Reflexões de Sofia, por Antonio Claret Fernandes*

(Foto: L. Parracho/Reuters)
(Foto: L. Parracho/Reuters)

*para Combate Racismo Ambiental

O voo de Altamira a Belo Horizonte, 16 de novembro de 2014, dura exatamente 2 horas e 38 minutos; tempo recorde, pois o normal são 3 horas. Mais da metade das poltronas vazia, a passagem 300 reais, bem em conta comparada aos quase 500 reais de ônibus, sem contar adicionais de alimentação nos três dias de viagem. O empobrecido, vez que outra, pode andar de avião hoje.

Exceto pequeno trecho de turbulência, muito comum na Amazônia por causa do alto índice de umidade do ar, o voo corre tranquilo, dividido entre o cochilo e as lembranças dos mais de três anos passados no Xingu.

A sonolência bate forte! Sofia acaba de sair de um encontro de 4 dias com a participação de quase 600 pessoas, uma rica experiência que ocorre de 5 em 5 anos na Prelazia do Xingu. ‘Árvore que dá fruto leva pedrada’, essa frase lhe fica gravada na cabeça. A metáfora faz alusão à perseguição aos lutadores do povo. A bambeza no corpo se agrava por causa dos dois copos de cerveja tomados antes do embarque, na companhia de Lúgera, militante do MAB.

Nos poucos momentos de lucidez, Sofia passa na memória, pessoa por pessoa. Algumas parecem durar uma eternidade por alguma razão muito especial, outras desaparecem num lampejo.

O de melhor que existe na Amazônia, no seu ponto de vista, como parte integrante daquela natureza tão bela, são os seus diferentes povos e, na luta popular, a militância. Sempre a incomodara a descrição da beleza amazônica sem gente.

Sofia sabe que a herança duradoura e eficaz de uma militante em qualquer lugar do mundo não são as resistências nem as conquistas, mas as suas sementes e a organização do povo. Uma boa militante ‘cria’ militância! Conquistas melhoram a vida e têm um papel fundamental no ânimo das massas, mas a força do povo organizado pode revolucionar a história, revirando-a, se necessário, de ponta cabeça. E não se faz revolução sem pessoas revolucionárias. Também não se exige do revolucionário ser crente ou ateu, mas ser revolucionário. E quanto maior a conquista econômica tanto maior deverá ser a organização política para o movimento não resvalar-se ao lugar comum dos vícios.

A mente de Sofia traz a fotografia de lugares e figuras eternizados em sua memória: o Acampamento Novo Horizonte e Duda, que sofre as sequelas de uma hepatite mal curada; as Transvilas; o loteamento Jatobá e a militante Nalda, que luta contra um câncer; os alagados; a imensa área rural de Assurini e Val, indignado e incansável; e Vitória do Xingu, a pequenina cidade-sede de Belo Monte com 10 milhões/mês de ISS, que vive às voltas com a reincidente cassação do Prefeito e com os graves problemas sociais, até agora sem solução. Definitivamente, dinheiro não é suficiente para emancipar um povo!

Em todos esses lugares se cultivam semente e militância, às vezes de forma quase imperceptível, cuja força poderá ser superior à do muro brutal da barragem de Belo Monte. A brisa benfazeja do sonho comum se espalha em organização popular pelas margens do Xingu e pela Transamazônica, de Anapu a Tapajós, numa extensão perto de 700 km. A perspectiva é transamazonizar o método popular, empreitada necessária e desafiante.

Sofia lembra sua primeira luta na Transamazônica, na ponte do Igarapé Jarucu, no dia 7 de novembro de 2011. A ponte de madeira, comum nessa rodovia, com tábuas soltas, sem guarda mão e fora do alinhamento da estrada, é uma verdadeira armadilha, principalmente para motoqueiros. Quantos morreram ali ou ficaram com sequelas para a vida toda! Em meio a um sorriso de satisfação, lembra que, desde aquele dia, com pequenas correções na ponte, nem mais um acidente grave ocorrera. E o melhor ainda: a partir daquela experiência, houve dezenas de outras manifestações.

Virando-se na poltrona, sob o zunido do motor do avião, Sofia ri sozinha quando lembra o caso pitoresco de uma das ‘greves’, termo usado na região para qualquer manifestação. Em torno de 50 pessoas fecham a Transamazônica perto de Brasil Novo. Chega um comboio de caminhões do Exército com 1000 homens, 3 soldados descem com armas em punho, dois se adiantam, um diz ao primeiro que encontra pela frente:

– Bom dia!

Sem aguardar resposta, prossegue:

– Estamos vindo de Marabá para treinamento na Floresta, em Uruará. Pegamos estrada ontem pela manhã. Não temos nada contra a manifestação de vocês, mas queremos permissão para passar.

– Precisamos avaliar, temos uma pauta de reivindicação…

Antes que o manifestante terminasse seu raciocínio, com uma serenidade incomum, o terceiro soldado dá dois passos à frente e diz, educado e firme:

– O senhor não está entendendo, nós precisamos passar! Temos compromisso e hora para chegar a Uruará, a Tropa está cansada e o almoço nos espera.

Sofia atualiza toda a cena na memória: a troca de olhares, o semblante do seu companheiro como a perguntar ‘o que fazemos agora?’, os poucos segundos que duraram uma eternidade, o jeito impassível dos soldados, a fila interminável de caminhões marrom-escuros, os pneus imensos, as armas na mão, o tantinho de gente, e sua exclamação, em meio a um ar de sorriso: ‘nesse caso, podemos deixar passar!’.

Os policiais meneiam a cabeça, confirmando. O Comandante exclama:

– Então tá tudo certo!

O colega de Sofia, com a serenidade de sempre, ainda passa a pauta à mão do Comandante e lhe pede ajuda para a organização do Trânsito: ‘por questão de segurança’, diz.

– Perfeito! – diz o Comandante. – Vou deixar dois homens até que passe o nosso último caminhão, que está atrasado. – E imediatamente vai dando ordens para dois soldados, que retiram duas motos do caminhão.

Os enfrentamentos mais fortes na região de Belo Monte, porém, ocorrem no Jatobá, loteamento em construção pela Norte Energia, e perto do Parque de Exposições de Altamira, sentido canteiro de obras da barragem. Algumas começam com duzentas pessoas e terminam com mais de mil, umas vão chamando as outras,  e significam passo importante na conquista de direitos frente à prepotência do capital.

É bonito ver-se como mulheres simples pintam e bordam o direito humano e a luta, na arte do tecido, com encontro que se encerra nesse dia 16, mas também no enfrentamento, sob chuva ou sol, e não arredam o pé, animando o povo, tomando a linha de frente, alertando para isso ou aquilo, na sua percepção e sensibilidade.

Sem a mulher, a luta não chega nem à metade!

O inverno passado, naturalizado pela empresa e politizado pelo Movimento, com a água chegando às ruas e entrando pelas casas nas áreas alagadiças, foi o estopim da luta. Novamente, nesse ano de 2015, o inverno promete. O Xingu já começa subir. Dessa vez, com o agravante de que a empresa deverá se aproveitar da cheia do rio para fechar as comportas da barragem e encher o lago. Para ela isso é bom, pois, por um lado, a água é abundante e, por outro, o enchimento do lago, no tempo de cheia, soa a fenômeno natural. Assim, nunca se saberá, exatamente, até onde vai a responsabilidade de Pedro, que gerencia a chuva lá do céu, e da Norte Energia, que constrói a barragem. Algo semelhante ocorreu na última cheia do Madeira, com gravíssimos impactos sobre toda a Porto Velho e população ribeirinha.

O que mais ocupa o tempo de Sofia no avião, porém, depois do sono, naquele ambiente fresquinho e convidativo, é uma Audiência Pública, ocorrida no dia 12 de novembro, convocada pelo Ministério Público Federal, com a participação da Defensoria Pública Federal, do BNDES, da Norte Energia, do Ibama e mais de 500 pessoas atingidas por Belo Monte.

Nos depoimentos, aparecem os casos mais variados de clara violação ao Direito Humano. Gente que assina folha em branco. Mulher com mais de 80 anos obrigada a negociar sozinha. Moradora do Cais empobrecida, que é chantageada pela Norte Energia em propaganda sem receber sua casa. Indígena indignada vendo seu povo agredido nos direitos mais elementares.

Thaís Santi, do MPF, procura ouvir e transformar a insatisfação popular em perguntas precisas, que tocam a ferida, mas sem poder de cura. Ela não esconde seu incômodo. E mostraria, dias depois (01/12/14), toda sua indignação em entrevista ao Jornal El País, intituladaBelo Monte: a anatomia de um etnocídio’.

O governo, na figura de representante do PDRS Xingu, responde de forma caolha e com melindres internos, perceptíveis aos olhares mais atentos. A empresa, como quem aprendeu a tirar proveito dos conflitos, criados ou permitidos, num ambiente onde Estado e iniciativa privada estão imbricados e se confundem, onde instituições públicas das várias esferas não se entendem, beirando à torre de babel, aposta na lerdeza do governo, no desânimo do povo e na sua divisão, fazendo o capitalismo parecer filantropia e transformando vítimas em vilões.

O Ibama deixa qualquer um estarrecido com suas proposições, para usar uma palavra dita tantas vezes pela Presidenta Dilma durante a campanha eleitoral. Diante, por exemplo, da reclamação do mau cheiro no Jatobá provocado pela fossa – que não funciona bem -, o Ibama sugere o que chamou de cortina verde de eucalipto. Um disparate!

Sofia volta a si, dos pensamentos e do sono, quando o piloto anuncia o procedimento de descida. Repara, então, da janela da aeronave e vê, lá em baixo, a Belo Horizonte, e fica imaginando tudo aquilo como obra das mãos da classe trabalhadora enquanto a avião vai seguindo para o aeroporto Tancredo Neves, conhecido por Confins, a mais de 40 km da cidade.

Embora ainda dia, Sofia vê Minas Gerais cheia de estrelinhas, a imensa maioria simples e reluzente, algumas muito engajadas, iluminando grandes estrelas, estas sem luz própria. As estrelinhas mineiras têm uma tarefa hercúlea pela frente: avançar em soberania num Estado muito rico, porém endividado, perto de 100 bilhões de reais, e onde professor é boia-fria, obrigado a levar sua marmita para a escola.

Sobre as nuvens baixas, do avião a sobrevoá-las, Sofia ainda vê algo feito ninho de tucano, cheio de cocô seco, parecia abandonado. Mas não sabe se tudo não passa de imaginação ou se é mesmo realidade.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.