Marcelo Semer: …imprensa estimulou pancadaria ao privilegiar pauta moral….

brasil em raçasIncapacidade de tolerar diferença começa na convicção de que quem pensa de outro modo está errado

Em Sem Juízo

Nos anos 80, Pelé foi severamente criticado por dizer que o brasileiro não sabia votar.

Fernando Henrique Cardoso foi um pouco menos sutil, quando disse que só os votos dos adversários é que vinham dos menos informados.

A incapacidade de tolerar a diferença começa na convicção de que quem pensa de outro modo está errado. O que não decide como eu, não faz certo –não sabe pensar ou tem uma influência de maus estímulos.

O candidato do PSDB nunca esteve tão próximo em uma disputa presidencial depois que Lula chegou ao poder. Mas ao sinal da primeira pesquisa negativa, ainda no empate técnico, o jornalista Josias de Souza sentenciou que a “ultrapassagem de Dilma potencializa supremacia do marketing”. Se a virada aconteceu, por certo, algo de malévolo deve existir para justificá-la.

Não pode ser simplesmente o fato de que eleitores tenham outras prioridades; se meu candidato não ganha, há alguma maldade submersa, explicação deletéria, algo que faça compreender o que a (minha) razão não consegue alcançar.

Daí para o preconceito é um passo curto: os votos dos beneficiários do Bolsa Família são de cabresto, os grotões dão a vitória pela desinformação, o Nordeste que atrasa o país etc.

Bom, dizer que a elite entreguista só pensa em Miami, a propósito, não é lá muito diferente.

Nos últimos dias criou-se certo consenso de que a campanha baixou níveis de educação e urbanidade nos debates por ausência de jornalistas. As propostas teriam se perdido pela falta de intermediação.

Mas a grande imprensa não tem como sair de fininho dessa barafunda.

O estímulo à agressividade também é seu, quando instaurou a pauta moral como o destaque da eleição.

A bolsa de escândalos que se sucedem nas manchetes e a supervalorização das intrigas supera, em muito, nas páginas e telas dos principais noticiários, a comparação de projetos e governos.

Nem se trata de jornalismo investigativo, mas de um jornalismo “divulgativo”, que já não mais se preocupa com qualquer protocolo para dar destaque a acusações. Quanto mais graves, menos cautelas. O negócio é produzir manchetes.

A ideia de que a eleição pode ser decidida entre o bem e o mal, entre o justo e o desonesto, entre o capaz e o incompetente, estimula o jogo do tudo ou nada, da guerra contra o inimigo. Mas esconde o mais importante, as visões de mundo que distinguem de forma consistente as duas candidaturas.

A política é lançada diuturnamente como a arte da mentira, mas a eleição nos apresenta, de fato, duas verdades.

É sobre elas que devemos nos debruçar.

Uma não é mais certa do que outra, apenas mais próxima da nossa concepção.

Uns são conservadores, outros progressistas. Uns desenvolvimentistas, outros liberais. Uns moralistas, outros libertários. Pensamos em controlar a inflação ou impedir o desemprego, em subsídios ou isenções, na intervenção do Estado ou no poder ao mercado.

Não há porque considerar que uma ou outra concepção do Estado esteja errada; são pensamentos, posições, vertentes que optamos, de acordo com nossas ideologias, preocupações ou até mesmo interesses.

Existem bons e maus gerentes em ambos os partidos, honestos e corruptos, leais ou vendilhões.

Mas a tentativa de fazer uma escolha segura por este critério é quase sempre inglória e reduz, eleição após eleição, a pauta política a um embate tão virulento quanto imoral: a caça ao vício do inimigo se imbrica com a conivência com o erro do parceiro.

Ao fim de cada combate, a corrupção mais se aprofunda do que se esvai nessa toada –pois as faltas de lado a lado acabam sendo louvadas pelos partidários.

É preciso entender que a eleição presidencial é, sobretudo, um confronto de projetos nacionais. Não pode ser resumida a uma narrativa de heróis ou vilões.

Ninguém é dono da pátria contra traidores. Ninguém é mais ou menos brasileiro por fazer uma ou outra opção.

Quem quer te convencer disso, não desrespeita apenas ao país. Desrespeita a todos os seus cidadãos.

Até porque o ódio é uma péssima herança eleitoral.


Marcelo Semer, 47 anos, juiz de direito em São Paulo e escritor. Membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia, autor do romance “Certas Canções”. Colunista no Terra Magazine.

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