália, Irlanda. É um ato político que estão fazendo.
OM: Como o senhor enxerga a reaproximação diplomática entre Cuba e os Estados Unidos? Que efeitos essa abertura terá na sociedade cubana?
DH: Vejo essa questão a partir de duas perspectivas. Na primeira, penso o quão irracional foi para os Estados Unidos isolarem Cuba dessa maneira. Se realmente quisessem subverter Cuba, teriam aberto as fronteiras e feito o que estão fazendo agora anos e anos atrás. Porque isso provavelmente iria fazer com que as forças do mercado trabalhassem dentro do país e o poder dinheiro iria solapar o socialismo.
A partir da outra perspectiva, creio que a reaproximação entre Cuba e EUA, há muito adiada, é uma ameaça a alguns aspectos que considero grandes realizações da era Castro. Particularmente, nos serviços de saúde, na alfabetização e na educação, além de muitas outras coisas que vieram da Revolução Cubana e são extremamente positivas à população em geral. Mas, ao mesmo tempo, há esse grande ponto de interrogação que é medir o quanto do padrão de vida dos cubanos foi afetado pelas políticas de bloqueio norte-americano. Minha esperança é que a abertura das fronteiras e do comércio permitirá um aumento do padrão de vida da população cubana e o aliviamento de certas arenas de descontentamento que ainda existem em parcelas da população, como, por exemplo, sobre falta de investimentos em moradia e infraestrutura. Esta vai ser a tarefa do regime socialista em Cuba, que agora passará a estar integrado à economia global capitalista. E, todos sabem, a partir de outros exemplos, que é muito difícil ser socialista em meio a essa atividade capitalista globalizada.
OM: E por que esse passo só foi dado agora?
DH: A população cubana da Flórida, que, por muito tempo, foi fortemente contra qualquer reaproximação com o regime de Castro, envelheceu. E a nova geração, seus filhos e filhas, não dão toda essa importância à questão: eles são cidadãos norte-americanos que não conseguem ver por que não reconciliar-se e não vão causar agitação política por causa desse movimento. O ambiente interno nos EUA hoje é ímpar; cerca de vinte anos atrás, isso seria recebido como um ultraje. Essa queda de preocupação com a questão cubana dentro dos EUA é provavelmente o principal fator que permitiu a esse governo dar o salto. Mas, é claro, houve também uma ajuda considerável e muito significativa do papa Francisco, que deu muita legitimidade ao processo.
OM: Alguns setores da esquerda têm elogiado a atuação e os discursos de denúncia da pobreza pelo papa Francisco. Como o senhor vê a atuação do atual pontífice?
DH: Obviamente ele tem uma inclinação progressista. Sobretudo ao reviver alguns aspectos da Teologia da Libertação, em cuja destruição o papa anterior [Bento XVI] teve uma atuação muito forte. Acho também que a Teologia da Libertação teve um papel muito importante na América Latina nos anos sessenta e setenta. E a destruição dessa corrente levou, de certa forma, ao enfraquecimento da Igreja Católica na região. Porque a opção dos pobres não estava mais lá. E acho que o papa Francisco está muito bem informado sobre isso e sabe que o poder da Igreja na América Latina depende de trazer de volta as conectividades da Igreja nesse universo, em meio à invasão das religiões evangélicas, que fizeram que a população descartasse o catolicismo como principal fonte de fé. Há na América Latina uma batalha pelas almas da população. E o papa atual está muito mais atualizado sobre o que é preciso fazer.
OM: O presidente Barack Obama se encaminha para a reta final de seu mandato à frente da Casa Branca. O presidente cumpriu com as expectativas criadas quando assumiu o cargo?
DH: Muitas pessoas estão desapontadas com Obama, mas eu nunca tive grandes expectativas. Fiquei muito feliz de, pela primeira vez, ter sido eleito um presidente negro. Mas sempre o encarei como um político de centro-direita — nem mesmo de centro-esquerda. E, por isso, minhas expectativas não eram altas. Não houve muitas mudanças dramáticas. Mas fato é que Obama teve de enfrentar uma oposição muito, muito virulenta e irracional. Digo, os republicanos o odeiam. As pessoas o odeiam. Isso é assombroso. Qualquer coisa que ele propõe é imediatamente rejeitada pelos republicanos. Entretanto, o que realmente me surpreende é que eu acreditava que ele seria muito mais forte na questão dos direitos civis. Fiquei surpreso com o seu fracasso em proteger direitos individuais e minorias, como questões de violência policial e políticas de controle ao acesso de armas de fogo. Além disso, ainda não fechou a prisão de Guantánamo, como havia prometido na campanha. E em política externa, a situação é bem complicada. Mas no balanço final, é muito mais preferível do que alguém da direita republicana.
OM: E sobre o Brasil? O governo da presidente Dilma Rousseff, em seu segundo mandato, tem enfrentado críticas da esquerda ao adotar políticas austeras como, por exemplo, o corte de gastos públicos e a defesa de uma lei que terceiriza as relações trabalhistas. Como o senhor enxerga a relação entre o Partido dos Trabalhadores e as pautas históricas da esquerda?
DH: Acredito que o PT, dadas as suas origens, obviamente defendeu políticas pelas classes trabalhadoras. Mas acho que ter chegado ao poder os fez fazer concessões, mais e mais concessões. Mas é o que acontece com boa parte dos partidos políticos de esquerda no mundo: cede ao grande capital, cede um pouco à direita. Mas, em todo o caso, a economia certamente se deteriorou. Em parte, por conta da queda do crescimento chinês, que desacelera a demanda por materiais e certos produtos brasileiros. Então o que temos é uma situação em que o PT, ao que me parece, parou de ser um reflexo exato das necessidades de sua base política. Então, quando a demanda por austeridade chega, não há outra opção, se não aceitá-la. Mas aí sua base política é corroída. E o que vemos é uma reversão em direção a governos de tendência à direita, de certa forma.
OM: Qual a melhor forma de lidar com o ativismo político das bases populares?
DH: Acho que há muito o que aprender sobre como canalizar isso. Mas aqui no Brasil me parece que há uma situação única, com movimentos sociais muito fortes, ao longo dos anos noventa, como o MST. Mas acho que toda a relação entre poder e aparato políticos e os movimentos sociais é uma questão crítica. E eu não acho que o PT conseguiu fazer isso da melhor maneira possível. Estariam numa situação muito melhor se tivessem mantido fortes os laços com, por exemplo, o MST e os movimentos de moradia, de direito à cidade. Essa base popular é politicamente muito importante.
Por outro lado, o que vemos com o Podemos, na Espanha, é um movimento que está localizado fora dos partidos políticos tradicionais e que, a partir de certo momento, passa a influenciar a política de seu jeito particular, e então, passa a se transformar em um partido político. Então, o que presenciamos agora são movimentos extraparlamentares entrando na esfera parlamentar. Quais os efeitos? Não sei ao certo. Mas é um momento muito interessante em que novas maneiras de fazer política estão sendo empurradas para dentro dos velhos sistemas de representação política e democracia parlamentar — e com resultados potencialmente explosivos. Mas quem será explodido e aonde, aí já não sei…